31 dezembro 2011

A crise infindável (2)




Há exatos dez anos, encontrei com um pequeno grupo de jovens argentinos, em um albergue na Europa, e pude acompanhar o desespero e as lágrimas que os envolvia. As informações que recebíamos da crise política e econômica que varria a Argentina eram por demais devastadoras para se acreditar, e uma vez acreditando, difíceis demais para serem absorvidas. Lembro-me em especial do casal Mercedes e Daniel, que à deriva, já não tinham certeza do regresso à pátria, na semana seguinte.
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Dolorosos momentos, paulatinamente superados com coragem política e com firmeza na arrumação econômica, pelos governos de Néstor e Cristina Kirchner. Sem seguir a cartilha liberal, hoje o país é um dos polos de desenvolvimento no continente, com a expectativa de crescimento em torno de 8%. Em contrapartida, o desconsolo se acerca da velha Europa, nuvens e sombras despontam em um horizonte pouco promissor. Grécia, Espanha, Portugal, Itália estão na berlinda, antecipam as mudanças políticas, reafirmam os ajustes liberais, restringem ainda mais o Estado do bem estar social, vislumbram perspectivas de instabilidade social... 
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Também me lembro que, poucos dias após esse encontro com os argentinos, já em um albergue em Berlim, comemorávamos entre brasileiros a passagem do ano novo (2002). Na manhã seguinte, sacava-se nos caixas eletrônicos bilhetes de euro no lugar de marco. A Europa entrava em uma nova etapa da integração, desta feita monetária. Acreditava-se, enfim, que o bloco econômico ganharia força e robustez, competindo com a Alca e, bem, dez anos depois, sobrevém a crise econômica, recessão, desemprego, incertezas em relação ao futuro. Nós, os vira-latas latinos, que éramos estimulados a olhar o velho continente (e os países industriais no todo) como o exemplo de civilização a ser seguido, bueno, seguimos consolidando uma década de políticas econômicas mais integradas, que nos traz esperanças de anos de crescimento sustentado.
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Falo de crescimento sustentado porque ele não se pauta na dinâmica dos interesses de mercado, mas na recomposição da dimensão humana. O crescimento reverte-se prioritariamente em desenvolvimento social, da Venezuela à Argentina, do Peru e Bolívia ao Brasil. A vida não se limita ao bem estar dos escritórios e gabinetes, mas à fortuna da  sociedade como um todo. Com a CELAC, organismo recentemente criado para a integração mais efetiva dos países latino-americanos e do Caribe, surge a oportunidade de avançarmos com nossas próprias pernas, a partir de nossos interesses, em paz. 
E isso não é pouco.
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Feliz 2012 a todos!  



19 dezembro 2011

A crise infindável (1)




E se mergulhamos assim, nessa crise profunda e angustiosa, onde o sistema financeiro se arremete em desesperado gesto salvaguardar sua pele, está posto que esquecemos a essência da civilização. Em outras palavras, sobrevalorizamos o espírito de competição, aquele apropriado ao voraz instinto de sobrevivência, e abandonamos a civilidade do espaço público. Ficou mais oportuno privatizar interesses do que sociabilizar o convívio.

***

As mentes deficitárias dos gabinetes se aperfeiçoaram em estratégias de exploração. Em seus quartéis-generais, emanam decisões que não consideram o corpo e o espírito humano. Não fazem ideia o que seja o pulsar da praça, com o encontro despojado das diversidades, a magia da música popular e dos bancos comuns, do algodão doce e da brincadeira das crianças, do calor dos cumprimentos e do canto das vozes. 

***

Desde que se meteram no enganoso desejo de cumprir metas artificiais, se distanciaram da dignidade humana, da verdade das palavras. Perderam o sentido da justiça social. Desde que desregularam normas em favor da montagem do mundo corporativo globalizado, o futuro transformou-se em metas esvaziadas, recheadas de números. A ideia de acumulação ultrapassou limites, fixou o referencial do indivíduo bem sucedido, nos tornamos mais armados e menos amados. Assim, os encontros motivaram oportunidades para especular, e a conversa, a possibilidade de mais cifrões. 

***

As economias centrais, molas propulsoras deste capitalismo sem face, sangra em meio a sua desfaçatez pós-moderna. Os rituais de sacrifício incorporam milhares de pessoas, no panteão do deus mercado. Mais doses de arrogância, que geradas nas mentes deficitárias dos gabinetes, alcançam os indivíduos e produzem uma sociedade mais temerosa, mais fragilizada, mais desvalorizada. Daí a frieza dos números, a indicar o corte na carne, a inexorável brutalização da sobrevivência. 


01 dezembro 2011

Guenádi Aigui


Sono e Poesia

(para Boris e Jerusa)

1

Dezembro - e por mais que nos animemos - de dia ou de noite - atrás das janelas - é sempre uma treva dezembrina.
A vida é o suportar dessa treva.
Semelhante treva dilata os espaços, como que incluindo-os em si, mas ela mesma é infinita. Isto é mais do que cidade e noite - você fica rodeado por certo, País-Intempérie, único, ilimitado.
Você deve sobrepujar ainda algumas horas de trabalho solitário. Você é um dos guardiães da noite - diz Kafka. 
Mas você se lembra da possibilidade de Abrigo, mesmo - de Salvação - da angústia soprada pela Intempérie-País.
Finalmente, você estende o cobertor por cima da cabeça, a outra extremidade você dobra sobre as pernas. E eis que já esperas que o sono te rodeie de todos os lados. Te encerre em seu Seio. Certamente não pensas no que isso lembra... Certo retorno? Ao quê? Para onde?
(...)

