20 dezembro 2009

Um fato inesperado


Apareceram furtivamente e disseram que me levariam detido. Foram lacônicos, A partir de agora você está à disposição da justiça. Cheguei a ensaiar uma argumentação em minha defesa, mas sucumbi diante da apresentação do meu crime: não consumia nada havia dois dias, o que era contra a lei.
O homem mais baixo até que procurou ser polido em suas poucas palavras, Não se aflija, com um bom advogado e alguma sorte você se safa dessa. Franziu o cenho e acrescentou, Bem, você sabe, vai depender do andamento das coisas... deixando vago o que queria dizer. O mais alto manteve sempre um silêncio intrigante, dando às vezes a nítida impressão de que saboreava a situação. Lembro que vestiam ternos negros e mesmo dentro de casa, prosseguiam portando seus chapéus e os óculos escuros. Apresentaram-se com o mesmo nome, João, o que produzia uma pequena artimanha, pois não havendo como identificá-los, evitavam convocações para o tribunal. Não demonstravam pressa: o grande sentou-se numa poltrona, após ir à cozinha e trazer um copo de água, abriu sua maleta e retirou um computador portátil, onde passou a preencher formulários virtuais, completando informes sobre minha apreensão. Eu quis saber se teria uma cópia daqueles registros, ao que ele apenas se limitou a erguer a mão esquerda, como a dizer Quieto! Começou com as perguntas, o número de cartão de crédito, nomes das lojas de eletrodomésticos que eu freqüentara nos últimos dois meses, o preço de um Atza 366 Ford, modelo convencional, se eu costumava comprar pipocas antes de uma sessão de cinema, quantos tipos de comida para cães eu conhecia... O mais baixo, ao meu lado, acompanhava o interrogatório com um ar enfastiado, mastigando amendoins. `A minha proposta para que se servisse de uma cerveja, disse-me polidamente que não bebia em serviço. Perguntei então se eu poderia me servir de uma latinha, ao que me respondeu, Talvez não seja apropriado, Joseph. Eu sabia que a lei era severa com quem não adquirisse bens de consumo durante um certo tempo, mas dois dias!? Tentei argumentar sobre minha situação financeira e outra vez o grandão levantou a mão, desta vez demonstrando o semblante menos zangado, e prosseguiu a digitação com um único dedo, o indicador da mão direita. Foi um trabalho que levou um quarto de hora. O pequeno levantou-se e me perguntou onde havia uma maleta, queria adiantar as coisas separando umas roupas e acessórios de higiene pessoal. Ao cabo das perguntas, permitiram-me ajustar os terminais domésticos, programando-os para as tarefas diárias: limpeza dos carpetes, degelo do congelador, alimentação dos cães. Nesse meio tempo, o pequeno gravou uma mensagem oficial sobre minha detenção na secretária eletrônica. Quando pareceu tudo pronto, ele amenizou seu papel de policial, dando-me o direito para dois contatos eletrônicos. Pensei um instante e liguei para Helena, dizendo-lhe que me ausentaria por uns tempos. Como não tinha advogado e mais ninguém interessante para falar, abri mão do segundo contato.
Passamos a esperar pelo grandão. Entramos num momento morno, de pouca movimentação e nenhum desejo especial. Fiz um derradeiro esforço assertivo, Rapazes, estou desempregado há dois meses e..., ao que o grandão cortou-me outra vez levantando a mão, Não existe jurisprudência em seu caso!, acrescentou e fechou o seu notebook. Tentei entender essa questão de jurisprudência, enquanto o pequeno deixava escapar um sorrisinho sinistro. Então vamos!, pediu-me o grande, sem interesse em prosseguir no debate. Colocaram-me a argola platinada no pescoço, com a qual me tornei definitivamente um prisioneiro e dirigimo-nos à viatura. Já na calçada, manifestei o desejo de levar o mp3. Esqueça Joseph, acabaram-se as suas prerrogativas!, esgrimiu ainda uma vez o maior deles, em seu saber jurídico dispensável.
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17 dezembro 2009

