29 novembro 2009

De outra parte...



... temos o reverso desse vento de esperança, que nos anima com suas transformações. Refiro-me ao que se convencionou denominar de eleições hondurenhas, um ato gerado nas entranhas da truculência e promovido à força, por um governo que usurpou o poder.

Entre as eleições previstas democraticamente e sua realização deformada, houve um golpe de estado. Ao longo de cinco meses, instaurou-se um aparato viciado, mantido pela alta burguesia, pelos militares e... bem vemos agora, pela anuência do departamento de estado estadunidense. Essa fórmula, tão maléfica em nossa América Latina desde a derrubada de Jacobo Arbenz, acreditava-se encerrada, em nome da democracia e da autodeterminação dos seus povos. Lêdo (e Ivo) engano, como podemos notar: as tenazes estadunidenses, ainda que fraquejadas, ressurgem para salvaguardar uma ineludível política de interesses econômicos. Movimentação igualmente inquietante ocorre no caso das (sete!) bases colombianas.

Seja como for, o mais grosseiro destas eleições hondurenhas está na cobertura do oligopólio midiático brasileiro, que, como uma extensão dos tais interesses estadunidenses, afunda em analises que mais parecem compactuar com a ficção do que com a realidade. Os movimentos de resistência ao golpe; o desrespeito contínuo aos direitos humanos, como consequência da forte presença policial e militar nas ruas; os candidatos (mais de 100) que abandonaram a disputa para não respaldar o processo eleitoral sob o golpe; os elevados gastos do governo de facto com lobistas, para atuarem junto ao Congresso estadunidense, tudo isso e sabe-se lá quanto mais, foi jogado debaixo do tapete, tratado como informação sem relevância. Um pouco foi dito em torno do fechamento de uma rádio e um jornal de oposição hondurenhos, sem que se avaliasse a essência brutal do regime. E ponto.

Assim, uma página deplorável da história de Honduras (mais uma) é virada, em nome do que se vende como democracia. Os acordos San José-Tegucigalpa também foram jogados debaixo do tapete e em mais alguns dias, o tal Micheletti retorna para 'a normalização do estado de direito'. Zelaya seguirá cerceado na embaixada brasileira, fato que continuará sendo explorado pela massa informe e descartável de boa parte da crítica jornalística.

É de se acreditar que, ao final de tudo, ela deixe inscrito nos anais do oligopólio midiático, como legado de sua pena submissa, que tudo não passou de 'um lamentável episódio hondurenho, decorrente da desastrada política externa do inepto governo Lula'...



Pepe Mujica

Pepe Mujica nos anos do MLN

Falta pouco para se confirmar a vitória eleitoral que permitirá o prosseguimento das importantes conquistas sociais já processadas no Uruguai. Trata-se da vitória de José Pepe Mujica e da Frente Ampla, conduzidos sob o frescor dos ventos que renovam a política na América do Sul desde há alguns anos. Segundo todos os institutos que organizaram pesquisas de intenção de voto, a chapa Mujica-Astori tem entre 6 e 8 por cento de vantagem sobre Lacalle-Larrañaga, do Partido Nacional.

Sinto-me especialmente feliz que esta vitória ocorra com Mujica, um homem simples e de passado íntegro, e da Frente Ampla, que mantém-se no poder por mais um mandato, dando continuidade ao projeto de governo iniciado por Tabaré Vasquez.



25 novembro 2009

Sobre a permanência


Foi a última vez que estive com Julie, aquela tarde encoberta, úmida, distante. Recordo-me da longa caminhada desde sua casa até a estação. Não nos falamos, cada um com seus motivos, e por um momento fugidio, voltei-me para o rosto suave, marcado pela dor de tantas certezas. Quis compreender que lhe parecia difícil dar andamento ao percurso, porque era a sensação que me invadia naquele instante, e que nos deixava impotentes. Aqueles parcos quinhentos metros, ao cabo dos quais eu tomaria o trem e não mais nos veríamos. Uma vida merecia despedida assim definitiva?, pensei com meus botões, e logo me aprumei, mirando o asfalto molhado que se estendia pela frente.