(extraído do livro Silêncio e Clamor)



27 novembro 2011

Sobre a misteriosa importância de existir



Ontem, ao final do dia, tive a alegria de participar de um lançamento, em uma banca de jornal! Lá estavam dois decanos do jornalismo decente deste país, Palmério Dória e Mylton Severiano. Entrei e me uni às três ou quatro pessoas que formavam uma fila para os autógrafos. Os escritores ocupavam um espaço diminuto, ao fundo da banca, reafirmando uma cumplicidade emocionante com os leitores. Ali estavam dois homens que lutaram, esgrimindo com palavras e ideias a resistência ao estado de exceção. O livro, Crime de Imprensa, relata os descaminhos da mídia brasileira murdoquizada, principalmente ao longo das eleições presidenciais de 2010. O prefácio, veja que delícia, é de Lima Barreto!! 

Poucos circulavam dentro e ao redor da banca. E revelava-se uma característica em comum, os olhares convidativos, gentis, pertencentes a essa gama de cidadãos que não recusam o bom desafio. Atrás de mim, na escassa fila, surgiu outro decano, Ricardo Kotscho. Na entrada da banca, um grupo servindo-se com coca cola, trocava impressões com Laurindo Leal Filho sobre o tema da democratização dos meios. Pessoas comuns, dispostas ao colóquio em pleno espaço público, mobilizadas pelos mesmos anseios, tornando imprescindível a misteriosa importância de existir.


Sobre as despedidas




Nas vezes que retorno de Santo Amaro, consagrou-se o ritual de meu pai me acompanhar até o ponto de ônibus. Acertamos, no curto percurso, as sobras das conversações tidas na mesa de refeição. Uma vez no ponto, aguardamos o coletivo, tenho sempre umas três opções até o metrô. A conversa ganha outra dimensão, lentamente deixamos o tempo do convívio para o breve tempo da despedida, e do verbal, ganha importância as expressões do corpo. Meu pai se silencia aos poucos, submetendo-se ao desarrazoado fluxo de palavras que elejo para aquele momento, sem me preocupar com o tema. Não passam dez minutos, e eis o ônibus despontando na curva, ao longe. A todo momento, em pé ali no ponto, me pergunta, É esse?, e os ônibus passam, para sua efêmera satisfação. E ganhamos uns minutos a mais. Quando, por fim, meu coletivo se aproxima, tenho tempo para o abraço, para as últimas palavras e subo invariavelmente sozinho, somos apenas eu e ele naquela plataforma. Curioso isso, aquele ponto de ônibus, naquele horário, parece servir unicamente a mim. Embarco e tenho tempo de vê-lo girar nos calcanhares e retomar o caminho de casa... 

Por que não somos felizes nas despedidas?



14 novembro 2011

Imagens e versos de Nossa América (3)

Buenos Aires


(...) Não tornará a olhar seu relógio, esse objeto inútil que mede falsamente um tempo concedido à vaidade humana, esses ponteiros que marcam tediosamente as longas horas inventadas para enganar o verdadeiro tempo, o tempo que corre com a velocidade insultante, mortal, que nenhum relógio pode medir. Uma vida, um século, cinquenta anos: já não lhe será possível imaginar essas medidas mentirosas, já não lhe será possível tomar entre as mãos esse pó sem corpo".

(Aura, Carlos Fuentes)




13 novembro 2011

Imagens e versos de Nossa América (2)

Chuao - Choroní


Vals

Yo toco el odio como pecho diurno
yo sin cesar, de ropa en ropa vengo
durmiendo lejos.

No soy, no sirvo, no conozco a nadie,
no tengo armas de mar ni de madera,
no vivo en esta casa.

De noche y agua está mi boca llena,
la duradera luna determina
lo que no tengo.

Lo que tengo está en medio de las olas.
Un rayo de agua, un día para mí:
un fondo férreo.

No hay contramar, no hay escudo, no hay traje,
no hay especial solución insondable,
ni párpado vicioso.

Vivo de pronto y otras vezes sigo.
Toco de pronto un rostro y me asesina.
No tengo tiempo.

No me busquéis entonces descorriendo
el habitual hilo salvaje o la
sangrienta enredadera.

No me llaméis: mi ocupación es ésa.
No preguntéis mi nombre ni mi estado.
Dejadme en medio de mi propia luna,
en mi terreno herido.

(Pablo Neruda)




Imagens e versos de Nossa América (1)

Montevidéu


Botella al mar

Pongo estos seis versos en mi botella al mar
con el secreto designio de que algún día
llegue a una playa casi desierta
y un niño la encuentre y la destape
y en lugar de versos extraiga piedritas
y socorros y alertas y caracoles.

(Mario Benedetti)



11 novembro 2011

Vozes anacrônicas




"O certo me parece, cada vez mais, não ser oportuno entrar nessa provocação, tão aberta quanto desvairada. Ao contrário, entendamos que essas posturas de intolerância serão sugadas e engolidas pelo tempo, e das palavras fúteis, não vingará testemunho que as reconsidere. Ficarão, portanto, como página virada, essas manifestações rábidas, que nada significam senão rechaçar o que se lhes opõe, e esse olhar de fina hipocrisia, que emoldura a torpeza humana... Dos presumíveis filósofos e cronistas habilitados a cumprir seus interesses, e que repercutem o descompromisso das corporações, não restará sequer marcas de seu destino... Falharão, creia-me, falharão, e não haverá vivente suscetível ao que essas vozes anacrônicas despejaram, um dia, sobre o mundo...