Mal o vejo


De onde estou, não consigo desvelar as faces dos passantes. Vejo-os caminhando, ora céleres, ora em grupos, vestidos de capotes nos dias frios ou munidos de guarda-chuvas nos dias chuvosos. Mas nenhuma referência de suas expressões, se estão felizes ou desanimados, indiferentes ou tensos. Em minha situação isso ajudaria muito a passar as horas intermináveis, que apenas se diluem para que outras as substituam. E assim aguardo os acontecimentos, voltado para o movimento externo, uma vez que há muito o movimento interno se resume às visitas do enfermeiro que me acompanha, uma logo pela manhã, quando me traz o desjejum e troca o recipiente cujo conteúdo me adentra pelas veias, e à tardezinha, quando me traz o jantar e me ajuda a deixar a janela para recolher-me ao leito. E é isso. Ultimamente, nenhuma palavra. Após a refeição, passo a compartilhar da brancura absoluta de meu quarto e de um ou outro ruído abafado produzido nas dependências do hospital. Por isso, minha ansiedade pela chegada da manhã, onde posso retomar o meu posto na janela e acompanhar o deslizar de pessoas, seis andares abaixo. Vendo-as, também posso imaginar suas vidas. Poderia me interessar pelo entorno, a paisagem bucólica do parque, sua paz e seus meandros verdejantes, seus pequenos animais silvestres, mas nesta reta final só me interessam os humanos. Talvez porque estejam numa distância segura e não façam ideia da minha existência, o importante é que os observo e os imagino. Poderia dizer que me divirto com isso, mas não é verdade. Sobretudo depois que conheci o senhor K., morador de um pequeno conjunto de sobrados, bem à direita do parque. Sei quando sai de casa, quando regressa, que é friorento e que nos fins de semana quentes gosta de passear com seu cãozinho beagle. Imagino que seja um homem amargurado, mas sereno diante das dificuldades, o que me faz pensar que seja a única pessoa com quem gostaria de trocar umas palavras. Hoje pela manhã, acompanhei seus passos regulares até entrada do parque, quando subitamente se deteve. Em circunstâncias normais seguiria pela alameda dos pinheiros, porém ficou ali parado, olhando para o chão, com as mãos nos bolsos. Um gorro cinzento o protegia da garoa fina, e nem o risco de se molhar o afastou daquele ponto. Permaneceu por um largo tempo dando pequenos volteios, desolado em sua indecisão.


16 dezembro 2009

Gostava tanto de você


Lembro-me do almoço de final de ano de 197... todos reunidos como nunca antes, minha tenra idade me permitia acompanhar, deslumbrado, a agilidade verbal de meus tios, felizes, a contagiar toda a casa. Meus primos mais velhos também participavam da animação, e eu guardo essas reminiscências fugidias de uma alegria que era gostosa de se participar...

Um dos primos, com seus vinte anos, se aproximou e perguntou como estava na escola. Quando lhe respondi, encabulado como sempre ficava diante das pessoas mais velhas, ele sorriu, um sorriso aberto e jovial, e me disse 'Continue, você tem todo o futuro pela frente'... e retornou para a conversa dos adultos...

Dois anos mais tarde, a reunião na casa com os mesmos atores se deu por uma circunstância trágica: meu primo morrera de um fulminante ataque do coração, no dia das mães...

Lembro-me de meus tios - seus pais - em uma apatia inconsolável, do lado de fora da casa. Lembro-me do movimento sem esperanças que se derramava no interior da sala, e mais tarde, com tudo terminado, da inscrição na lápide, um trecho da letra de Gostava tanto de você, cantada por Tim Maia...

Muitos, naquela casa, só teriam um passado pela frente...



