30 novembro 2013

Meus encontros com Berlim

A porta de Brandemburgo do lado comunista, 1989


A primeira vez em Berlim foi no verão de 1989, quatro meses antes da queda do muro. Cheguei por volta das cinco horas da manhã, com claridade suficiente para me impressionar com as muralhas cercando a cidade. Minhas anotações de viagem são por demais contidas e sem graça,

"Por que Berlim me recebe com esta chuva ingrata? Por que nesta primeira vez as coisas têm de sair tão mal? Chove, e como não bastasse isso, um céu cinzento, carregado, promete dar a tônica do dia. Estou preso no Café Haussner, esquina da Hardenbergstrasse com a Joachimstaler Str. e tendo poucas horas apenas para ver algo desta cidade tão especial. Às 8:23 parte um trem para Viena e estou propenso a tomá-lo. Se der, depois volto aqui".

Não tinha a intensão de ficar, estava por demais incomodado, a cidade não me fazia bem. No trem, cruzando o território alemão oriental, fui abordado por policiais da aduana, que me cobravam o visto de passagem. Questionei, resisti até me ameaçarem colocar para fora do trem. Depois a incerteza, não sabia de albergues ou hotéis baratos que me acomodassem por uns dias. Mas não queria ficar. Ou pensava em retornar mais tarde, ao final daquela que seria uma longa viagem de dois meses e meio pela Europa. Só quando tomei o trem para Viena, no final da tarde, escrevi mais tranquilo, 




"Berlim é uma coisa incrível, algo que foge a uma explicação racional. O tempo melhorou muito e deu para ir da estação até a famosa Kaiser Wilhelm-Gedächtniskirche, ou o que restou dela, e depois passar ao largo do Zoológico, até a majestosa Str. 17 de Juni, que seria a continuação natural (não fosse o muro) da Unter den Linden. Subi até o topo da Grosser Stern, a coluna do triunfo, que ainda guarda marcas da guerra, e continuando pela 17 Juni, fui até a Porta de Brandenburgo. Caminhando-se um pouco mais, acompanhando o muro, chega-se fácil ao Reichstag, bem machucado pela ação do incêndio e das bombas e balaços que recebeu. Está transformado num museu que registra de modo didático toda a história política alemã, a partir do século XIX. Registrei bem estes poucos momentos na ex-capital cultural européia com fotos. E me dei conta posteriormente que, ao caminhar pela 17 Juni eu atravessava o maravilhoso Tiergarten, um imenso parque que abrange (a parte sul de) toda esta região. Em seis horas rodei os pontos principais desta cidade diferente. Tanto à margem do Spree, o rio que corta a cidade, como defronte da Porta de Brandenburgo, tive uma visão do lado de lá. O lado de lá que deveria ser o mesmo lado que o daqui. Eu, como as pessoas que olhavam em silêncio, tivemos um instante de total impotência e porque não dizer, de tristeza".









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Meu retorno se deu um ano e meio mais tarde, em fevereiro de 1991, encontrando uma cidade livre do muro, cinzenta, com amplos espaços vazios na região central, pouquíssimos turistas e viajantes. Desta feita fiquei cinco dias, circulava à vontade entre o que fora o lado ocidental e o oriental. Estava impregnado pelo filme Asas do Desejo, de Wim Wenders, e reproduzi alguns percursos inspirado por diversas cenas. Optei por tomar imagens sucessivas, que uma vez reveladas, poderiam se sobrepor e oferecer uma impressão panorâmica. Aqui reproduzo imagens isoladas, e dois pequenos clipes sobre essas junções fotográficas. Não foram feitos registros escritos, estava por demais extasiado com o retorno à cidade, queria percorrê-la e senti-la no momento, recuperando de certa forma a oportunidade perdida na rápida visita anterior. 