(in Caminhos tortuosos, p. 64)



Vozes que indagam




"O primeiro filme de Bertolucci, Antes da Revolução, expõe um tema interessante, e absolutamente atual: o jovem tecnicamente preparado para desencadear a Revolução, e no entanto, incapaz de solucionar seus impasses pessoais. A força do filme reside nesta impotência pequeno-burguesa, o sonho de uma revolução incerta e a realidade próxima vivenciada dentro dos limites impostos pelo grupo social dominante, sem perspectivas de travar alguma luta no desejo de algum rompimento. É o verdadeiro retrato dos jovens dos anos 1960, sonhadores - e protagonistas desses sonhos como uma válvula de escape ao anacronismo dos costumes - e ao mesmo tempo, reféns conscientes de seus conformismos. Alguns (poucos) que ousaram ir mais longe com a ruptura, acabaram tolhidos pelas garras de um sistema a princípio aturdido, mas ao final devorador como nunca.

E de madrugada, assisti a Noite Vazia, de Khouri. Foi como se tivesse levado um poderoso murro no estômago e o tempo parasse à minha volta. Cruel, instigante, sem concessões, ajuda-me a construir o quebra-cabeças da São Paulo do início dos anos 1960. Estamos diante de personagens que circulam à espera de algum acontecimento, enquanto o tédio flui amargamente nas relações. À parte o simbolismo das representações de cada uma das quatro personagens, e uma acentuada prevalência do 'solipsismo grupal', descortina-se um golpe decisivo, uma luz a mais sobre a hipocrisia social, sobretudo a de uma classe média em ascensão. 

Khouri não pode ser atacado pelos cinemanovistas da maneira que foi, principalmente por seu Noite Vazia. Trata-se de conceitos diferentes, de perspectivas temáticas e cinematográficas antagônicas, que não invalidam cada discurso e cada proposta estética. Noite Vazia é o que é, uma dura crítica do transe pequeno burguês nas noites mal dormidas. Sua sede por forjar uma emoção barata em cada esquina colide com a intransigência do mundo aos caprichos individuais, e o esforço por superá-la resulta numa atividade vã e muitas vezes mesquinha. Walter Hugo Khouri retratou maravilhosamente este impasse".

(in Diários, 15.02.98)


30 outubro 2011

Sobre o fato e sua descrição


Acabo de ver uma transmissão límpida, pelo portal Terra, da vitória do Brasil na final do vôlei masculino, com imagem e som ambiente gerados pela organização do Pan, livre das peripécias discursivas dos narradores dos meios hegemônicos, sedentos por inflar as emoções.

As imagens fluíram generosas, para a livre apreensão do espectador. Sem a interpretação de uma locução restritiva, elas mostravam o frescor do momento, revelando o essencial da beleza plástica de cada lance. O enquadramento surgia oportuno, como o desenlace de cada ponto, rompendo com a descrição distanciada da transmissão, para celebrar a emoção vincada nas expressões dos jogadores. Uma delícia! É o que posso chamar de uma intermediação respeitosa, sem fanfarrices. 

Em outras palavras, prevaleceu o atrativo do espetáculo em si, descrito a partir de seus movimentos intrínsecos, oferecido como um saboroso banquete para nós, os espectadores.
...

Na verdade, em muitos momentos destes Jogos Panamericanos, a verborragia narrativa nativa alcançou níveis desagradáveis, para não dizer constrangedores. Como se a cobertura estivesse despreparada para lidar com a importância do evento transmitido.
...

Mudando um pouco o tema, mas ainda sobre a mídia hegemônica. Há três dias, quase nenhuma referência ao aniversário do ex-presidente Lula. Passou quase despercebido, prevalecendo o desprezo atávico das corporações, que resistem em reconhecer sua grandeza. Ontem, porém, a voragem extremada pelos detalhes do drama e da dor tomaram conta das redações dessas mesmas corporações, trazendo-o de volta ao proscênio. Entre um momento e o outro, o desaparecimento das diferenças, e a emergência do relato que se apropria do fato.


Fica, a partir de agora, exposta a disputa pela audiência, o que deve promover um esforço jornalístico mais próximo do espalhafato do que da informação.  


24 outubro 2011

Cristina Kirchner




A vitória de Cristina ultrapassa os limites da análise frívola de certos meios midiáticos tradicionais, que buscaram descaracterizar sua força e seu alcance. Se houve um apoio massivo da população, foi porque houve o reconhecimento de um projeto político vitorioso, aplicado ao longo destes últimos oito anos, em certos momentos, a ferro e fogo, mas sempre respaldado pela participação social. Os criminosos do último período ditatorial (1976-83) foram levados às barras da lei, para responder por seus delitos. A ousada Ley de Medios foi implantada após uma ampla consulta popular, pelas casas do poder legislativo vigente. A democracia se fortaleceu, o país saiu do marasmo econômico em que patinava há meros dez anos, para hoje em dia, constituir-se em um dos protagonistas da integração política, cultural e econômica da Unasul.

Recordo-me que em dezembro de 2001 estava em meio a uma roda de argentinos, em um albergue parisiense, e o choro se misturava ao desespero por não se saber o que viria no futuro próximo. A Argentina fenecia após dez anos de governo Menem (1989-1999), que se alinhou à política neoliberal, seguindo os ditames do famigerado Consenso de Washington, e após dois anos de governo Fernando de La Rúa (1999-2001), marcado pela instabilidade política, desemprego acima de 15%, aprofundamento da crise fiscal, gerando desconfiança no mercado financeiro internacional. 

Hoje, o momento institucional em nada lembra aqueles dias turbulentos e desalentados, em que o país, sem saída, se dobrou incondicionalmente à banca do FMI. Após oito anos, a Argentina tornou-se um país muito mais saudável (reservas recordes de mais de 50 bilhões de dólares; balança de pagamentos superavitária; previsão de crescimento do PIB em 2011 de 5,5%; taxa de desemprego estável em torno de 8%, contra, por exemplo, 24% em 2001), ainda que com alguns problemas estruturais (como a necessidade de mais investimentos na capacidade produtiva, que se aproxima do limite) a serem resolvidos. Junto à consolidação das conquistas, os desafios se colocam no horizonte do novo mandato de Cristina Kirchner.

