18 março 2011

Desintegração da diplomacia



A se dar algum crédito nas informações que nos chegam das agências noticiosas hegemônicas, tudo está pronto para a intervenção militar na Líbia. França está pronta para atacar a Líbia com aval da ONU, estampa a manchete principal no sítio Globo.com. Em um trecho da matéria, afirma Hillary Clinton, Vamos continuar a trabalhar com nossos parceiros da comunidade internacional para pressionar Kadhafi a sair e vamos apoiar as aspirações legítimas do povo líbio.

O que seria esse apoio às aspirações legítimas do povo líbio, senão um jogo de retórica para encobrir os interesses do Ocidente aos recursos minerais do país? No portal do jornal O Estado de SP, o discurso surge sem tergiversações, Obama dá ultimato a Kadafi, seguindo um texto de cinco linhas. Nenhuma explicação, nenhum contexto, apenas o destaque das palavras de ordem, de acordo com o velho manual imperialista. E no UOL, França diz que está tudo pronto para intervir na Líbia.

Mal as tintas da resolução do Conselho de Segurança da ONU secaram no papel, temos o Ocidente sedento para invadir, para restaurar a democracia na Líbia, quando se sabe que o que menos as potências industriais acalentam é instaurar a democracia, na Líbia ou onde quer que seja. Um cheiro de Iraque 2003 no ar, aquela história de que era imprescindível atacar para neutralizar as armas de destruição maciça. Puro blefe, e como vemos, até hoje os soldados estadunidenses estão lá em seu encalço...

Não tenho o menor interesse em defender Kadafi, mas considero um absurdo a rapidez da implementação das decisões em andamento. Não há diplomacia, não há satisfação à opinião pública. Decisões distintas para crises semelhantes. A política de estado de Israel tem plena liberdade de ação para agredir a população palestina em Gaza. Ou como agora, no Iêmen, nenhuma comoção quando as forças do governo de Abdullah Saleh, há 32 anos no poder, abrem fogo contra a população, deixando 46 mortos e mais de cem feridos. O Iêmen não tem petróleo.

Os acontecimentos políticos no norte da África e Oriente Médio receberam desde sempre tratamento desigual, seja pelo tal Conselho de Segurança da ONU, seja pelas agências noticiosas internacionais. Os governos da Tunísia e do Egito eram tidos como estáveis, e apoiados pelo Ocidente. E nem um pio sobre as condições de vida nesses países. Como se sabe, no Egito 40% da população vivia (e ainda vive) abaixo da linha da pobreza, o que significa, segundo o Banco Mundial, menos de um dólar por dia; 54% dos empregos são informais, e 44% da força de trabalho é analfabeta...

Quando Ben Ali e Mubarak foram enxotados pela população (sem ameaças de intervenção das potências industriais, a despeito do caos e violência ocorridos), os fatos decorrentes de suas tiranias surgiram timidamente, contrapondo pela primeira vez a ideia de paraísos turísticos. Foram raras as oportunidades em que contemplei uma análise midiática denunciando as atrocidades contra a oposição política nesses países. E por que? Porque eram países alinhados aos interesses das potências industriais do ocidente.

Do silêncio entre os amigos, para as bravatas contra os inimigos. Até há bem pouco, Kadafi era acolhido nos fóruns mundiais pela redefinição de seu papel político, por seu petróleo, por seus polpudos investimentos financeiros. Recebeu o beija-mão de Berlusconi, apoiou com grana a candidatura de Sarkozy (que agora deseja atacá-lo), pagou a peso de ouro espetáculos pop em Trípoli (e uns tantos artistas resolveram limpar as mãos doando os cachês), enfim, em perfeita sintonia com o establishment dominante.

Agora, o desejo abrupto e vigoroso de se guerrear, de se avançar para destituir o tirano do poder. Quando não há mais lógica nas relações internacionais, esqueça a diplomacia. Estamos em tempos onde a palavra sucumbe ao gesto histriônico, marcado pela repercussão espetaculosa. E surge odienta, arrogante, incondicional, sem a menor intenção de negociar. Mais uma vez a desventura no Iraque e Afeganistão demonstra o quão equivocado é burlar da diplomacia, fazendo rugir os tambores da força.

