29 setembro 2023

No pasó


Salvador Allende não existiu


O texto abaixo foi publicado pouco antes de se completar 50 anos do golpe cívico-militar no Chile, na revista digital chilena, Anfibia. Foi escrito por Alvaro Bisama e divulgado por um querido amigo chileno em sua rede social. Trata-se de um relato que retoma o universo paralelo criado pelo negacionismo, que rechaça, dentre outros absurdos, que houve golpe contra as instituições e contra os cidadãos chilenos. A sucessão de negações, longe de nos convencer da existência de uma outra realidade, apenas confirma os fatos históricos e, consequentemente, evidencia a tragédia que se abateu no Chile. 

O espírito negacionista dessa gente, antes calada, viceja animadamente pelo espaço público, arrogando verdades e exigindo desculpas. Por certo não irá se abalar com esse discurso comunista. Mas uma coisa ficará colada em suas testas, o ridículo de assumirem o que assumem, e de proclamarem a burrice como um estilo de vida e um modo de pensar. E não resta outra alternativa senão prosseguirmos na denúncia desse ridículo e dessa burrice, que como sabemos, são as marca do caráter abjeto.

O texto original é por demais longo, tem duas laudas e meia em espaço simples. Tomei a liberdade de traduzir uma parcela importante, o início, parte do miolo e o fim, retirando trechos específicos sobre a realidade chilena. Desse modo, consigo publicar a versão em português ainda no mês de setembro, mas depois do aniversário da morte de Neruda, referência do meu propósito inicial para concluir a tradução, que ocorreu em 23 de setembro. Ao final, transcrevo o endereço da revista para quem quiser conhecer o artigo completo. 


NÃO ACONTECEU
por Alvaro Bisama

Não aconteceu. Não ocorreu. Foi uma invenção. Não houve golpe de estado. A Armada não se sublevou. O Exército não foi golpista ou traidor. Menos Carabineiros. Não houve Dina, nem CNI. Não teve presos políticos, nem ataques, nem militares posicionados na esquina. Não mataram a Victor Jara. Não o torturaram. O que se passou com ele foi uma mentira a mais, os inimigos do Chile nunca se detêm. Ninguém bombardeou La Moneda. Caiu sozinha. Os aviões apenas faziam acrobacias sobre Santiago. Os tanques não rodearam nenhum edifício. Ninguém disparou nem encheu de balaços os muros do centro. Não mataram a Orlando Letelier, nem a Carlos Prats. Um invento. (...) Ninguém morreu na tortura. Ninguém agonizou nos calabouços. Ninguém usou corvos. Nenhum corpo foi quebrado, mutilado, cortado. São contos, farsas, inventos. Ninguém proscreveu os partidos políticos. Ninguém perseguiu aos socialistas, aos comunistas, o MIR e o MAPU. Não houve exilados. (...) Ninguém revisou e censurou os textos escolares e as bibliotecas. Não se queimaram livros. Os militares não disseram que faziam fogo com eles para aquecer as mãos. Ninguém inundou os colégios e escolas com álbuns de figurinhas da Guerra do Pacífico, com ilustrações de sangue da batalha de Concepción, das façanhas de nossos valentes soldados. Não houve civis que colaboraram. Não houve sapos ou delatores. Ninguém ficou feliz ao denunciar o vizinho ou ao colega. (...) Ninguém teve que ver como o acento sibilino de Pinochet era celebrado como uma épica nacional, nem aguentar seu tom que encobria o desprezo, toda essa brutalidade disfarçada. Ninguém identificou esse acento com o terror. (...)

Nada aconteceu. No Chile coisa alguma ocorre. A história muda por puro desejo ou vontade. O passado não é um feito senão uma ficção criada por capricho, uma calúnia que se repete até que se torne verdade, um pensamento mágico que reescreve a realidade. Aí, o golpe de 1973 foi uma mentira, não existiu, é algo que impede que o pobre povo chileno se una. Recordar o golpe é uma baixeza, uma podridão, um ato de violência e uma celebração do falso, uma demonstração do ódio antes que da justiça ou da memória. No calendário esse dia deve ser apagado. Os chilenos não foram exterminados como ratos. As vítimas deveriam pedir perdão aos algozes. Os torturados, a seus torturadores. Os fantasmas dos corpos insepultos, a seus assassinos. Toda a história do Chile não é mais que uma lenda urbana. Não houve ditadura. Não foi uma ditadura. Não durou 17 anos. Nunca aconteceu nada.