Neste momento, torna-se fundamental realçar sua larga vitória, com quase 40% a mais que o segundo colocado, o que evidencia o apoio popular a um projeto econômico, à memória social, à militância política. La plaza de Mayo esta colmada de personas que festejan una grande victoria, que consignan el sueño de un pais más equitativo y justo.   


07 outubro 2011

Os labregos de nosso tempo




Riamo-nos dos labregos, dos lapuzes, dos labrostes da falsa aristocracia
Agripino Grieco


Foi mais um desses encontros sem consistência, que ocorrem ao nos lançarmos pelas calçadas congestionadas no cotidiano da metrópole. Seu olhar surpreso - e digo surpreso porque não contava em esbarrar em um conhecido naquele momento - foi absorvendo o viço da minha paciência. A cada comentário, via-o dobrar-se em si mesmo, como se o esforço por encontrar palavras o consumisse em um ato performático. Ainda fez um supremo esforço, bem reconheço, em valorizar a memória de seus percursos menos recentes. Mas os balbucios terminaram por formatar o luzidio cinzento das faces, e o esforço final culminou no comezinho das inutilidades que guardamos para essas ocasiões. 

Fez, então, uma nova tentativa, por um caminho que me pareceu o mesmo, agora sobejando o sucesso mais recente. Mas foi aí que o semblante substituiu a máscara e o corpo arquejou definitivamente em torno de si, a buscar-me com o mesmo interesse que um javali almeja as páginas abertas de um livro. Foi como se não houvesse interlocução e por essa razão a voz se distanciou, o eco da narrativa a vibrar sem a menor importância. Por fim alegou algum compromisso e despediu-se, impressionado consigo mesmo. Do encontro civilizador, restou o espasmo de uma alma fenecida, e, claro, a beleza do crepúsculo.



19 setembro 2011

Pais, filhos




Entraram conversando, de braços dados, o filho, na altura dos cinquenta anos, e a mãe. Ele vinha em busca de um livro, e por isso pediu para ela sentar-se e esperar um pouco. Houve um movimento prolongado, o movimento vagaroso da acomodação no sofá, ela sentando-se cuidadosamente, apoiada nos braços do filho. Por fim, a mãe sorriu, estava bem instalada, poderia ficar o tempo que fosse. Ele se afastou em busca de seu livro, permanecendo o sorriso da bela senhora, que foi se apagando, até que a vivacidade de sua expressão desse lugar à inquietude. 

Foi como se ela, uma vez mais restrita ao seu corpo, se voltasse às rememorações pessoais. Ao som do piano de Hancock, os olhinhos pousavam suavemente neste ou naquele ponto do ambiente, e em cada pausa, uma vaga lembrança repassada. E assim foi por um tempo, até o regresso do filho, com o livro na mão. Então, como se despertasse do transe, ela estendeu-lhe a mão. Novamente o semblante retomou um brilho reluzente, ela aprumou os passos e, antes de saírem da sala, vislumbrei-lhe a alegria de ter sido resgatada para o presente.

***

O casal de filhos adolescentes, na fila, com os pais. Em certa altura, o jovem desembaraça os abundantes cabelos do pai e os arruma com as mãos. Quanto carinho nos gestos repetidos, sob os olhares cúmplices da mãe e da irmã. Uma delicada demonstração de amor filial perdida no tempo e no espaço público.


***

Mais uma vez o café, a inspirar uma narrativa. Desta feita, uma das atendentes de todos os dias, Luzia, que acabara de regressar de suas férias. Estava feliz, como sempre, ou um pouco mais, talvez. Em vez da viagem até Salgueiro, no pujante sertão pernambucano, ficou para receber sua querida mãe. Na conversa entrecortada, à hora do almoço, atendendo a inúmeros clientes, comentou que só lamentava não ter passado os dias bondosos na companhia da família, tios, primos, irmãos. Mas com a vinda de sua mãe querida, pode amenizar um pouco a falta, e saborear o bolo de milho caseiro.

No final da semana não a vi, e soube pelas colegas que a mãe falecera. Teve um mal súbito e isso foi tudo, não houve razão para escavar os detalhes. Ficou-me o que permanece nessas ocasiões, a imagem da dor inquieta, devoradora, que acompanhará Luzia pelo resto de seus dias.


  

13 setembro 2011

Buenos Aires - III

Mulher na praça, 2011

Nos momentos livres, de dia ou de noite, entregava-me ao prazer de fotografar pessoas, um complemento perfeito para a flânerie, entre uma livraria e um café, entre uma praça e uma esquina qualquer. De dia, as pessoas sentadas ao sol, conversando em algum ambiente público, distraídas com um livro ou sorvendo o mate. Havia também os que estavam em alguma fila, as mulheres que caminhavam com seus cães, os idosos que observavam vitrinas, os amigos que se cumprimentavam na rua... um universo de cenas, oferecendo-se para ser captadas. 

Com minha pequena Sony, registrei o que pude, em imagens fixas ou em movimento. Além das pessoas e situações, os lugares, criando um contexto para o estar-ali. E foi assim que encontrei a dama que esperava pelo seu príncipe azul, o homem que avaliava a programação de teatro, as jovens que conversavam nas escadarias, o livreiro que se entretinha com um livro de sua banca... E o frescor das praças, o charme dos interiores, o pulsar das ruas, o brilho dos dias, a quietez das noites...