15 dezembro 2009

Desventura


Faz muitos anos, conheci um homem que viveu um átimo de felicidade, perdeu-se nos descaminhos que a vida proporciona e definhou no opróbrio absoluto. Sua história não difere das histórias dos homens comuns, mas o fato de eu ter acompanhado a parte final de sua existência a transforma em uma tragédia cujos reflexos alcançam-me de um modo especial. Como posso contá-la sem omitir as estesias da juventude, as fragilidades delirantes da alma, as sombras da ausência?
Tudo começou em um lugar a muitos quilômetros daqui, longínquo o suficiente para o tempo correr sem despertar transformações e pequeno o necessário para não difundir a cobiça. As jornadas semanais de labuta apenas significavam a separação de um fim de semana de outro, quando os corações se engalfinhavam e a razão se perdia nas emoções dos footings diante da igreja. Os casais formados gostavam de se encontrar e de bebericar um martini no Ibrahim e, em dois sábados por mês, dançar nos bailes do clube ao som da banda do Gorni. Os jovens da cidadezinha viviam em função desses prazeres. E foi nesse restrito circuito de encontros que conheceu o amor da sua vida e para ela se dedicou de corpo e alma. Paixão dilacerante, que lhe custou os pensamentos de cada jornada e o sono das noites, e mais tarde lhe custaria a própria vida.
Mas o seu amor, o seu amor foi maior do que poderia ser. Jamais soube declará-lo como o sentia, jamais soube vivenciá-lo como o contemplava. Se se comportou de modo injusto ou incoerente, ela por certo o alertou. Seja como for, o rumor dos anos foi mais duro do que o esperado e os amigos se dispersaram, o emprego tornou-se obsoleto, a cidade permaneceu pequena demais para um convívio sem escape, desgastado, um huis-clos mortal. Agora posso afirmar, ele me marcou como um bonachão mimado, confiante demais em seus sonhos e atuante de menos na realidade. Talvez acreditasse que o tempo do mundo não se esgotasse, ou as pessoas ao seu redor não se cansassem da mesmice... De sua mulher, guardo o charme elegante e discreto, mas sobretudo a fina perspicácia, sintonizada com as asperezas do cotidiano. A mudança para a metrópole não trouxe a realização de dias melhores, a mulher partiu com os filhos e a ele restou a amargura. Lembro-me de uma época em que ia buscá-lo para jogar cartas com meu pai e os amigos em comum, em encontros marcados por boas histórias, mas seu entusiasmo já se mostrava declinante e seu olhar, bem, isso era o que mais impressionava, não recendia vida, ao contrário, fechava-se em uma opacidade voltada para o infinito do íntimo, ainda que forjasse uma distraída expressão, adornada de ora em vez por um sorriso mortiço, ou por uma lágrima fugidia...
Passaram-se os anos e numa bela manhã de domingo, meu pai recebeu uma chamada. Convidou-me a acompanhá-lo ao hospital. Na verdade, constatamos que não se tratava exatamente de um hospital, mas de um sanatório decadente, e lá o encontramos em um quarto que mais parecia uma despensa, que exalava o olor pútrido da morte. Estava ali, sem fala, sem dentes, sem forças para se expressar, os cabelos desgrenhados, derribado em um catre qualquer. No tempo em que consegui observá-lo, procurei entender como era possível para um homem se esfacelar em um punhado de anos, envolto na redoma de seus pensamentos. Os demais pacientes perambulavam sem um caminho traçado, vestidos com camisolas alvas, como almas paridas e abandonadas. Ao se aperceber da presença de meu pai, uma luz inundou-lhe o semblante e o esforço de seus gestos apenas expuseram o arremedo dos traços humanos, flamejantes tal qual a chama de um candeeiro em meio à borrasca. Quis se expressar, e emitiu um som gutural longo, inapreensível, para em seguida tornar-se um candeeiro sem vida.
Alijado de suas próprias decisões, restava-lhe a memória de um tempo em que acreditou ser feliz, como também as lembranças dos descaminhos indesejados até prostrar-se naquele grabato repulsivo. No fundo, creio que jamais conseguiu avaliar seu ostracismo terminal, mas foi visível que na presença de meu pai, recuperou por um átimo o discernimento dos fatos, e quem sabe vislumbrou a fagulha de uma nova esperança. Esforcei-me por imaginar o fog dos cigarros em uma noite de drinks no Ibrahim, as voltas em torno da igreja, as belas mulheres de saias rodadas, os casais de mãos dadas, entre sorrisos e expectativas... Imaginei o salão ao som das salsas tocadas pelo Gorni, as danças coladinhas e os beijos roubados nas penumbras mais afastadas, cenário que emanava o aroma da imortalidade.
De volta ao presente, não restou ao meu bom pai senão segurar as mãos débeis do amigo. Sobreviveria uma semana, sepultando consigo um amor imenso, em sua incompletude definitiva.
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11 dezembro 2009

