10 junho 2020

Meu desprezo por qualquer autoritarismo



É tão bom sentir as noites de outono mais frescas, manter o corpo menos contraído pelo frio descabido. Seguimos em confinamento, embora haja o que se denomina flexibilização de movimentos, e em muitas partes urbanas, as pessoas se amontoam de maneira quase irresponsável. O desgoverno não toma qualquer medida, será um horror em todos os critérios até seu amargo final. 

Desisti de acompanhar passo a passo a escalada do número de mortes, pelo absurdo da situação. E essas pessoas que nos desgovernam se sustentam por um fio, e assim permanecerão. Prometem preservar os direitos de uma minoria produtiva, que tem como se proteger e que almeja acima de tudo retomar seus confortáveis dividendos. O outono menos íngreme é um sinal menos apreensivo. 

Preparo o pão caseiro, será uma espécie de redenção, um modo de permanecer mais saudável e mais preocupado com tarefas pertinentes. Daqui a pouco veremos o resultado. Agora aguardo o momento de falar com minha querida, e declamar-lhe algumas poesias para que possamos dormir mais felizes.


09 junho 2020

Juan Gelman, uma poesia


Juan Gelman


Condecorações

 

Condecoraram ao senhor general

condecoraram ao senhor almirante,

ao brigadeiro, ao meu vizinho

o sargento de polícia,

 

e em algum momento condecorarão ao poeta

por usar palavras como fogo,

como sol, como esperança,

entre tanta miséria humana,

tanta dor

sem ir muito longe.



(versão para o português do poema Condecoraciones, extraído do livro Gotán, de Juan Gelman. Buenos Aires, Emecé Editores/ Seix Barral, 2008)





01 junho 2020

Paul Bowles, um conto

Gran Café de Paris | Tangier, Morocco Nightlife - Lonely Planet
Le Gran Café de Paris, Tanger

Este blog foi nomeado em homenagem a Paul Bowles, Em outubro de 2008 estava às voltas com a leitura do seu livro de contos Chá nas Montanhas, depois de ter lido Que venha a Tempestade e de sua biografia. A força de sua obra, bem como de sua vida errática, me marcou fortemente, e naquele então decidi fazer-lhe a homenagem. Ocorre que lhe devia um texto, fosse uma análise de sua obra, fosse a colagem de um conto seu, seguido de algum comentário. 

Pois bem, trago hoje a tradução do francês de um conto seu, Um jantar na casa de Sir Nigel,  que compõe a coletânea de contos Paroles Malvenues, Editions Quai Voltaire, 1989. Trata-se de uma tradução do texto original em inglês, Unwelcome Words, publicado um ano antes, em 1988. Esta versão para o português foi realizada com alguma demora, porém com grande prazer. Não se trata do melhor Bowles, entretanto este texto possui elementos marcantes do seu estilo, qual seja, a narrativa consistente, bem elaborada, se desenvolve expondo os entrechoques culturais - ele, um cidadão estadunidense, vivendo em um país do Magreb, o Marrocos. 

No caso presente, coloca-se como convidado em uma situação cultural ambígua. Desdenha do colonizador europeu desde o princípio, quando está claro, pelo título, que haverá um jantar na casa de um Sir. Oferece uma trama que se organiza anunciando a brutalidade inata de quem representa a cultura europeia, e a coloca de maneira presunçosamente grosseira em um nível superior à cultura de cidadãos africanos. Todavia, a cena descrita nos mostra o insuspeito transe de Sir Nigel a partir da melodia produzida pelo toque de tambores. 

Bowles faz recordar de uma certa antropologia em que o centro dos bons costumes, a cultura europeia, se insinua em um patamar mais avançado quando vis-a-vis com outras, oriundas de regiões economicamente menos desenvolvidas, e dessa maneira propõe um tipo de observação maniqueísta, pautado pelo paradigma do conquistador e do dominado, da qual não consegue escapar. 

É a minha pequena e tardia homenagem. Espero que o resultado esteja à altura do grande escritor. 


Um jantar na casa de Sir Nigel
Paul Bowles

Em certa época na cidade de Tanger, a vida mundana dissociava nitidamente os marroquinos dos europeus, estes mantendo com aqueles as relações tradicionais de senhores com servos. Uma casa europeia de mediana importância empregava comumente uma criadagem de cinco ou seis marroquinos. Um lar mais amplo certamente exigia um maior número e não era incomum que o pessoal nativo incluísse um cozinheiro, uma governanta e um motorista, todos europeus. A crer no rumor local, a casa de Sir Nigel Renfrew constituía uma exceção incompreensível: seu tamanho o forçava a contratar numerosos serviçais, porém se dizia que ali trabalhavam um homem e um servente. Essa anomalia ressurgia constantemente nas conversações dos membros da colônia britânica e as más línguas davam a entender que essa severa restrição de pessoal dissimulava na casa de Sir Nigel mais que uma simples preocupação econômica.