Recordo-me com nitidez da serenidade a nos envolver, que retinia os ecos do último diálogo, um conjunto de breves monólogos. Nos sentamos no banco da praça e ali ficamos, lado a lado, dando alento a uma espera infrutífera, enquanto acariciava-lhe uma das mãos. Vestia um cachecol listrado, que dava duas voltas em seu pescoço e escondia-se parcialmente por baixo do casaco verde. Uma perna dobrada sobre a outra, a calça de veludo marrom que revelava graciosamente as meias de lã colorida, e por fim os sapatos de camurça que lhe presenteara no natal anterior. Falou do viço das árvores em dias chuvosos, do sono de seu gato sobre o tapete, da demora das noites de inverno... Na verdade, não queria falar, mas precisava de alguma forma ocultar o silêncio.

Recordo-me também de aproximá-la de mim, e sua cabeça acomodar-se em meu ombro. Pude, enfim, abraçá-la, sentir ainda uma vez o cheiro característico de seu perfume, reter um pouco mais comigo o corpo e a alma que tão bem conhecia, a despeito do vento e da garoa diáfana, que aos poucos nos cobriu com seu orvalho indelicado. Permanecemos, quietos, invencíveis, como se aquele banco de concreto oferecesse nossa última chance. Os pensamentos se acumularam, tornaram-se nebulosos como o dia, e vagos, e dolorosos, conduzindo-nos cada qual para o complemento da jornada.

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23 novembro 2009

Prelude to a kiss

Preciso tirar esta mulher da cabeça, de uma vez por todas... O modo brusco com que Lee Oswald se cobrava tal decisão ia bem de acordo com seu caráter, tímido até certo ponto, mas sobretudo prático com as questões mais prementes de sua vida. Da janela da sala, no sexto andar do edifício onde se encontrava, prosseguia observando as pessoas se aglomerarem lá embaixo, numa mistura de festividade e expectativa. A rua diante de si mantinha-se com a pista livre, à espera do cortejo presidencial, porém suas cercanias, as ruas adjacentes, as janelas dos outros prédios - e assim numa extensão de quilômetros desde o aeroporto - mostravam-se repletas de cidadãos. A população local unia-se às famílias vindas dos mais remotos pontos do Estado. Homens e mulheres radiantes, com suas crianças agitando bandeirinhas, retratavam o ufanismo imperante naqueles dias que prenunciavam história. Tempos marcados pela Guerra Fria, pela mal superada crise dos mísseis russos em Cuba, que mantinha o mundo envolto numa espécie de vigilância permanente, imobilizado sob uma pressão mais angustiante do que ameaçadora... Um caldo de instabilidade que ajudava a promover a unidade da nação, fazendo despontar a figura do jovem e carismático presidente, que em minutos estaria desfilando pelas ruas de Dallas.

Como amar, como sofrer, em horas como essas?, continuava Oswald em meio a suas divagações. Estático em seu lugar, tinha uma visão privilegiada do palco cujo espetáculo viria a acontecer. Continuava com um ar distante, olhando todas as pessoas espremidas, tensas, felizes, detendo-se nos detalhes que pudesse identificar: o policiamento irregular e frouxo; as roupas coloridas do povo; o céu pontilhado por cirros suaves; o clima paradoxal de agitação e suspense que ele captava com especial sensibilidade, decerto por saber o que estava planejado e decidido para breve. Um calor outonal fazia as pessoas transpirarem, estivessem onde estivessem, ali na rua, nos parques, em casa, nos ambientes públicos, alegria e suspeição. O espectro ameaçador confundia-se com a descontração. Era a primeira vez que o presidente chegava à cidade, havendo uma preocupação das autoridades em recebê-lo sem problemas. Tinha-se difundido pelas rádios da cidade uma campanha, através dos meios de comunicação, para se proporcionar uma acolhida simpática ao presidente, que sua visita fosse vista com orgulho, que o evento festivo desarmasse os espíritos recalcitrantes... Mas algo de anormal desprendia-se em meio desses esforços e insistia em pairar pesadamente no ar.