La Plata - III



Ao chegar na Faculdade de Jornalismo, a indisfarçável satisfação de retornar após um ano. As condições precárias permaneciam, o prédio não estava integralmente liberado, ainda faltava a biblioteca, um restaurante universitário, um ambiente de estar. Esbarrei na multidão de alunos, que circulavam pelo saguão diminuto, em meio às mesas de recepção. As aulas prosseguiam, mesmo com o congresso em seu primeiro dia, resolvi me afastar da agitação interna, acomodando-me sob o sol. 

Ali, diante da entrada do prédio, não seria possível me concentrar para os apontamentos necessários, e permaneci observando o vai-e-vem de jovens, aqueles que chegavam atrasados para as aulas, os que saíam para a pracinha, um pouco mais adiante, para charlar, e aqueles que ficavam ao meu redor, encostados na mureta ou sentados no chão, entregues ao fluir dos acontecimentos. 

Passado um tempo, entrei, atravessei o saguão e as escadas centrais, alcançando a pequena feira de livros. Ao redor, uns bancos estofados, escolhi um e folheei o novo livro de Ramonet, La explosión del periodismo. Tema perfeito para o alvoroço do ambiente. Concentrei-me por um tempo em certas passagens do livro, quando minha atenção foi chamada para o que seria um espaço no subsolo. Levantei-me e vi os estudantes preparando mais faixas, mais cartazes, que logo decorariam algum ponto da faculdade, ainda não tomado pelas arrebatadas palavras de ordem...


Buenos Aires - II


As noites, invariavelmente, eram passadas na capital portenha. As opções, não tantas, pelo menos nesta estadia. Sentar-me nos cafés para a organização da apresentação, ou para a leitura de um texto, de quando em vez olhando para as ruas e ver Buenos Aires passar... Meu preferido, desta vez, o Los Galgos, discreto e antigo café, localizado na Callao, bem próximo da Corrientes das livrarias e teatros. Lá estive por duas noites, acompanhando o atendente, discreto em seus movimentos parcimoniosos, imerso em seu belo uniforme branco e negro. Não nos falamos, a não ser para o pedido dos cortados. Nas duas visitas, os clientes me pareceram os mesmos, sentados diante das mesmas mesas, cumprindo os mesmos rituais. Era o lado de fora, a rua gélida e turbulenta, que indicava-me o passar do tempo. Quando o movimento de pessoas se fazia menos urgente, então, um inevitável impulso me convidava a arrumar o cachecol e retomar a flânerie...


La Plata - II




Quando necessitava ir à La Plata, despertava cedo, bem cedo, algo em torno das 5h30, para tomar o 129, na praça Miserere. Pela autopista, uma viagem mais rápida, de cenário monótono, evitando os adensamentos urbanos, pouco mais de uma hora. Por Centenário, ou seja, atravessando a região metropolitana, e aí incluindo Avellaneda, Quilmes, quase duas horas. Nem sempre foi possível pegar o direto. Uma vez no terminal de La Plata, começava a dança dos números. Tomar o doce cuatro (124), duas quadras além, e deslocar-me até o encontro das calles 63 e 117. Aprendi que era necessário descer na diagonal 119, e caminhar umas poucas quadras, em meio ao fluxo de alunos. 

No primeiro dia, a confusão com o ônibus (tomei o 204) e terminei no meio de um bosque, bem próximo da faculdade. Não me restou alternativa, sentei-me em um banco e retomei meus textos, e aproveitei o equívoco, respirando a placidez do lugar...  



Buenos Aires - I




Alternei minha presença entre La Plata e a querida e desejada Buenos Aires, cidade que me inspira em todos os sentidos. Logo ao chegar, em uma tarde de domingo, pude presenciar uma bela apresentação de grupos folclóricos bascos, em plena Avenida de Mayo. Jovens, idosos, crianças, descendentes ou não da colônia basca, lá estava uma pequena multidão, usufruindo o espaço público. O céu azul, que me acompanharia até o final de minha jornada, aos poucos substituído pelo crepúsculo, e pelo vento frio característico das noites de inverno. Convivência que se desdobrava pelos arredores, as ruas transbordando de gente...



La Plata - I




Aproveitando o tempo bondoso que desfruto, estabeleci alguns objetivos de produção acadêmica, e dentre eles, este congresso de comunicação e ciências sociais, na Universidade Nacional de La Plata. 

Como participante, inscrevi o ensaio que produzi em coautoria com Mônica Nunes, Xenofobia e Participação Política nas Redes Sociais, um estudo sobre a importância das mídias sociais nas eleições presidenciais do ano passado, criando, por um lado, um interessante contraponto ao discurso da mídia hegemônica, proveniente sobretudo de blogues e portais de jornalistas independentes, e por outro, a nefasta explosão de xenofobia, produzida em grande medida por uma parcela da classe média do centro-sul, insatisfeita com o resultado final e lançada contra os nordestinos.

De nossa ampla mesa de estudos (Tics y configuración de subjetividades contemporáneas en América Latina: Ciudadania, socialidad y poder), foi curioso notar que fui o único não hispanofalante, ou, o único integrante brasileiro, o que me entusiasmou a realizar uma intervenção mais detida sobre os processos midiáticos vigentes em nosso país.

No final das contas, pude acompanhar de perto a atuação política dos alunos de uma instituição pública, cartazes, faixas, rádio livre, transformando-a em um local de resistência, e dentre outras manifestações, declamando apoio às reivindicações dos seus colegas chilenos.