Fiz registros de vários ângulos possíveis, de diversos locais que antes da guerra eram por demais conhecidos e frequentados, lugares emblemáticos para mim, conhecidos em leituras de história da cidade. Como por exemplo, ainda a Porta de Brandemburgo. Abaixo, uma incrível coincidência, minha foto tirada quando estava a caminho da Potsdamerplatz




Sessenta anos antes, um fotógrafo alemão teve a ideia de enquadrar a cena de um mesmíssimo ponto de vista que o meu...




Falar de amplos espaços desocupados não dá a dimensão do real; em pleno centro histórico (Brandemburgo perdido imperceptível ao fundo), dirigindo-me à Leipzigerstrasse voltei-me por um instante, para o registro de um tempo e espaço que se dissolviam em meio às brumas da manhã. O silêncio expectante me abraçava, prosseguia em meio à brisa fria e aos fantasmas da história, ausência pura, o preço das loucuras megalômanas, o desconsolo das perdas... 




ao contrário do que fora um dia a cidade de Ruttman, de Joseph Roth, os sons das engrenagens, o alarido das gentes, substituídos pelo clamor do velho do filme Asas do Desejo, "Onde está a Potsdamerplatz?"...




As máquinas e equipamentos da reconstrução mal se instalavam em 1991 na paisagem lunar do que um dia fora a vibrante Potsdamerplatz... o oposto daquela descrita por Roth nos anos 1920, "Um ruído plangente, a corneta de um policial, dava ordens para seguir e frear, um aglomerado de bondes carros que se acotovelavam, o cintilar de cores, um matiz barulhento, cheio de bramidos e rugidos, gritos vermelhos, amarelos e violeta." 




um pouco mais além, os restos da Estação Anhalter, como que esquecidos pela guerra e pela continuidade da vida...




Ainda era tempo dos Trabants, carrinhos populares produzidos na antiga Alemanha Oriental, com um ar simpático e nada saudoso 




Foi uma viagem em que decidi montar painéis fotográficos, com minha pequena câmera Kodak, dando dimensão aos espaços vazios e moribundos, prestes a serem especulados e preenchidos, primeiro ao redor do Porta de Brandemburgo, ainda desacostumada com a ausência do muro...




Depois um trecho da Kurfürstendamm, ou apenas Ku'damm, com seu brilho de sempre, de algum modo preservada em sua vivacidade, próxima da primavera...




Prosseguindo agora por outra direção, construindo a montagem da narrativa a partir do vazio profundo, avançando pela histórica Unter dem Linden, mesmo ali foi difícil encontrar alguém que me fotografasse, capturando o fundo da cidade, já na perspectiva da Alexanderplatz...  solidão insólita, irreal, presente em todos os cantos, estranhamente comum nesses tempos de pós reunificação...



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Regressaria a Berlim apenas dez anos mais tarde, no penúltimo dia de 2001, a cidade mais adensada em seu centro histórico, as gentes nas ruas, a percepção de uma cidade integrada.




Pela primeira vez, assestava minha câmera de maneira mais curiosa para a Gëdachtniskirche, outro dos símbolos berlinenses em pedaços, preservados da guerra. 




A Porta de Brandemburgo estava recoberta com o painel abaixo, em razão das festividades que ocorreriam na 17 Juni.




Os caminhos das cercanias do Tiergarten, agora congelados, mais uma vez percorridos...




A Potsdamerplatz recuperada urbanisticamente, bem diferente de 1991, com amplos edifícios, áreas de lazer, novos espaços para o consumo, abaixo uma perspectiva da Leipzigerstrasse. Faria uma breve anotação digital,

"Quando se fala de transformações em Berlim, no plano arquitetônico, devemos considerar basicamente o trecho que vai da praça Potsdamer até a praça Alexander, isso numa consideração geral. Vejo especificamente neste trecho algumas fortes intervenções urbanísticas, embora ainda incompletas. Talvez ainda sejam necessários outros dez anos para que as transformações ocorram de modo completo, integrando o eixo leste-oeste. Por ora, os canteiros de obras prosseguem, uma ansiosa e exasperada reconstrução do centro pulsante desta bela capital... Aos bocados, a Potsdamerplatz ressurge, menos graciosa, mais moderna... perdas e ganhos". 