Oswald, obviamente, não se preocupava com estas questões, apenas via o espetáculo, ou a sua armação. Seu raciocínio teimava em prender-se, inopinadamente, ao seu delicado conflito pessoal. Antes de acertar os últimos detalhes com o pessoal do M., avistara no recinto enfumaçado, por entre as mesas de carteado, a loira de outras ocasiões. R. não se preocupava com as aparências, ou não ligava para isso, uma vez que sua silhueta contrastava com o lugar, mais para gângsteres, do que para beldades com pernas maravilhosas. Possuía um olhar todo especial, que evidenciava um jeito meigo, fútil e ao mesmo tempo triste. Essa mulher terminou por arrancar Oswald de seu frágil equilíbrio, atirando-o junto ao torvelinho de uma paixão desvairada. Deixou-se arrastar pelo sentimento: seriam meros dois meses desde sua titubeante aproximação até os encontros nada furtivos. De início, Oswald esforçou-se para controlar o caso, mas ao final, o envolvimento transbordou para o conhecimento do grupo. Passou-lhe pela cabeça o quanto estaria sendo injusto com sua Marina, a companheira inseparável de tantas situações difíceis, porém afastava-se dela e dos infortúnios vividos no passado com a mesma velocidade que se voltava para R.. Esboçava um novo salto no escuro em sua curta e não menos tumultuada vida, mas já não se impunha qualquer restrição. E R., para J. Roconi não passava de uma mulher qualquer, portanto inteiramente desconhecida. Contanto que não surgissem problemas nos planos, não via motivos para maiores preocupações. Já Spelmann, além de confirmar que era apenas mais uma mulher, preferiu acrescentar para Oswald, um tanto irritado, que seria melhor esquecê-la. Talvez por algum ciúme, talvez preocupado com um possível comprometimento do complô... Todavia sabemos o quanto esse tipo de conselho é inútil em uma situação dessas. No caso de Oswald, a coisa mostrava-se tão irremediável quanto irreversível: era um jovem agitado, de cabeça confusa e agora, envolvido emocionalmente. Queria viver o momento, sem atentar para as advertências da vida, tão claras e tão explícitas.

Por mais que se constatasse alguma coisa entre ambos, não se podia falar com convicção do sentimento de R. para com Oswald. Um dia antes da visita do presidente a Dallas, um contato do pessoal de M. procurou Oswald e asseverou-lhe de que meter-se com essa mulher podia lhe custar caro... Um recado pessoal e explícito de algum chefão tipo Spelmann? O comportamento de Oswald começava a incomodar a paciência de muita gente, ameaçando o bom andamento dos negócios? Um cubano ligado a J. Roconi, Gustavo F., dizia abertamente, para quem quisesse ouvir, que Oswald desviava a atenção para questões menores e inoportunas, o que era intolerável naquela altura dos acontecimentos. Oswald foi chamado às falas, em reuniões quase diárias, e dentro de seus modos inconsequentes, prometeu dedicação total em seu trabalho, o que aparentemente tranqüilizou M., mas não os rapazes. É forçoso entender, por conta desses episódios, que a participação de Oswald na operação em curso esteve por um fio, só não ocorrendo a sua eliminação por absoluta falta de tempo em preparar outro laranja.