Nada resta senão acompanharmos os desdobramentos de mais um embuste na política internacional. A evolução dos fatos e dos relatos emergirão para justificar os anseios das potências industriais. E não conte com a misericórdia de seus dirigentes, nem com o ludibrioso Conselho de Segurança da ONU. E tampouco com as verdades proclamadas pelas agências noticiosas hegemônicas!



09 março 2011

El Gato Díaz


Gato Diaz é uma dessas personagens marcantes, que uma vez lançadas ao proscênio, cumprem seu papel e se despedem com um gesto memorável. Assim como todos nós deveríamos cumprir nossos desígnios, Gato Díaz submete-se ao seu, sem alarde, movido pelo desejo do coração, o amor de la rubia de Ferreira. Talvez seja esse o punctum secreto do relato de Osvaldo Soriano em El penal más largo del mundo, o ensejo oculto que movimenta todas as peças da trama.

O jogo final, a emoção da torcida, o pênalti apontado no último minuto, o soco dado por Colo Rivero, que fez adormecer o árbitro Hermínio Silva, o adiamento por uma semana do lance derradeiro que decidiria o campeonato, a promessa de la rubia ao Gato Díaz, de que aceitaria o noivado se pegasse o pênalti, o ataque de epilepsia em Hermínio Silva, que faz com que o pênalti, chutado por Constante Gauna e defendido por Gato Díaz, seja batido pela segunda vez, todos esses fatos surgem adensados em um registro sutil, prazenteiro, que desvela a natureza de personagens contidos em um mundo de sentimentos genuínos, em um cantinho perdido da Patagônia. 

Mas nada, absolutamente nada, em minha opinião, se equipara à fineza do relato de Soriano quando ele demonstra a convicção de Gato Díaz de que defenderia pela segunda vez o pênalti, como se tratasse de um esforço banal... 'Então, o Gato Díaz apartou os que queriam acertar (o juiz) e disse que tinha de apressar-se, porque essa noite ele teria um encontro e uma promessa, e assim colocou-se mais uma vez sob o arco'...

E o que seria o desfecho natural de uma narrativa bem construída, a segunda defesa e o amor eterno de la rubia, torna-se um momento notável do passado, encoberto pelas brumas do tempo... Uma rápida elipse nos conduz à sequência final, que ameniza o clímax da defesa acompanhada por toda uma cidade, na exata proporção que o fato confere ao seu personagem principal, na breve continuidade do conto, a aura propícia de um mito.

Dois anos mais tarde, o Gato Díaz casado não com a rubia de Ferreira, mas com a irmã de Colo Rivero, está diante do jovem Soriano, o narrador, que tem um pênalti para si e o converte. Ao levantar-se, o goleiro lhe diz, 'Boa garoto, algum dia, quando for velho, estará a dizer que fizeste um gol no Gato Díaz, mas ninguém irá te acreditar'...

-o-

Foi um dos pequenos prazeres que me envolveram neste carnaval. Nada das mazelas bigbrotherianas, nada de notícias da Líbia, produzidas pelo oligopólio midiático. Aderi de corpo e alma ao tempo generoso, esse do ócio abrangente, aprofundando minha sensação de bem-estar com o mundo. Como as personagens do bucólico rincão patagônico, sem se preocupar com os caminhos, já que eles se definem com nossas escolhas... e com a firme convicção de que as boas surpresas da vida ainda estão por se pronunciar...


04 março 2011

Torpor


espaços urbanos, catacumbas humanas...