Não se conhece ao certo o ano de sua chegada a Tanger; sabe-se que se instalou nesta cidade imediatamente após a Segunda Guerra mundial. Por certo levou uma fortuna considerável (legalmente ou não, ainda que a última hipótese seja mais verossímil) pois teria construído rapidamente uma série de grandes edifícios no que se constituía então nas bordas da cidade. É pouco provável que tenha amortizado o capital investido em um ou outro desses edifícios já que os apartamentos vazios à espera de inquilinos se dava às dúzias por toda a cidade.
            
Os primeiros a me fornecer um testemunho pessoal sobre Sir Nigel foram dois amigos ingleses que ele havia convidado para almoçar. Estes aguardaram por ele durante uma hora e meia e, logo que apareceu, não se dignou a lhes dar nem desculpas, nem explicações, após o que eles ainda esperaram meia-hora para que a única empregada arrumasse a mesa e trouxesse a comida. A história de seu tormento havia sido breve: unanimes, meus amigos tinham julgado o indivíduo como “execrável”. Que eu saiba, nenhum dos dois jamais voltou a pôr os pés em sua casa. Apesar disso, eu não hesitei, dois ou três anos mais tarde, em aceitar, na companhia de um grupo de jornalistas ingleses e canadenses, um convite para jantar na casa de Sir Nigel.
            
Tivemos que deixar nossos carros à uma certa distância da residência e atravessar à pé um prado mal conservado onde pastavam algumas ovelhas. Ainda era dia, mas me preocupava em saber como viríamos a retomar o cominho no escuro. Felizmente um dos jornalistas havia trazido uma lanterna elétrica.

O físico pouco avantajado de Sir Nigel me surpreendeu: era um homem de baixa estatura, muito magro, com o rosto marcado por cicatrizes e nos pequenos olhos próximos e penetrantes. Ele tomou lugar entre dois correspondentes que eram visivelmente seus íntimos, e com os quais iniciou a conversa, sem nos dar a menor atenção. Tomando todo o cuidado em observar sua expressão, compreendi que era incapaz de produzir um sorriso ou mesmo de substituir qualquer outra expressão pela constante irritação que exibia. Sua hostilidade irradiava e, manifestamente, não escapava aos seus convidados. Estes haviam cessado de falar entre eles e, sentados em silêncio, escutavam a voz estridente de seu hospedeiro.
            
Um empregado negro serviu uísque com soda e gelo. Quando ele se retirou, Sir Nigel comentou gesticulando, “Vocês viram esse homem? Eu o trouxe de Zanzibar. Ele me serve como cozinheiro, manobrista e de jardineiro. Aqui, para fazer o mesmo trabalho, você necessita de meia dúzia de árabes. Um monte de lixo e preguiçosos que gostam de fumar seus kif e imploram por sua comida! Bando de idiotas e inúteis!”
            
Ele lançou sobre nós seu olhar extravagante como se suspeitasse que fossemos marroquinos disfarçados e percebi que ele já estava bêbado.
            
No chão, em um canto obscuro da sala, estavam dispostos vários tambores de tamanhos e formas diferentes, todos recobertos de pele de zebra. Na esperança de encontrar um outro tema para a conversa, perguntei a Sir Nigel se ele também havia trazido esses objetos de Zanzibar. Ele me olhou com uma expressão que denotava ódio e desprezo absolutos, então me respondeu de modo seco: “Tenho uma residência lá”.
            
E imediatamente retomou suas vituperações contra os marroquinos.
            
De todo o jantar, eu me recordo apenas que comemos sentados em grupos de três, sobre almofadas, diante de três mesas baixas e que nosso anfitrião manifestou uma excitação crescente à medida que a refeição avançava. Ele havia esquecido os marroquinos e agora derramava uma avalancha de injúrias e obscenidades sobre os franceses e espanhóis: estes não tinham a menor ideia da maneira de governar uma colônia ou de colocar na linha os nativos ignorantes e preguiçosos. Vagamente comecei a pensar que o frenesi de nosso anfitrião subia pois ele decidiu fazer de nós seus cúmplices de alguma maneira ruim.
            
“Diga-me, ele perdeu a cabeça?, murmurei ao meu vizinho canadense.
            
Quando o zanzibariano voltou para servir as frutas, Sir Nigel saltou sobre seus pés.
            
“Em um minuto, ele exclamou, você assistirá a uma cena que não se esquecerá jamais, te juro! E lembre-se, eles vêm por vontade própria”.
            
Então ele saiu apressadamente da sala. Deixados a sós, trocamos olhares silenciosos.
            