Assim, voltemos à janela do sexto andar do Depósito de Livros, na manhã festiva onde a população de Dallas aguardava ansiosamente a comitiva presidencial. Oswald havia recolhido parcialmente as persianas, buscando ter seu campo de visão desimpedido. Não sentia tremor ou qualquer reação fisiológica comprometedora, apenas a cabeça continuava perturbada pela mulher. Deixava transparecer os sintomas da paixão na hora errada. Até que ponto esse sentimento, que chegara abruptamente, tinha alguma chance? O que ele passaria a significar a partir deste dia? Oswald não tinha tempo ou condições para saber ao certo o que se passava na cabecinha da bela jovem. Aliás, onde estaria R. neste instante? Sim, era jovem, divorciada, havia tido alguns amantes, uns de peso, como Spelmann, Rosales... Aspectos que se confundiam com resquícios de podridão e com uma ou outra informação concreta, nada mais. O resto, era fruto da imaginação, e imaginação não faltava a Lee Oswald. Olhou para o relógio de pulso, 12:25, ato contínuo, um alarido mais forte, proveniente da sua esquerda, ao longo do percurso previsto para o presidente e seu séqüito. Significava que ele se aproximava, mais uns dois minutos, ou menos. Oswald esticou o braço direito, pegou sua arma, segurando-a firme com as duas mãos. Voltou a passar os olhos no público, que começava a rejubilar-se animadamente. Distinguiu, do outro lado da rua, sentado nos ombros do pai, um pequerrucho bastante animado, com a bandeira da pátria em uma das mãos. Resolveu observá-lo por uns segundos, sem um motivo especial. Pobre garoto, de nada sabia, de alguma coisa saberia no futuro, talvez o suficiente para odiar a ele, Oswald, pelos fatos ocorridos naquela tarde. Exasperou-se e, sem saber a razão, tentou esquadrinhar R. com a mira da arma, no meio da multidão. Como seria bom tê-la aqui, comigo, minha querida... Não podia mais perder tempo, ele escoava célere. Eu te adoro... não a deixarei por nada!, exclamou para si mais, ansioso, o homem de aparência fria, ao localizar por sua mira telescópica uma jovem muito parecida com R., aplaudindo saltitante o presidente. Oswald voltou a si, esticou o pescoço, percebendo os primeiros carros contornarem a esquina. Devagar, a caravana foi se aprumando pela rua, entre os batedores. O público se manifestava; Oswald levantou seu instrumento e o assestou na direção do homem sentado no banco de trás do Lincoln presidencial. Enquadrou o alvo, a nuca do presidente. Num átimo, suas convicções foram postas em jogo, turbilhonando os ideais mais ou menos claros com o desejo lancinante pela bela R. Sacudiu então bruscamente a cabeça, como a afastar os pensamentos e assim poder se concentrar no serviço. Fez mira, sentindo o suor escorrer incomodamente pelo corpo, um, dois, três, apertou o gatilho, imaginou ter acertado o alvo. Ao preparar a arma para o segundo golpe, outros estampidos ecoaram pela rua. Oswald tentou entender o que acontecia, a cabeça do presidente sendo jogada para trás, alguém mais estava participando do ataque, alguém do pessoal do M. Sentiu o corpo estremecer nos parcos segundos em que perdeu a noção das coisas. Aquilo não estava nos planos, por que não o avisaram que haveria mais gente...? Não tinha M. confiado nele para o serviço? Dúvida que poderia desfazer mais tarde, no encontro que teriam para acertar as contas. Mas ir a este encontro não seria temerário, agora que lhe assaltava essa possível armação? Talvez fosse melhor cair fora. E R.? Não podia abandoná-la, nessa altura dos acontecimentos. Teria de ir ao cinema para encontrá-la, se é que ela estaria à sua espera. Um tanto atarantado pelos acontecimentos, sem saber exatamente o que fazer, Oswald abandonou a arma ao lado da janela e saiu às pressas da sala do sexto andar do Depósito de Livros.

O homem, que teve o filhote sendo observado havia pouco por Lee Oswald, percebeu o movimento ligeiro na janela do sexto andar do edifício no canto da praça Dealey. Na rua, a confusão era total: os carros aceleravam, as pessoas iam tomando consciência do ocorrido, reagiam como podiam, gritavam, choravam, corriam ou se agachavam, assustadas e transtornadas. Policiais começaram a vasculhar a área, procurando adivinhar de onde partiram os tiros. Houve quem acreditasse que se tratasse de explosões do escapamento de uma das motos que comboiavam o presidente. Sendo assim, no meio dessa confusão generalizada, ninguém daria crédito a esse pai que presenciara tudo, ou quase tudo e que, com o filho nos ombros, insistia em apontar para a janela suspeita, sem forças para pronunciar palavra. Abaixou o braço, olhando para as persianas semicerradas e o fundo escuro. Trouxe o filho ao chão, sem perder de vista a janela. Se pudesse uma aproximação, com uma hipotética objetiva, deslocando-se no sentido do objeto - um desejo que lhe tomou a mente graças a seus impulsos de cineasta amador - teria a janela cada vez mais próxima. Cortaria, então, para um plano com ela a umas cinco jardas, permitindo que a tensão criada fosse sendo substituída pela curiosidade instigadora. Daí, o 'travelling' em grua prosseguiria até adentrar a sala. Uma panorâmica lenta perscrutaria seu interior, desvelando os utensílios da cena: um pequeno espaço em primeiro plano, duas mesas com papéis esparramados no chão, uma espingarda Manlicher-Carcano com mira telescópica abandonada, uma cadeira contendo um toca-discos em funcionamento, estantes recheadas de pacotes, mais ao fundo uma porta entreaberta. Faria um 'close' destacando o toca-discos, a agulha sobre o disco em movimento, um 'zoom in' vagaroso, o ruído da rua substituído pelo som tocado no aparelho, depois um corte para um plano sobre o toca-discos, fazendo a aproximação gradual até um plano fechado do selo. O estalo surdo, a agulha escorregando ao final do disco e seu retorno automático ao repouso. Por fim, a imagem em 'close-up' do selo destacando o título da música: "Prelude to a kiss".