Pueyrredón


Já havia me esquecido o quão distante localizava-se a Pueyrredón. Claro, isso depende do ponto espacial em que se toma a questão. Falo em relação à praça San Martin, ou da praça de Mayo, ou mesmo do Congresso. No final dos anos oitenta, na companhia dos meus amigos Klaus, Sérgio e Fred, percorríamos sem pestanejar qualquer distância até o San Agustín, nosso hotel na Pueyrredon, após horas desbravando a centralidade portenha. Nem metrô, nem táxi, era a pé mesmo, quinze, vinte quadras, de um lado para o outro, de um café a outro, de uma livraria a outra. À noite tirávamos para descansar, tomando una cerveza em algum lugar agradável, falando das peripécias, rindo de nada, antes de voltarmos ao San Agustín. Na portaria, um senhor bastante avançado na idade aguardava seus hóspedes, com um semblante de disfarçada desconfiança. Gusmán era seu nome, e logo o apelidamos de El viejo, el viejo Gusmán. Com seus movimentos pausados, dava acolhida a forasteiros extemporâneos como nós, sem abandonar o balcão centenário. A entrada do San Agustín era linda, bem preservada, a escadaria que fechava numa portaria ampla e acarpetada, tendo ao fundo um ascensor com capacidade para três ou quatro, de porta sanfonada, cujo fosso em estrutura metálica permitia acompanhar a passagem dos andares. O hotel tinha sido uma descoberta dos alemães Klaus e Fred, em algum manual de viagem alternativo que eles traziam, e caiu ao gosto dos quatro principalmente pela pechincha da diária e pela simpatia do pedaço. O importante era que estávamos num rincão livre de turistas, relativamente sossegado, e se necessário, a apenas três quadras do metrô.

Dois anos mais tarde regressei à cidade e optei novamente por ficar no San Agustín. Lá estava el viejo Gusmán, mais arquejado, com o semblante visivelmente mais enfastiado, o que não impediu que abrisse um belo sorriso de boas vindas. Guardara uma empatia comigo e abriu-se a contar histórias sobre seu passado, que se misturava com o da cidade, a vida noturna, histórias de Gardel e de Perón, da seleção argentina de Rattin, na Copa de 1966 e das lutas de Oscar Bonavena e Carlos Monzón no Luna Park, anos mais tarde. A surpresa foi ele me oferecer o mesmo quarto da estada anterior. Sua jornada de trabalho tinha mudado para o dia, por causa da saúde, de modo que eu fechava as noites no soturno Café La Aurora, com seu ar vetusto e marginal, de iluminação débil e saborosas medialunas. O atendimento era aceitável e a tranquilidade também, de modo que permanecia ali, tomando meu café cortado e escrevendo sobre as caminhadas diárias, acariciado pelas sobras do vento que chegava mansamente do Prata. A região já apresentava certa decadência, sobretudo no quarteirão além da praça Miserere, cujos prédios estavam mais para cenários de terror, escuros, malcuidados, ocupados por migrantes pobres pela absoluta falta de interesse do mercado imobiliário. Foi meu último contato com a Pueyrredón e com o San Agustín, até dias atrás.

