19 setembro 2011

Pais, filhos




Entraram conversando, de braços dados, o filho, na altura dos cinquenta anos, e a mãe. Ele vinha em busca de um livro, e por isso pediu para ela sentar-se e esperar um pouco. Houve um movimento prolongado, o movimento vagaroso da acomodação no sofá, ela sentando-se cuidadosamente, apoiada nos braços do filho. Por fim, a mãe sorriu, estava bem instalada, poderia ficar o tempo que fosse. Ele se afastou em busca de seu livro, permanecendo o sorriso da bela senhora, que foi se apagando, até que a vivacidade de sua expressão desse lugar à inquietude. 

Foi como se ela, uma vez mais restrita ao seu corpo, se voltasse às rememorações pessoais. Ao som do piano de Hancock, os olhinhos pousavam suavemente neste ou naquele ponto do ambiente, e em cada pausa, uma vaga lembrança repassada. E assim foi por um tempo, até o regresso do filho, com o livro na mão. Então, como se despertasse do transe, ela estendeu-lhe a mão. Novamente o semblante retomou um brilho reluzente, ela aprumou os passos e, antes de saírem da sala, vislumbrei-lhe a alegria de ter sido resgatada para o presente.

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O casal de filhos adolescentes, na fila, com os pais. Em certa altura, o jovem desembaraça os abundantes cabelos do pai e os arruma com as mãos. Quanto carinho nos gestos repetidos, sob os olhares cúmplices da mãe e da irmã. Uma delicada demonstração de amor filial perdida no tempo e no espaço público.


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Mais uma vez o café, a inspirar uma narrativa. Desta feita, uma das atendentes de todos os dias, Luzia, que acabara de regressar de suas férias. Estava feliz, como sempre, ou um pouco mais, talvez. Em vez da viagem até Salgueiro, no pujante sertão pernambucano, ficou para receber sua querida mãe. Na conversa entrecortada, à hora do almoço, atendendo a inúmeros clientes, comentou que só lamentava não ter passado os dias bondosos na companhia da família, tios, primos, irmãos. Mas com a vinda de sua mãe querida, pode amenizar um pouco a falta, e saborear o bolo de milho caseiro.

No final da semana não a vi, e soube pelas colegas que a mãe falecera. Teve um mal súbito e isso foi tudo, não houve razão para escavar os detalhes. Ficou-me o que permanece nessas ocasiões, a imagem da dor inquieta, devoradora, que acompanhará Luzia pelo resto de seus dias.


  

13 setembro 2011

Buenos Aires - III

Mulher na praça, 2011

Nos momentos livres, de dia ou de noite, entregava-me ao prazer de fotografar pessoas, um complemento perfeito para a flânerie, entre uma livraria e um café, entre uma praça e uma esquina qualquer. De dia, as pessoas sentadas ao sol, conversando em algum ambiente público, distraídas com um livro ou sorvendo o mate. Havia também os que estavam em alguma fila, as mulheres que caminhavam com seus cães, os idosos que observavam vitrinas, os amigos que se cumprimentavam na rua... um universo de cenas, oferecendo-se para ser captadas. 

Com minha pequena Sony, registrei o que pude, em imagens fixas ou em movimento. Além das pessoas e situações, os lugares, criando um contexto para o estar-ali. E foi assim que encontrei a dama que esperava pelo seu príncipe azul, o homem que avaliava a programação de teatro, as jovens que conversavam nas escadarias, o livreiro que se entretinha com um livro de sua banca... E o frescor das praças, o charme dos interiores, o pulsar das ruas, o brilho dos dias, a quietez das noites...


La Plata - III



Ao chegar na Faculdade de Jornalismo, a indisfarçável satisfação de retornar após um ano. As condições precárias permaneciam, o prédio não estava integralmente liberado, ainda faltava a biblioteca, um restaurante universitário, um ambiente de estar. Esbarrei na multidão de alunos, que circulavam pelo saguão diminuto, em meio às mesas de recepção. As aulas prosseguiam, mesmo com o congresso em seu primeiro dia, resolvi me afastar da agitação interna, acomodando-me sob o sol. 

Ali, diante da entrada do prédio, não seria possível me concentrar para os apontamentos necessários, e permaneci observando o vai-e-vem de jovens, aqueles que chegavam atrasados para as aulas, os que saíam para a pracinha, um pouco mais adiante, para charlar, e aqueles que ficavam ao meu redor, encostados na mureta ou sentados no chão, entregues ao fluir dos acontecimentos. 

Passado um tempo, entrei, atravessei o saguão e as escadas centrais, alcançando a pequena feira de livros. Ao redor, uns bancos estofados, escolhi um e folheei o novo livro de Ramonet, La explosión del periodismo. Tema perfeito para o alvoroço do ambiente. Concentrei-me por um tempo em certas passagens do livro, quando minha atenção foi chamada para o que seria um espaço no subsolo. Levantei-me e vi os estudantes preparando mais faixas, mais cartazes, que logo decorariam algum ponto da faculdade, ainda não tomado pelas arrebatadas palavras de ordem...