(do livro A paixão inútil)

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18 novembro 2009

O destino de Brooks


Após quarenta anos encarcerado, o senhor Brooks conseguiu a liberdade. As condições em que a obteve, bem como seu crime não importam tanto quanto a análise de seu breve retorno à vida como um cidadão livre.

Brooks desde o momento em que sabe que estará livre se sente incomodado. Dentro do ônibus que o conduz para fora da prisão, tem a expressão desconfortável, de quem não aprova o desdobramento dos fatos.

Mas Brooks acede e de algum modo tenta se adaptar às circunstâncias. Dia após dia, experimenta o ritmo imponderável de uma realidade imponderável. Seu emprego como empacotador em um supermercado confirma as enormes dificuldades de assimilar o significado da liberdade.

Brooks não tem mais idade para novas adaptações na vida, e o pior, sente que o seu mundo ficou para trás. O mundo em que sabia lidar com as solicitações rudes, sem desafios, cujo único objetivo era manter-se vivo.

Nas ruas, perturba-se com desafios inesperados, deixa-se envolver em profunda incerteza. Compra uma corda bem resistente e antes de pendurar-se pelo pescoço, escreve na viga da pequena água furtada, Brooks esteve aqui.

Seu amigo Red Redding, que mais tarde passará pela mesma aflição (sem, porém, amargar o trágico final), é quem desvela o ato do amigo: ele institucionalizou-se.

O tempo o corroeu por dentro e o transformou num ataúde, à espera do próprio corpo. Tolerou ao longo dos anos a mesmice cotidiana, aceitando-a tal como um peixe acomoda-se ao aquário, satisfeito com a ração diária e com o cenário garantido.

Com o passar do tempo deixou de sonhar e, uma vez acordado, deixou de acalentar. Em uma palavra, Brooks institucionalizou-se à esperança comezinha, e dela não conseguiu sair vivo.


09 novembro 2009

Berlim

A porta de Brandemburgo, em algum momento antes de 1989


Lembro-me que o lançamento de Asas do Desejo, na Mostra de Cinema de SP (creio que em 1987) foi incrivelmente concorrida. Em uma das apresentações, mesmo chegando cedo na antiga Cinemateca (na Fradique Coutinho) a fila era imensa. Pude ver o filme logo depois, quando entrou em circuito comercial, e saí do cinema profundamente impressionado. Confesso que por dias não pensei em outra coisa senão naqueles anjos, em Peter Falk, na bela Marion... Fui absorvido pela força das personagens, pela beleza do roteiro, pelas cicatrizes da cidade retalhada e sobretudo, pelo complexo universo de situações singelas, que permeiam a narrativa. Malgrado meus esforços em escrever um ensaio sobre o filme de Wenders (em minha opinião, seu ápice cinematográfico) nunca consegui constituir uma abordagem decente, que pudesse dar a dimensão de meu encantamento pela obra.