Como disse, havia me esquecido o quão distante estava a Pueyrredón e constataria o quão desinteressante tinha ficado. Cruzando a Callao, foram dez quadras percorridas com ansiedade crescente, sob um dia chuvoso, sem graça. Eu tinha perdido todas as referências da região, de modo que andava por um caminho que parecia absolutamente desconhecido. Uma a uma as travessas se sucediam, Ayacucho... Junin... Larrea, por fim Pueyrredón, cruzamento com a Corrientes e fiz o contorno esperado para a esquerda, mais quatro quadras até a praça Miserere. Nada que estimulasse um passeio de recordação, em uma tarde de jornada pesada para tantos mochileiros. A Pueyrredón transformara-se no epicentro de uma região de compras populares, gente como formigas alucinadas, sedentas pelo açúcar, que circulavam pelas calçadas com pressa incomum, carregando sacolas cheias, em carrinhos, nas mãos, a escapar felizes com o butim. Tinham pressa porque desejavam chegar às villas antes do anoitecer. Eu me esquivava, tentando me concentrar no espaço ao redor, bastante deteriorado, e o que é pior, ruidoso como nunca. Como um náufrago, tentava me apegar à presença do velho San Agustín, modificado, retalhado, transformado em pensão popular. O elevador estava inutilizado e o atendente com um cigarrinho no canto da boca não soube me informar de nenhum viejo Gusmán. Em frente, o lugar que me pareceu ser o do Café La Aurora estava bloqueado por tapumes, indicando futura demolição.

A poucos passos, igualmente a Miserere abarrotada, pessoas agitadas, ansiosas, mais carregadas, mais atrasadas... Por mais que não desejasse, eu atrapalhava o caudaloso frenesi: avançava, recuava, desviava de um carrinho para bloquear outro, tropeçava em um e esbarrava em outro, feito um bêbado. Dei-me conta do ruído intenso vindo do interior tapumes, das obras do metrô na praça, no passar dos coletivos, então saltei para a rua e foram os automóveis que começaram a me instigar sem trégua, empurrando-me de volta à calçada, que me regurgitava, transformando-me em incauto visitante, sem eira nem beira... Não só perdera meu reduto alternativo, como era pressionado a sair dali. A mobilidade pós-moderna se instalava e seduzia, imobilizando as pessoas em sua armadilha predileta, a ciranda mercantil com suas quinquilharias descartáveis. Tornara-se um lugar que não acolhia mais recordações, um não-lugar apropriado à circulação de bens e interesses. Avancei desacorçoado, no rumo oposto à Miserere, ao San Agustín e ao La Aurora, a mergulhar no universo de ruas desconhecidas, úmidas, que se esvaziavam progressivamente. Terminei por não me despedir da Pueyrredón, afastando-me com um longo e desventurado suspiro.


09 dezembro 2009

Evo Morales

Evo Morales


Claro que Evo Morales e o MAS, Movimiento al Socialismo, fazem bem à Bolívia e aos bolivianos! A votação espetacular obtida nas eleições de domingo teve, antes de mais nada, um caráter plebiscitário à sua gestão, e ficou evidente o apoio massivo às mudanças em curso.

Qualquer historiador medíocre pode levantar a folha corrida da querida e sofrida Bolívia no século XX e perceber o quanto os representantes de uma elite branca descomprometida com os desígnios do país fizeram o país e o povo comum sangrar até quase a inânia. Morales é um desses sopros alentadores, que trazem esperança à proporção que avança em seu projeto social, um projeto que elimina a ambição pessoal e possibilita a distribuição social.

O grande problema é esse maldito conforto paradigmático disseminado pelos veículos da grande mídia, que nos faz crer que o capitalismo é o caminho, a verdade e a vida, e que Evo é sinônimo de Belzebu, atrelado a ideais ultrapassados. Como se não bastasse, há o ranço preconceituoso que atravessa o discurso, algo do tipo Como um índio se atreve a meter-se conosco? Nesse momento, como nunca antes, essa linhagem midiática sai a campo para defender abertamente seus interesses de classe, a semear o brado de uma contrarrevolução ultrapassada...

Apenas digo que o projeto de governo desse 'índio' tem modificado, como ninguém antes, o perfil da Bolívia: eleva um país ridicularizado por golpes seguidos e pela condição miserável a um patamar de respeitabilidade como nunca antes visto. Será o país de maior crescimento na América do Sul neste ano, mais de 3%, crescimento sustentável, distribuído, sem se vender aos ditames de uma política neoliberal punitiva à população e ao meio ambiente.