11 setembro 2011

A chama que não se apaga


A data de hoje cala fundo em minha alma, ainda uma vez, ao relembrar a brutal destituição do governo Salvador Allende. Um governo eleito democraticamente, e que se manteve no estrito marco da constituição para enfrentar a onda de sabotagens que o minaram desde o início, sobretudo as patrocinadas pelo Departamento de Estado. Seu chefe, Henry Kissinger, prêmio Nobel da paz no mesmo ano, comentou: "não vejo porque nós temos de esperar e olhar um país se tornar comunista devido a irresponsabilidade de seu povo". E trabalhou arduamente para fazer a economia do Chile chiar, até o desdobramento do golpe. 

O resultado foram as dolorosas imagens do La Moneda ardendo, bombardeado sob as ordens covardes de Pinochet, que poucas semanas antes havia assumido o comando do Exército, substituindo a Carlos Prats, jurando fidelidade ao governo Allende. Deste momento de opróbrio, o Chile percorreu um longo caminho para reencontrar a democracia. Resta  celebrar a justiça social. Neste sentido, não deixam de ser estimulantes as manifestações abertas de estudantes e professores chilenos, que tomam as ruas com objetivos claramente definidos, expondo uma parte das feridas sociais acumuladas nestes 38 anos. 


26 agosto 2011

Último desejo



Douglas mostrou-se satisfeito ao sair da loja com um reluzente celular. Caminhava por entre as pessoas, enquanto manuseava feito criança o aparelho, que em breve ganharia vida. Seguiu no sentido da cafeteria Pasternak, não só para tomar seu café da manhã, mas para descansar um pouco, desta feita sem o miserável apoio de sua bengala. Escolheria uma das mesinhas, ao lado das vidraças, para olhar um pouco as pessoas e ganhar outras impressões além da satisfação em dedilhar o seu novo brinquedo. 

Mas bastou dar os primeiros passos pela calçada para deter-se hesitante, a percepção esvaziada pela reflexão enviesada. Antes de assimilar as infinitas possibilidades do aparelho, a dúvida, a quem seria dado o primeiro telefonema? Não tinha intimidade com ninguém que valesse a pena receber um telefonema. O pai e a mãe, mortos, os amigos em destinos ignorados. Repassou uma vez mais a imagem do filho que não teve e o único tio vivo estava morando sabe-se lá em que rincão do Mato Grosso. 

Pensou em um ex-colega do clube em que fora sócio, pouco antes de se aposentar... o mal-estar pronunciou-se mais forte, aproximou-se do muro e da sombra, enquanto esforçava por rememorar, e pensou nas mulheres da sua vida. Lucinha, desaparecida nos porões das torturas... Esmeralda, que o enfeitiçara com o viço buliçoso do olhar... Adelita, graciosa e bonita, que regava as flores... e alegrava a vida cantando canções de amor... Marieta... uma coquete por quem perdera a cabeça, por isso a quis, por louca e coquete, sua linda Marieta... 

Encostou-se ao muro, a fim de restabelecer o equilíbrio. Sentiu as primeiras dores... acompanhou como se fosse tão estranho as pessoas aceleradas, muito parecidas nas expressões desinteressadas. Passou a mão no rosto úmido, a expressão grave, ainda o esforço por lembrar as opções que não tinha. Excluiu o pessoal do antigo serviço... Sebastião talvez merecesse um telefonema, pela amizade demonstrada depois da morte da esposa, mas... o que diria? Um nó na garganta o impediu de respirar livremente. Num derradeiro gesto, lembrou do Ermanno, querido amigo de infância, cúmplice das situações cotidianas, e que não encontrava havia uns bons quarenta anos...

Muitas outras imagens apareceram apenas para desaparecer, voláteis como a bruma das manhãs, e ainda teve tempo de acreditar que seu desalento fosse passageiro, mas o tempo não lhe agraciou com o fôlego necessário para meditar mais a respeito. Douglas sucumbiu segurando firme o brilhoso aparelho, sob a curiosidade de dois garotos de rua, agachados, tão próximos e tão distantes.


Gratuidade


Senti o gosto de meu próprio sangue... Sei que é difícil recuperar uma narrativa límpida, mas... mas era visível que os dois homens que entraram no ambiente não tinham mesmo boas intenções. Era como se eu soubesse que ambos portavam armas, por sob seus sobretudos. Procurei alertar as pessoas presentes, mas minha voz fracassou... A tudo visualizava, tal como uma câmara indiscreta, que captava os movimentos na mais completa impotência, guardando-os para mim. Tentei me esconder, fugir dali, mas não tinha pernas e meu olhar furtivo se alimentava da presença dos matadores, que se imiscuíram por entre suas vítimas, com o mais natural dos comportamentos. Eu os identifiquei, em meu silêncio, como os cruéis assassinos de um futuro anunciado, a cada instante mais próximo. Ficou claro que qualquer esforço seria vão, que o vago plano dos criminosos seria levado a cabo. O primeiro deles começou a sacudir estranhamente o corpo, como se fosse a senha para o ataque e o outro seguiu o combinado,  ao erguer o braço e atirar com a pistola, para um lado, para o outro, indiscriminadamente. A cena, de meu ponto de vista, passou a transcorrer como se fosse um filme silencioso, os movimentos contorcidos, dilacerados, se debatendo em pura representação imagética. O sujeito que sacudia não demorou a mostrar sua escopeta debaixo do sobretudo e mais uma vez compreendi que não escaparia. Eles atiravam e sorriam. Tive a impressão de reconhecer um deles, quando o que portava a pistola se aproximou de maneira convicta, mirou-me na face e, sem dor nem apelação, efetuou um único disparo.