Artigo publicado originalmente em espanhol, pela revista digital Anfíbia, e encontrado no endereço: https://www.revistaanfibia.cl/no- 



21 setembro 2023

As ameaças lodacentas


Vale a pena conferir

A característica que identifico nessa direita política, que renasce por aqui e em todas as partes, é, além de sua miséria argumentativa, a sua ousadia canalha. Faço meu o desabafo recente do cantor e compositor Lenine, tudo aconteceu "como se cada pessoa que carregasse um sentimento muito profundo de fracasso, viu a possibilidade de expor seu monstro sem nenhum escrúpulo (...)". Aí existem duas ideias emblemáticas, a do profundo 'fracasso', que alimenta toda aquela franja de cidadãos incompetentes que se acomodam nas delícias da ignorância, onde qualquer esforço do intelecto para superar pelo conhecimento o desconhecido torna-se uma tarefa ingrata, e com o tempo, desnecessária. O outro ponto, o 'monstro sem nenhum escrúpulo', que naturalmente nasce como um manifesto perturbador dessa ignorância, como uma resposta pronta para os desafios que não foram superados. Logo, um direitista dessa lavra não apenas é um deslocado de seu tempo, como um covarde moral.

Nesses dias em que se completou 50 anos do fatídico golpe cívico-militar no Chile, revi muitos pequenos vídeos da época, vídeos chilenos ou produzidos por televisões estrangeiras. De modo reiterado, os representantes do setor conservador da sociedade chilena se referiam a Salvador Allende e aos partidos da Unidade Popular como representantes de ideias políticas e projetos ideológicos distintos dos seus. Sem angústia ou desprezo na palavra. Por vezes, surgia uma análise mais dura, mas que exalava algum respeito à figura do governo opositor. Eram tempos de fratura democrática, e seus substratos ainda estavam muito arraigados na sociedade chilena. O trabalho voraz da construção do inimigo social levaria décadas, cuja linha básica tornou-se na arguição grosseira, esvaziada, xenófoba, essa frequência discursiva chula e rotineira que cansamos de assistir hoje em dia, reprodutora de lugares-comuns, de medos arcaicos que espreitam ao redor e que precisam ser combatidos. De heróis formidáveis que por conta dos medos, são clamados para retornar à ribalta. 

Causa-me surpresa, e que por muito tempo foi vergonha, essa espécie de enaltecimento do individualismo, como um fim a ser alcançado para que o mundo funcione e seja competitivo, e onde o sentido cristão de bem-estar não exclui andar armado. Causa-me surpresa, para não dizer desprezo, ao deparar com uma alma cambaleante em sua autossuficiência metodológica, assimilada em prestações pelos cantos obscuros da vida. Sempre para justificar sua virtude e sua penúria. As certezas impudicas dessa grande casta de subalternos fazem com que estejam mais próximos do infortúnio crônico, do que do sucesso a qualquer preço que lhes é prometido. Têm consciência disso, mas como diria o nosso Lenine, não há o que se lamentar: trata-se de canalhice, de dissimulação que precisa ser combatida.


 

11 setembro 2023

O fim da experiência chilena

Salvador Allende

Já se passaram 50 anos. Não tenho lembranças de quando ocorreu, nem do fim, nem do começo. Sim, porque foi em um mês de setembro que ocorreu a vitória eleitoral, e em um setembro triste o golpe insidioso. Fui aos poucos, ao longo dos anos, montando o quebra-cabeças dessa experiência fragmentada por balaços, traições e desaparecimentos. Aos 14 anos tinha nenhuma referência sobre o que tinha acontecido, o que significava o socialismo com empanadas e vinho tinto. Aos poucos fui tomando conhecimento, viagens a Santiago, recuperação de arquivos sonoros, os filmes de Costa-Gavras, o interesse por leituras que começaram a surgir com regularidade. 

Há poucos anos, publiquei com Mônica um artigo que me revolveu as entranhas, Socialismo con olor a empanadas y vino tinto: memórias radiofônicas da derrubada de Salvador Allende (Revista ALAIC). Me emocionei na primeira leitura, em um pequeno congresso na Universidade de São Caetano, quando apresentamos o texto. Hoje, "as feridas" estão cicatrizadas, não me abalo com a narrativa cruel, desoladora; a própria derrota já não me parece um fracasso, e se não vejo com confiança a retomada de uma experiência de governo parecida (por diversas razões), ao menos sua marca se perpetua de modo inconteste, se faz heroica, e mesmo na derrota, se mostra inspiradora. 

Foram muitas hipóteses formuladas, em que considerei as linhas ucrônicas de desdobramento: o que teria acontecido se... Hoje, apenas ouço o metal tranquilo da voz de Allende propagar o discurso final com lucidez e coragem, e o importante acaba sendo isso, a lembrança dos acontecimentos, e compreender, com o passar dos anos, que os fracassos são parte intrínseca da audácia, o que nos faz debruçar, sempre com outros olhos, sobre os detalhes dessa notável experiência social e política.