Menos de dois anos depois, em fins de junho de 1989, desembarquei em Berlim. Solitário, em uma manhã cinzenta, o trem passando por cercas e postos de vigia. Estava um bocado inseguro, afinal adentrava uma cidade cuja universo simbólico era pautado por histórias de suspeições, espionagens, mortes, e adequadamente oculto por um... muro. Eram seis horas da manhã quando deixei minha bagagem na estação. Tateei às cegas pelas redondezas até sentar-me diante das vidraças do Café Haussner, olhando os primeiros movimentos do dia. A chuva caia torrencialmente e nada em Berlim me lembrava o universo simbólico atemorizante, muito menos a magia do filme de Wenders. Sobrepunha-se um sentimento de frustração por estar em uma cidade com tantos atrativos e completamente imobilizado por um componente inesperado, o mau tempo.

Aos poucos, porém, o dia limpou até surgir o sol de verão. Lancei-me pelas ruas da cidade, atravessei o Tiergarten e alcancei a 17 Juni, que compõe o eixo leste-oeste com a Unter dem Linden. Na época, o trajeto era interrompido pelo muro, defronte ao portão de Brandemburg. Contornei o muro até o Reichstag, que então era um museu de história alemã. Cheguei às margens do Spree e daí iniciei o regresso à estação. Estava em um périplo pela Europa e África que duraria quase três meses, e acreditava que poderia tomar um rápido contato com a cidade, para mais tarde realizar uma visita completa.

Embora grotesco, nada naquele momento indicava (aos olhos incautos) que o muro estivesse com os dias contados. Era sem dúvida uma afronta que não se explicava, apenas se impunha, como resultado da imponderável razão humana. Registrei em minhas anotações o sentimento de tristeza e impotência que perpassava os olhares das pessoas que o topavam.
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Retornaria após um ano e meio, já com a cidade sem muros. Era início de primavera, dias frios e encobertos. Desta feita ficaria cinco dias na cidade, circulando livremente por todos seus espaços vazios. Não sobrara nada da outrora importância geopolítica, o mundo tinha se transformado. Foi então que pude, sem dificuldades, recuperar a magia do filme que me marcara.


08 novembro 2009

Momentos de puro deleite




Holley Martins salta da carona de Calloway e se posiciona na alameda silenciosa, salpicada de folhas. Precisa trocar umas palavras com Anna Schmidt, esta mulher que lhe atrai de modo especial. As árvores com seus galhos arreganhados enfileram-se pelo caminho, aprofundando o cinza da paisagem invernal. Ao espectador, resta a progressiva aproximação de Anna, que se move ao longe, no centro da tela. Para Martins, será a derradeira chance de uma conversa e para isso aguarda a chegada da mulher, recostado em um carrinho carregado de galhos de árvores, à margem da aléia.

O som extradiegético é da cítara de Anton Karas, a preparar o desenlace do plano sequência, transe mágico de pouco mais de um minuto, e a animar, em conjunção com o movimento decidido de Anna, a composição da cena. Nas palavras de Graham Greene, "tive receio de que poucas pessoas continuassem sentadas durante a longa caminhada da garota (...) e que saíssem do cinema com a impressão de que o fim era tão convencional como o meu". Na verdade, o final do filme de Carol Reed difere do livro de Greene em uma sutil e, segundo ele, "brilhante descoberta".

Os passos de Anna por fim alcançam Martins e, prosseguindo no sentido da câmera, abandona o quadro. A paisagem torna-se definitivamente desolada. Martins parece não se surpreender com a indiferença de Anna, move-se o suficiente para acender um cigarro.



07 novembro 2009

Nada a declarar

Imagem: VTV (Venezuela)

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Fico eventualmente tentado a classificar Roberto Micheletti e seu governo golpista como uma espécie de desdobramento tardio do fascismo de farda, que prevaleceu na América Latina por longos trinta anos, locupletando-se com pavorosas aventuras políticas. Mas a verdade é que ele não tem as mesmas características, até porque a nação inspiradora dos golpes latino-americanos está em baixa. Como escreveu Isabel Allende, só não ocorreu golpe de estado nos Estados Unidos porque lá não existe embaixada dos Estados Unidos.