21 agosto 2011

Um canto solene


Fazer qualquer coisa é melhor do que o tédio das imagens e a miserabilidade das narrativas esportivas no domingo. Brincar com os filhos, visitar a feirinha de artesanato, ouvir música, escrever uma poesia, tomar um café com amigos, descansar na rede, sonhando com o amor que alumbra a vida. Qualquer coisa vale, tentar ler a página de um livro, navegar na internet, dar um mergulho no mar, passear com o cachorro... menos assistir a descrição das partidas de futebol, as entrevistas, o show de entretenimento fútil e repetitivo, sob o risco de dissolver a autonomia que temos para a compreensão do mundo, e a certeza de alimentarmos a ganância de uns poucos barões da comunicação. 

Nada ganhamos com nosso sagrado tempo morto diante dessa programação televisiva, nem com a vitória de nosso time, tampouco com as videocassetadas. Nada que inspire ou devolva o alento, apenas o choque voraz, que embaralha as certezas e agrava os temores. Um ritual lânguido, que reforça o torpor e conduz ao vazio da alma, o afundamento no nada e a desolação, antes da segunda-feira de batente. 

Enquanto me proponho em levantar ainda uma vez esta discussão, aqui neste blogue, um pouco desacorçoado, mas sem perder a esperança de que saberemos romper aos bocados a pressão desse garrote infame, ouço ali, vindo do prédio em reformas, uma voz solitária que se destaca, um canto solene, ritmado, inebriante, na tarde fria e apagada da metrópole. Um homem que tece as loas enquanto reafirma sua cultura, em meio aos ruídos destoantes, essa sofreguidão sonora que estronda a selvageria dos gestos, almejando o progresso. 

Esse mesmo progresso descrito por Benjamin, a tormenta que nos impulsiona de costas para o futuro, enquanto observamos em nosso rastro o monte de ruínas a alcançar os céus...



17 agosto 2011

O fracasso da violência



Emma Martinovic foi uma jovem que sobreviveu à chacina da ilha de Utoeya, cometida por Anders Breivik, um xenófobo que levou às últimas consequências seu ódio pela diversidade humana. Em seu depoimento, que pude ler no sítio Ópera Mundi, ela explica como teve de lutar pela vida, e mesmo atingida pelo terrorista, nadou com muito esforço, enquanto ouvia os gritos dos amigos e a morte se disseminar brutalmente ao seu redor. 

Em meio a esse cenário pungente, a certa altura Emma diz que "era possível ouvir tiros, gritos e a risada, a inconfundível risada do desgraçado. Ele gritava e dizia que não escaparíamos".

Anders cumpriu o seu propósito otimizando com impressionante frieza o seu desempenho, ao alvejar cada uma de suas vítimas. A violência, sob um tosco rótulo ideológico, se consolidou com o escárnio típico dos que se consideram racialmente superiores, quando Breivik definiu o destino delas, estampando a risada inconfundível com hálito mortal. 

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A primeira referência que tive do termo 'tropas de choque', ou paramilitares, foi dos bandos que tomavam as ruas das cidades alemãs, vestidas de camisas pardas e denominadas de SA - Sturmabteilung. Eram bandos incontroláveis que produziam exatamente isso, choques com seus adversários políticos, arruaças brutas, propagando o gene do partido nazista, a mobilização pela violência. Como diz Modris Eksteins, "O viver perigosamente (do nazismo) significa não aceitar nunca o status quo; significa fazer constantemente o papel de adversário; significa exagerar, provocar. Significa conflito permanente". 

Foi em busca desse "conflito permanente" que os fascismos produziram terror e violência como forma de se impor. A glorificação da violência se reproduziu amparada na sedução estética, no passo de ganso ressoando pelas ruas, nos grandes espetáculos embandeirados, nos uniformes impecáveis, "O terror, como tudo o mais, foi transformado numa forma de arte. Os nazistas mais ardorosos se deliciavam com a estética do assassinato". 

O esvaziamento existencial proporcionado por tal engodo ainda preserva o poder de seduzir corações e mentes exacerbados em seu ódio indolente, estimulando o confronto com culturas distintas, sob um discurso intolerante e excludente, como o construído por Breivik. Conceitos confusos, para não dizer primários, que se acumulam com o mero intuito de justificar a violência, "Vendo a falta de coesão social do Brasil (...), é evidente que uma aproximação similar na Europa seria devastadora e retardante nacionalmente, sem mencionar que seria um grave crime (genocídio) em contribuir de qualquer maneira para a aniquilação, desconstrução e genocídio dos povos indígenas, que são nórdicos por definição". 

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Foi uma briga de crianças, ou antes, um embate em que um batia e outro que se deixava bater. Por alguma razão, resolvi confrontar o amigo, meus socos atingiam o peito e seus braços, enquanto o espicaçava com palavras duras. E recebia de volta o silêncio, o movimento de seus braços desarvorados, esboçando uma defesa. Átila era o seu nome.

Entramos assim em um longo corredor, e os outros amigos se amontoando ao redor, o jogo de futebol definitivamente esquecido. A certa altura, meus movimentos começaram a minguar e ao final do corredor, apenas encontrava disposição para empurrá-lo, quase que implorando para reagir. 

Átila não reagiu, nem proferiu palavra ou gemido, apenas resistiu. O mais doloroso de tudo foi cruzar com seu olhar, desarranjado na dor. Ao final, o encurralei contra a parede, sem tomar qualquer atitude. Seus olhos deitaram lágrimas amargas pelas gordas bochechas. A contenda terminava ali, em seus movimentos tão brutos, destituídos de expectativa. Uma sensação contraditória me tomou ao longo da ação, o prazer em golpear o alvo flácido, tão exposto, e a quase simultânea rejeição em continuar golpeando.  