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Mais oito anos, e dois dias antes do Ano Novo de 2010 lá estava de volta, talvez não apaixonado pela cidade, mas com o desejo irrefreável de revê-la, de observar o complemento das mudanças, seu assentamento mais orgânico e quem sabe, passar outra ótima passagem de ano. Fiquei instalado en las afueras de la ciudad, nas proximidades de Charlottenburg, em um pequeno hotel (pela primeira vez fora de um albergue...) na Kantstrasse.




O frio a penetrar os ossos, mas ainda assim, as pessoas nas ruas, a cidade receptiva, comemorando vinte anos de fim do muro




a Gëdachtniskirche mais próxima, aquecendo-me com o vinho quente das tendas ao redor, 




Retornando à Anhalter, a "estação de nome engraçado", nas palavras de Peter Falk em Asas do Desejo, outro caco sobrevivente dos bombardeios, outra das tantas perdas estúpidas que a cidade sofreu... Neste dia, ela significava o destino de um longo percurso,  




..."Venho caminhando desde a Ku'damm, via Lützowstrasse, passei pela Potsdamerplatz, e agora encontro-me no museu da Comunicação, em seu simpático Café (...)"







"Uma paisagem diferente, um olhar insatisfeito, um movimento inusitado, a velhinha com seu cão teimoso, o casal que é salpicado de neve derretida por um motorista imprudente e reage com um sorriso duplo, de compreensão... se posso juntar alguns desses detalhes ao final de cada dia, sinto-me feliz (...)". 

a Berlim de tantos ângulos, de espaços renovados, muitos a serem revistos... 




... outros tantos a serem descobertos, ainda que sob a neve profunda... 











10 novembro 2013

Tempo, Memória, Ausência



Pronto, lá se foi meu irmão. Mais uma vez, e a cada vez, de um jeito diferente, a deixar um rastro de memória, o gosto amargo de um adeus com uma vaga sugestão de reencontro. Vejo sua partida não mais como antes, quando via graça em seus movimentos imprevisíveis. Desta feita ela vem um pouco mais dolorida, porque o imprevisível não mais se oferece fartamente no horizonte, porque no lugar das extensões infinitas, das dispersões ao sabor do vento, passamos a abraçar os gestos presentes e duradouros. Se antes nos aprazia o ato vago da busca imprecisa, agora e cada vez mais saboreamos o que restam das lembranças marcantes, um olhar oblíquo, uma frase solta, um silêncio mais prolongado, aquilo que permanece em nome da falta.

Em outras palavras, o tempo insiste em fluir em sua expressão devoradora, enquanto alimentamos o calor da ausência, imerso em desconjuntada sucessão de presentes, a projetar nossas vagas esperanças. A memória postula-se, ávida, pelas contingências palpáveis, infatigável fonte de mistérios e emoções, enquanto, paradoxalmente, se predispõe ao esquecimento. Ao exercitarmos saudosas recordações, ao desvelar nossa condição de vir a ser o passado, de algum modo retomamos as referências mais significativas, sacrificando diáfanas impressões, os ensejos moderados, as dores correntes, sem jamais recuperarmos o mesmo ter sido que é, o que pode ser trágico, embora nada que se compare, ao final das contas, com a consciência da ausência indesejada.

(modificado em 06.05.2017, após mais uma despedida de meu irmão; atualizado em 22.04.2018)



05 novembro 2013

Poesia 11



Perdição
(descontinuidade ontológica)

  
a incongruência humana
posta
não pela finitude do ser
(mais do que anunciada)
mas pela pregnância
dos belos momentos
jamais previstos
e
insipidamente apreciados


(mar. 2000)