Buenos Aires - II


As noites, invariavelmente, eram passadas na capital portenha. As opções, não tantas, pelo menos nesta estadia. Sentar-me nos cafés para a organização da apresentação, ou para a leitura de um texto, de quando em vez olhando para as ruas e ver Buenos Aires passar... Meu preferido, desta vez, o Los Galgos, discreto e antigo café, localizado na Callao, bem próximo da Corrientes das livrarias e teatros. Lá estive por duas noites, acompanhando o atendente, discreto em seus movimentos parcimoniosos, imerso em seu belo uniforme branco e negro. Não nos falamos, a não ser para o pedido dos cortados. Nas duas visitas, os clientes me pareceram os mesmos, sentados diante das mesmas mesas, cumprindo os mesmos rituais. Era o lado de fora, a rua gélida e turbulenta, que indicava-me o passar do tempo. Quando o movimento de pessoas se fazia menos urgente, então, um inevitável impulso me convidava a arrumar o cachecol e retomar a flânerie...


La Plata - II




Quando necessitava ir à La Plata, despertava cedo, bem cedo, algo em torno das 5h30, para tomar o 129, na praça Miserere. Pela autopista, uma viagem mais rápida, de cenário monótono, evitando os adensamentos urbanos, pouco mais de uma hora. Por Centenário, ou seja, atravessando a região metropolitana, e aí incluindo Avellaneda, Quilmes, quase duas horas. Nem sempre foi possível pegar o direto. Uma vez no terminal de La Plata, começava a dança dos números. Tomar o doce cuatro (124), duas quadras além, e deslocar-me até o encontro das calles 63 e 117. Aprendi que era necessário descer na diagonal 119, e caminhar umas poucas quadras, em meio ao fluxo de alunos. 

No primeiro dia, a confusão com o ônibus (tomei o 204) e terminei no meio de um bosque, bem próximo da faculdade. Não me restou alternativa, sentei-me em um banco e retomei meus textos, e aproveitei o equívoco, respirando a placidez do lugar...  



Buenos Aires - I




Alternei minha presença entre La Plata e a querida e desejada Buenos Aires, cidade que me inspira em todos os sentidos. Logo ao chegar, em uma tarde de domingo, pude presenciar uma bela apresentação de grupos folclóricos bascos, em plena Avenida de Mayo. Jovens, idosos, crianças, descendentes ou não da colônia basca, lá estava uma pequena multidão, usufruindo o espaço público. O céu azul, que me acompanharia até o final de minha jornada, aos poucos substituído pelo crepúsculo, e pelo vento frio característico das noites de inverno. Convivência que se desdobrava pelos arredores, as ruas transbordando de gente...



La Plata - I




Aproveitando o tempo bondoso que desfruto, estabeleci alguns objetivos de produção acadêmica, e dentre eles, este congresso de comunicação e ciências sociais, na Universidade Nacional de La Plata. 

Como participante, inscrevi o ensaio que produzi em coautoria com Mônica Nunes, Xenofobia e Participação Política nas Redes Sociais, um estudo sobre a importância das mídias sociais nas eleições presidenciais do ano passado, criando, por um lado, um interessante contraponto ao discurso da mídia hegemônica, proveniente sobretudo de blogues e portais de jornalistas independentes, e por outro, a nefasta explosão de xenofobia, produzida em grande medida por uma parcela da classe média do centro-sul, insatisfeita com o resultado final e lançada contra os nordestinos.

De nossa ampla mesa de estudos (Tics y configuración de subjetividades contemporáneas en América Latina: Ciudadania, socialidad y poder), foi curioso notar que fui o único não hispanofalante, ou, o único integrante brasileiro, o que me entusiasmou a realizar uma intervenção mais detida sobre os processos midiáticos vigentes em nosso país.

No final das contas, pude acompanhar de perto a atuação política dos alunos de uma instituição pública, cartazes, faixas, rádio livre, transformando-a em um local de resistência, e dentre outras manifestações, declamando apoio às reivindicações dos seus colegas chilenos.



11 setembro 2011

A chama que não se apaga


A data de hoje cala fundo em minha alma, ainda uma vez, ao relembrar a brutal destituição do governo Salvador Allende. Um governo eleito democraticamente, e que se manteve no estrito marco da constituição para enfrentar a onda de sabotagens que o minaram desde o início, sobretudo as patrocinadas pelo Departamento de Estado. Seu chefe, Henry Kissinger, prêmio Nobel da paz no mesmo ano, comentou: "não vejo porque nós temos de esperar e olhar um país se tornar comunista devido a irresponsabilidade de seu povo". E trabalhou arduamente para fazer a economia do Chile chiar, até o desdobramento do golpe. 

O resultado foram as dolorosas imagens do La Moneda ardendo, bombardeado sob as ordens covardes de Pinochet, que poucas semanas antes havia assumido o comando do Exército, substituindo a Carlos Prats, jurando fidelidade ao governo Allende. Deste momento de opróbrio, o Chile percorreu um longo caminho para reencontrar a democracia. Resta  celebrar a justiça social. Neste sentido, não deixam de ser estimulantes as manifestações abertas de estudantes e professores chilenos, que tomam as ruas com objetivos claramente definidos, expondo uma parte das feridas sociais acumuladas nestes 38 anos.