O fato foi que nunca mais consegui a mesma amizade de Átila, e por anos a fio permaneceu a lembrança de seu olhar, que tardiamente compreendi como uma expressão de súplica. Uma súplica dolorosa, imersa em ternas razões, para que eu parasse o que estava a fazer.

Foi meu primeiro contato com uma espécie de violência gratuita, que me deixou marcas. Mais do que a reprimenda moral, subsistiu seu significado social: ela definitivamente me revelou a impossibilidade de me superar a partir da fragilidade do outro. Pela primeira vez me dei conta de que a agressão me faria sentir apenas vergonha de minha condição humana.  



16 agosto 2011

À maneira de Manuel Bandeira...





o que importa o Sena, sua Catedral, as luzes cintilantes?
o que vejo é a irrupção soturna, que fecunda a paisagem. 




12 agosto 2011

O retorno a Cambeville




"Era como se a caminhada sorrateira despertasse os deuses fracassados em seu sono eterno e o purgassem com lembranças desvairadas, incompletas, assim como inquietação. A cada olhar, a cada decisão, ele sentia uma pulsação na parte posterior da cabeça, como a orientar-lhe na peregrinação desafiadora. Que fosse insensata ou mesmo inconsequente, ele desejava descobrir em cada rastro marcado por seus passos, as pistas para a continuidade de sua vida. Enveredava para além do desencanto que o recebia sem piedade, pois afinal, havia uma insolência a desafiar a acomodação longamente estruturada. Seria o fim, ou o começo, ou apenas uma solene perda de tempo, coisas que poderiam ser dolorosamente sondadas, com o inefável devidamente instalado em seu bornal..." 



22 julho 2011

A surpresa da origem e do fim



por Mônica Rebecca Ferrari Nunes
(em memória de Gilvan Prudêncio de Souza)

Começo do semestre letivo no Curso de Comunicação. Turmas novas. Pouca intimidade, nenhum segredo, muita sutileza para as aproximações que sempre crescem ao longo do ano. O início do programa de Teoria da Comunicação II, naquele ano, voltava-se à revisão das funções de linguagem, de Roman Jakobson. Como estratégia, considerei mais eficaz passar um vídeo documentário originalmente produzido para a televisão, tendo recebido prêmios importantes, como XXII Prêmio Vladimir Herzog, nas categorias Melhor Reportagem de TV e Melhor Imagem de TV 2000.
Um vídeo que certamente poderia auxiliar os alunos a reverem as funções, pois, de fato, sua narrativa transitava entre a função emotiva, beirando, em muitos momentos certos clichês, ao exercício da função poética, tanto pela confecção do texto verbal quanto pelas imagens surpreendentes, enfim... acreditei que poderia cumprir meu objetivo, além de proporcionar uma boa discussão social, sempre bem-vinda. Quase o Peso de um Passarinho traz a desnutrição infantil como tema. Interior de Alagoas, fim dos anos 90. São João da Tapera é um lugar onde a morte é mercadoria, como mostram as paredes do empório da cidade que abriga pequenos caixões nas paredes, junto a vassouras e outros produtos. Os índices de crianças mortas, desmedidos.
Durante toda a semana em que passei este material, ouvi os mais variados comentários. Graças à contundência de certas cenas, ouvi críticas negativas, ao filme e a mim mesma - por ter escolhido aquele trabalho, ouvi silêncios que me impediram de avançar em desdobramentos e limitaram minhas expectativas, ouvi algumas falas sensibilizadas.
Era a última aula da semana, e, confesso que, desanimada, iniciei a exibição do documentário lamentando a escolha, o fracasso da proposta. Estávamos na penumbra, as cortinas cerradas impediam que o sábado se abrisse atrás dos janelões de vidro. Os alunos se acomodavam emudecidos, apenas os sons de carros de boi inundavam o espaço aquietado. O filme não havia alcançado a metade, quando do fundo da classe, recebo um bilhetinho, guardado até hoje.
Meus pais são de Caboclo, distrito de São José da Tapera. Eles nunca foram políticos ou ‘coronéis’. Tenho tios, tias e primos que vivem lá até hoje.
Já tive uma irmã (que seria a mais velha), que faz parte das 143 crianças mortas. Minha tia já perdeu 4.
Já vi isso ao vivo!
É ‘engraçado’, mas às vezes não acredito que estou aqui.
Gilvan.
Ele estava lá. Frequentando um dos melhores cursos de Comunicação do país, entre alunos de uma classe social muito diferente daquela de onde viera. Eu também custei a acreditar no que estava escrito, movi minha cabeça pra trás, procurando o autor do bilhete, logo me deparei com os olhos marejados de Gilvan. Ele simplesmente consentiu com a cabeça e ficamos assim ternamente envolvidos pela surpresa da origem.
Ao final do vídeo, propus o debate, olhei pra ele, mas senti que Gilvan não gostaria que eu dissesse qualquer coisa sobre a descoberta. Revi as funções, mas estava atordoada pela presença do acaso, mal consegui terminar a aula. Quando todos saíram da sala, ele se aproximou de mim ainda emocionado, contou-me sobre sua família que saiu daquela cidade, sua formação em Educação Física, sobre a empresa em que trabalhava e que custeava seus estudos. Ficamos próximos. Ao longo do semestre, soube que tinha uma filha quase da idade do meu.
Certa vez aprendi o sentido da palavra desastre – sair da rota dos astros... Gilvan escapou à rota destinada a muitas crianças de São João da Tapera, como sua irmã, seus primos. Estava se formando em Publicidade e Marketing, atuava no mercado com promessas de um futuro diferente. Aqui, como na tragédia grega, em que os deuses traçam o destino dos heróis que os desafiam, parece que os astros recolheram Gilvan da rota onde ele teimava brilhar...