Em seguida, ele teve um ligeiro movimento. Uma cortina, estendida em frente o muro, atrás dos tambores, estremeceu: uma negra grande e musculosa, apareceu e, sem nos conceder um olhar, começou a acender as lâmpadas localizadas nessa parte da sala. Isso feito, ela virou para levantar a cortina: cinco jovens meninas, por volta dos dezesseis anos, avançaram em um passo suave, e logo se deixaram cair sobre o chão, cada uma em frente um tambor. Elas estavam vestidas de robes brancos diáfanos e seus cabelos esparramavam-se livremente sobre os ombros. Três dentre elas eram, como de costume, de uma beleza intensa, enquanto que as outras eram apenas bonitas. Foi um espetáculo impressionante. Sir Nigel não havia exagerado em afirmar que não iriamos esquecer.
            
Elas começaram a tocar, aleatoriamente, os tambores. A vibração dos instrumentos mais forte que aquela dos tamborins que tocavam habitualmente as jovens marroquinas, encheu a sala com uma agitação ensurdecedora e caótica. Seguindo o exemplo da negra que as havia introduzido, elas se comportavam como se os europeus que ali se encontravam fossem invisíveis. Ninguém pronunciou uma palavra.
            
Bruscamente, Sir Nigel se materializou diante de nós, brandindo um longo chicote de circo. Vestia uma calça estilo cropped de cavalgar e calçado botas de couro negro. Seu rosto estava tomado por um matiz avermelhado tão assustadoramente brilhante e profundo que acreditei que ele sucumbiria sob nossos olhos de um ataque de apoplexia. Apesar de seus movimentos parecerem desprovidos de coordenação, ele conseguiu facilmente estalar o chicote com um ruído retumbante, e então repetiu seu gesto sobre as cabeças das jovens que se enrolavam e começavam a proferir pequenos gritos de um terror simulado, enquanto se contorciam no meio dos tambores.
            
De repente, Sir Nigel fez um chamado estridente, o qual as jovens responderam se projetando umas sobre as outras em um corpo a corpo furioso, se agarrando pelos cabelos, arrebatando os corpetes de musseline e lançando longos gritos de arrepiar os cabelos. Sir Nigel saltava aqui e acolá, emitindo pequenos grunhidos, fazendo estalar seu chicote e, de tempos em tempos, lacerando uma das possuídas. No instante anterior elas ainda representavam a comédia, agora elas soluçavam e lutavam com as garras expostas. Sem que eu pudesse notar qualquer sinal, a cortina se levantou e a negra avançou para o meio do grupo selvagem, separando as jovens à força e obrigando-as a se levantar, após o que ela fez com que desaparecessem atrás da cortina, nos deixando a sós com Sir Nigel que continuava a chicotear o ar caminhando em nossa direção.
            
Seus violentos esforços físicos o fizeram perder o fôlego. “Agora, elas estão trancadas em seus quartos”.
            
Ele estalou seu chicote sobre nossas cabeças, fixando o olhar em cada um, em seguida tirou de seu bolso uma pesada chave e a sacudiu para nós.
            
“Mas se qualquer um dentre vocês tem o desejo de passar um tempo com uma dessas jovens, eis a chave do proprietário”.
            
Seus olhos brilhavam: dois olhos de chipanzé enfurecido. Eu me dei conta que para Sir Nigel, a noite inteira fora preparada para esse clímax. Os outros, visivelmente, compreenderam da mesma forma, pois ninguém disse nada e o silencio se prolongou. Sir Nigel lançou um “ha!” carregado de desprezo e jogou o chicote na direção dos tambores. 
            
“Receio ser obrigado a voltar ao hotel”, disse alguém.
            
Sob um murmúrio geral de concordância, nos levantamos todos para agradecer nosso anfitrião, que nos acompanhou até a porta. Ele se curvou, “Boa noite, disse com uma voz doce. Boa noite, espécie de porcos! Boa noite”.
            
Ao atravessarmos o prado sombrio, um dos ingleses que conheciam bem Sir Nigel nos forneceu algumas explicações: era verdade que as meninas viessem de plena vontade das aldeias das montanhas da região. Cada uma era sequestrada durante um mês e depois regressavam, dotadas de um luxuoso caftan, um conjunto que, no passado, constituía um sonho jamais acessível. Foi a visão das roupas que aguçava as outras jovens a vir à casa de Sir Nigel, em Tanger. Elas não eram maltratadas de fato, afirmou, elas dispunham de um quarto na ala reservada para as domésticas e a negra lhes preparava seu alimento. Eu compreendi hoje porque Sir Nigel não queria nenhum empregado nativo. Teria sido perigoso. Se um marroquino tivesse ouvido falar o que se passava em sua casa, teríamos imediatamente criado um escândalo.
       
Entretanto, alguns meses mais tarde, houve um vilão; podemos supor que a presença das jovens teve algo a ver com isso, Sir Nigel deixou o pais e seu exílio se prolongou durante muitos anos. Todavia, ele retornou para morrer de uma crise cardíaca, sentado no terraço do Café de Paris, no centro de Tanger, ao meio-dia.