Não faço ideia do destino desses golpistas sem face, nem tampouco da resistência hondurenha e de Zelaya. O que posso dizer é que persiste a sombra de um espectro difuso, cujas palavras proclamadas perdem-se ao vento e cuja trama se esvai no nada. Micheletti é a figura que surge das páginas do terror risível, em que o espectador gargalha em vez de se assustar, porque não é o medo a essência do enredo, mas a comédia bufa. Seja como for, comporta-se como um ator de terceira categoria, que tomou o papel principal e resolve alterar todo o roteiro.

Vejam-no ladeado por um grupo bem fornido de figurantes, que volta e meia é convocado para atuar no patético espetáculo, e que estaria mais à vontade nas compras em Miami. Uma claque, um fundo montado artificialmente, assim como artificial é a expressão do chefe. As feições carecem de substância: trata-se de uma felicidade fingida, que não convence, que não faz diferença estar ali ou não. Qualquer semelhança com o vazio de pregnância do mundo globalizado, é mera coincidência...

Um tio meu comentou que gente dessa laia, em seu tempo de ação política, era considerada como lacaio, e a expressão completa era “lacaio a serviço do imperialismo ianque”. Retomo prazerosamente o termo: Micheletti não passa de um lacaio, a serviço de uma burguesia retrógrada e inconsequente de seu próprio país.



05 novembro 2009

Mi Buenos Aires querido

Juan Gelman
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Sentado al borde de uma silla desfondada,
mareado, enfermo, casi vivo,
escribo versos previamente llorados
por la ciudad donde naci.

Hay que atraparlos.
También aqui
nacieron hijos dulces mios
que entre tanto castigo te endulzan bellamente.
Hay que aprender a resistir.

Ni a irse
ni a quedarse.
A resistir.
Aunque es seguro
que habrá más penas y olvido.

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(do livro Gotán)
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02 novembro 2009

O regresso


A sala de estar. Os móveis em madeira rústica, o chão de lajotas cor de terra, tudo muito simples e funcional. Por sobre a mesa de trabalho, além dos papéis e dos livros esparramados, um retrato, o homem com a mulher e um casal de adolescentes, seus filhos, tendo ao fundo a paisagem bucólica das montanhas. Ao longo das jornadas de trabalho solitário, o homem se volta constantemente para a bela imagem familiar, tomada em uma primavera ensolarada e feliz. A apreciação se dá nos momentos de intervalo da escritura de seu romance e assim faz até que, numa adorável manhã, a imagem está suprimida de um dos jovens. Curioso detalhe que não o atinge, como se a falta significativa não lhe dissesse respeito. Ele prossegue concentrado na elaboração do primeiro conflito narrativo, o filho decidido a retirar-se da fazenda para assumir sua independência. O romance se entranha em recortes conturbados, os dias se sucedendo através das amplas janelas, diante da mesa de trabalho. Passam-se os dias e se volta para a foto, que se restringe a um casal maduro, sorridente. Sua memória não distingue o evento original, a imagem de uma família feliz, inspiração do argumento original de seu romance. No romance, a filha se enamorou, mudou-se para um país distante, sobrando ao casal a vida pouco laboriosa às voltas com a enorme propriedade. E passam-se os meses, noutra sossegada manhã está debruçado em seu trabalho, a fadiga a açodar-lhe a noção da realidade, em um momento morto deita as vistas na foto e observa sua silhueta bem disposta, solitária, tendo ao fundo as imponentes montanhas.

Avança a passos largos, não há tempo a perder na conclusão da trama, o personagem que se lamuria pela morte da mulher, por viver solitário, doente, em meio a crises alucinatórias... Então, em uma quieta manhã de outono, em que as folhas desprendem-se dos galhos para aterrar mansas sobre a vegetação desgrenhada, a fotografia registra nada além das ondulações suaves do terreno, até as elevações mais escarpadas, uma reprodução da imagem tomada do ponto de vista da mesa de trabalho, sobre a qual repousa um exemplar de um romance editado, O Regresso.

Pelas janelas, lá ao longe, desvela-se um pequeno ponto que ganha os contornos de um jovem, vindo das montanhas. Ele detém o passo para acender seu cigarro, aconchega-se junto à sombra de uma paineira e seu olhar se volta para a casa, abandonada e convidativa.


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