De sua parte, o senhor B. experimentava o desvario indigesto da especificidade, sensação que há muito não sentia. Os delírios febrís começaram a cobrar seu tributo tão logo se ele se estendeu por sob as cobertas,

o mosaico diabólico movendo suas peças em um rearranjo longe de ser perfeito, mas que o distraía para a sequência...

a música entre ecos, sinos, sinetas, o ranger de metais, sons acústicos, a voz modulada balbuciando frases desconexas...

a imagem do céu cinzento, ao longe o bramir das ondas rebentando na encosta rochosa, bateria e baixo, a voz modulada, 'look at the sky...', um soturno trompete, ao longe o suave toque, como a marcação musical, em tempo sincronizado... a voz modulada ganhando feições distorcidas, repetindo 'look at the sky...' e junto ao choro de uma criança, o mar bravio, a brisa fria de um cinza chumbo... o senhor B. lembra-se que deve ir ao encontro com a senhora M... 

... o vento o abraça solene, demoradamente, imobiliza-o em crescentes incertezas... tem o desejo de ir à beira-mar... a música entre ecos, o baixo acelerando a melodia, a nota esgarçada de um sintetizador, o corpo úmido... pensa que já é quinta feira, 'Não, não...' e sorri, porque gosta da reminiscência, um achado tão doce em uma jornada tão desconfortável... e sorri e as imagens se desvanecem logo ao surgirem, nenhum sentimento nem tampouco as visões do torpor persistem...


... o senhor B. volta-se para o outro lado, desaparecem as imagens e os sons por um instante, para ressurgirem no outro, pausados, distintos, agora as palavras do final de ano, um garçon em Berlim o convida para um drinque, '...this is champagne... merry christmas...', está em Berlim e o salão tão comum, gente transitando, o frio que vem de fora e penetra as grossas lãs... o senhor B. agora transita pelas ruas recobertas de neve... o som modulado, o prato da bateria delicadamente ressonado, o trompete... um jazz com batida rítmica, o baixo... 

... um tremor do corpo, o senhor B. não se sente confortável, mas as alucinações febris não o deixam, torna-se seu refém e tem consciência que enquanto a febre persistir, estará imerso em visões e sentimentos desconexos, imprecisos... lembra-se que tem um encontro, não pode faltar porque deseja dizer coisas muito importantes... a senhora M. talvez entenda um pequeno atraso, mas não esse atraso de duas horas... o café está vazio, as atendentes se esforçam para cobrir o sorriso e continuam com seus afazeres por trás do balcão...

... o senhor B. se aproxima, 'Por acaso viram a senhora M.?', ao que a atendente mais velha volta-lhe as costas, proferindo algo... 'O que disse, senhora?'... insiste o senhor B. e ela bem que se volta, sem o encarar diretamente... as três agora estão juntas, elas cozinham em um caldeirão atrás do balcão, são as três bruxas de Macbeth, o senhor B. sente bater-lhe às costas, é o garçon, 'I am the boss, this is champagne, merry christmas...

... um vago desejo de levantar da cama é logo portergado pela indisposição, então o senhor B. adormece por um lapso breve, para situar-se numa semiconsciência turva, e sente o corpo encharcado, e sabe que não conseguirá discernir se é hoje ou se é amanhã, e o encontro que não pode faltar, que não quer faltar... a batida ritmica, o sintetizador, um eco ressoando os instrumentos de percussão... a boca seca, talvez um café, mas a senhora M. não veio ao encontro... 

... dois alunos o aguardam do lado de fora, querem saber da prova, 'Não, depois...', e avança por sob a chuva fina, 'O céu ainda plúmbeo, penso que continuará assim por um bom tempo...' reflete o senhor B, empapado em suor, e chega a uma biblioteca vazia, os ecos dos sinos e dos pratos anunciando o desconsolo do desvario febril, mais e mais uma vez... e a incerteza de que encontrará a senhora M. com suas roupas de inverno, o grosso e aconchegante cachecol de flanela... 

... 'Onde você o comprou?', pergunta o senhor B. aproveitando que a vê de passagem, mas a senhora M. não se detém e prossegue em seu caminho, com a bolsa e os cadernos e os livros, e dobra o corredor... e o suave trompete, a batida ritmica, o baixo acústico, a voz mixada que não abandonam o sono do senhor B...