Evo Morales faz bem à Bolívia, assim como Álvaro Garcia Linera, assim como o MAS, assim como as mudanças estruturais realizadas no âmbito sócio-político-econômico. E sejamos claros (com um olhar para além do conforto paradigmático neoliberal) assim como o governo Hugo Rafael Chávez Frias faz bem à Venezuela. E assim como o governo Rafael Correa faz bem ao Equador e como o governo Cristina Kirchner faz muito bem à Argentina... 

Porque essas equipes de governo relevam a dignidade na ação política e na ação social, em um mundo permeado pelo tanto faz hipócrita, repercutido, à náusea, por quem não tem compromisso com nada e defende (sem mais saber o porquê) a ordem falida de um capitalismo devorador, que faz prevalecer interesses corporativos em detrimento dos interesses maiores da coletividade.

A América do Sul é o lugar mais estimulante do mundo, foi o que disse Noam Chomsky, recentemente. E estou com ele, a ficar com qualquer dos analistas midiáticos que se esforçam para agradar o patrão!... E há que se dizer, porque assim expressa a maioria dos brasileiros e do mundo, o governo Lula faz bem ao Brasil. Quem definitivamente não faz bem ao Brasil - e já há um bom tempo - é o 'nosso' oligopólio midiático, elitista por natureza e golpista por opção, que aos poucos definha em seus envelhecidos despropósitos...


05 dezembro 2009

Um lugar distante




Uma reação murcha, ausente de gestos, demonstrou-me de modo cabal que eu não passava de um forasteiro naquelas paragens. O homem prosseguiu em sua indiferença, abanando-se com o jornal mirrado, sentado bem na entrada de sua barbearia. Antes de pensar em solicitar seus serviços postei-me diante de si, imaginando que me reconheceria. Não me reconheceu e não fez questão, preferindo olhar para o movimento insipiente de pessoas na rua. Dentro, a mesma disposição de antes, as mesmas duas cadeiras de trabalho, as fotos mais recentes do time do Palmeiras, o mesmo torpor que se misturava com a poeira e a escuridão. Perguntei por seu filho, o Bulila, ele murmurou que voltaria mais tarde. Senti-me como um pistoleiro mal afamado, que acabava de regressar ao vilarejo após anos de prisão. Maldita cidade, malditos vermes insepultos, praguejei, desejoso por dar meia volta e retomar a estrada. Dei mais uma chance ao velho e indaguei-lhe onde encontraria dona Neide, minha antiga senhoria, ao que o semblante morno persistiu em sua discreta ausência.
Prossegui pela avenida, sob o sol escaldante do meio-dia. Não reconhecia os passantes e os estabelecimentos estavam modificados em suas fachadas. Não encontrei o açougue, a lanchonete, nem a oficina de contabilidade em que trabalhara. No dia em que deixei o povoado para sempre, desabava uma chuva torrencial, que transformou a única avenida em um charco intransitável. Teria sido mais fácil naquela circunstância abandoná-lo em um cavalo do que da maneira que ocorreu, em um ônibus. Reencontrava agora as ruas decentemente asfaltadas e uma discreta presença comercial indicava que o lugarejo se modificara bastante, tornando-se um sítio menos desafortunado.
Caminhei mais umas quadras para cima, onde acreditava que se localizava a edícula em que, por longos dois anos, eu habitara. Na ocasião, era talvez o único quarto disponível para um estranho se instalar, não havia pensões e o único hotelzinho não garantia a privacidade de seus hóspedes. Nada, subi e desci o quarteirão seguidamente, sem identificar a casa. As mudanças haviam ocorrido de modo mais significativo do que imaginara, fazendo-me confundir os endereços. Um pouco decepcionado, iniciei minha volta para o carro, estacionado diante da praça da matriz, refletindo sobre meu estranhamento. O rincão persistia com seu jeito macilento, as feições permaneciam desconfiadas, as expectativas conservavam-se limitadas. Um pequeno supermercado aqui, uma loja de serviços de telefonia acolá, dinamizava um pouco mais a vida, oferecendo um ar menos sorumbático, mas os destinos prosseguiam sem eira nem beira. Onde estavam as pessoas, o pastor Salviano e seu bombardino, que nos dias de futebol gostava de me perguntar, às escondidas de sua esposa, religiosa fanática, se o nosso Santos tinha vencido?... E o jornaleiro Eliseu, que logo de manhã buscava os jornais na rodoviária e com sua bicicleta, rodava a cidade vendendo as informações do mundo?... E o jovem Renan, o estagiário que me ajudava no serviço e me contava as histórias e os segredos do lugar?... Onde estaria a bela e espevitada Luiza, filha do Torga, o despachante ?... Não recuperava nenhuma dessas figuras, era como se todas tivessem sido devoradas pela vertiginosa passagem do tempo.
Parei defronte ao antigo escritório em que cumpria minhas desalentadas jornadas, agora uma pequena agência de correio. Mais uns passos, entrei no bar que inexistia em minha época e pedi uma cerveja. O calor inclemente me embaralhava o raciocínio, pior, dissolvia as sobras de identidade, sustentada com alguma renitência durante todos esses anos. Os espaços, os equipamentos urbanos, a gente do lugar se apresentavam estranhos, como se esgueirassem de minha busca. O atendente me servia enquanto conversava animadamente com os outros fregueses, todos me parecendo seres transplantados, sem relação com o lugarejo que havia conhecido. Perguntei-lhe há quanto tempo morava ali. Desde sempre..., respondeu seco, em seu jeito rústico, todos meus 22 anos... Atravessou-me a inevitável constatação, Quando parti, ele era um pequerrucho... Imaginei coisas sem importância, quem poderiam ser seus pais, em que casa morava, se era evangélico - e então poderia conhecer o pastor Salviano - ou católico... Quase em frente, a igreja erguia-se em seus tons amarelados, acolhida em meio às árvores copadas, de boa sombra, talvez o único local reconhecível na minha breve excursão memorial.
Em súbito silêncio, me pus a examinar objetos e aparências, sem qualquer adesão. As ideias flutuavam difusas, inseguras diante das conclusões. Meus olhos percorreram o balcão, as prateleiras, as mesas, alcançando as faces lânguidas até chocar-se com a luminosidade intensa do lado externo, perdendo-se na imobilidade da rua e, mais além, da praça. Pois então era isso, minha sensação de estranhamento era inevitável, jamais fizera parte de fato daquele lugar e não seria naquela visita que recuperaria alguma reciprocidade. Minhas relações tinham sido por demais efêmeras, pautadas por um distanciamento seguro, típico da prepotência da metrópole, e mesmo tendo ali vivido por longos dois anos, nenhum vínculo fora cultivado. Não me envolvi com nenhuma garota, não joguei cartas, não ouvi os mais velhos nem bebi com os amigos no Dois Camelos, o boteco mais badalado do meu tempo, pela simples razão de que não tinha o menor interesse em fincar raízes naquele fim de mundo. Enquanto exilado naquele recanto sonolento e empoeirado, acalentei unicamente cair fora e quando tive a oportunidade, me safei sem despedidas. Ao longo dos anos, passei a acreditar que precisava um dia voltar, para recolocar as coisas nos devidos lugares... talvez uma remissão pela soberba não admitida. Numa palavra, eu havia me dissociado daquele lugar e daquelas pessoas antes mesmo de abandoná-lo. A falta desse regresso significaria um vazio intolerável na memória, mas minha volta não recuperaria o passado, nem me ofereceria um futuro. Meu lamento por não reencontrar o Bulila, dona Neide, Salviano, Renan, Eliseu ou a outrora espevitada Luiza era de uma pretensão ingênua. Por mais que aquele fosse um 'recanto sonolento e empoeirado', sua gente não tinha a obrigação de se apresentar como vassala de minhas emoções, que em relação a ela nunca existiram.
Paguei a cerveja e me despedi do jovem atendente. Diante de meu carro, lancei um derradeiro olhar para a igreja, lugar de acolhimento nos momentos mais tormentosos da solidão, ainda que pela razão jamais alcançasse a fé.