15 fevereiro 2017

Sob o signo dos bancos

No setor onde prosperava obras econômicas e políticas, 
agora a miséria da autoajuda empresarial


Tive a oportunidade de consultar antigos arquivos de documentos de meu pai, do tempo em que era bancário. Deparei com alguns memorandos emitidos pelo setor de recursos humanos e rememorei a parte triste de minha infância, quando adentrava as agências em que ele trabalhava. Sobreveio o cheiro ocre de dinheiro, a profusão de mesas de fórmica branca e de empregados de camisa branca e gravata esbaforidos em meio a uma correria sem fim. Um verdadeiro espremedor de consciências, pois o que contava era a força de trabalho física, tudo sob o acompanhamento de contadores mesquinhos. 

Pois bem, os memorandos. Eram uns cinco ou seis, respostas a solicitações de férias de meu pai. O primeiro de 1960, o último de 1973, o mesmo estilo linguístico, a mesma resolução, provavelmente a mesma máquina de datilografia e o mesmo autômato a redigir. Em todos, a permissão para que meu pai gozasse de férias de tal a tal dia, desde que indicasse antecipadamente seu substituto e verificasse se o mesmo não possuía alguma pendência financeira no mercado! Controle e submissão. Como eram tristes aqueles textos, sem nenhuma inspiração, sem qualquer liberdade de expressão, cumpria-se a cartilha assim como nas agências, a correria era o produto da cartilha tayloriana. 

Na central do banco, em um bairro de Osasco denominado Cidade de Deus, na entrada do prédio administrativo havia um burrico de bronze, carregado de gravetos. A epígrafe embaixo, igualmente gravada em placa de bronze, dizia "Só o trabalho pode produzir riquezas". Esse burrico era para mim, uma criança e depois um adolescente, o sinônimo da perversidade bancária e, por consequência, da exploração do capital. Lembro do terror que ao final de cada ano abraçava a cada gerente de agência, e por extensão meu pai, pois era o tempo do acerto de contas, a conferência da produtividade ao longo do ano, e os que não atingiam as metas (estou falando dos anos 1960 e 1970!) eram "recolhidos", era essa a expressão. Ser um recolhido era a humilhação máxima que podia acontecer a um gerente, pois era chamado para trabalhar na central do banco, diretamente sob o controle do grande irmão, em uma mesinha de fórmica repleta de papéis.

Ser recolhido era o sinônimo do banco para o que se chamada de "reeducação" no estalinismo. Era o lado perverso do sistema. Ninguém saía impune dali, o melhor que podia acontecer era retornar a uma agência sem as "divisas", para um trabalho junto aos contínuos. E o pior que acontecia era a demissão.  Meu pai sobreviveu nesse ambiente por longos 30 anos, e literalmente sobreviveu pois em três ocasiões escapou da morte certa. Enfim, não consigo imaginar como poderia manter uma consciência crítica nesse trabalho esmagador, submisso. Os memorandos mofados me fizeram relembrar como esse lugar de trabalho era sem graça. 

Agora vejo os bancos saírem da administração e dos lucros de sua atividade financeira e expandir os tentáculos para outras áreas. Então surgem salas de espetáculo, salas de cinema, estações de rádio controladas por bancos, formatando suas estratégias mais ambiciosas. Eles voltam a se aproximar de mim com seus tentáculos infames. Também aquilo que um dia foi a maior livraria do Brasil, aqui na avenida Paulista, torna-se a passos largos em mero galpão de livros de autoajuda empresarial, depois de sua aquisição por um grande banco. Uma abundância de títulos descartáveis, como se o sistema quisesse nos "recolher". As tristes tumbas bancárias estão de volta, agora para agrilhoar as consciências de todos indistintamente. 


Sobre a decomposição moral


O que mais me chama a atenção nesse processo golpista é o sentimento de esperança que muitos alimentam em relação às instituições que apoiaram o golpe, vale dizer, a mídia corporativa, o judiciário, o empresariado e uma penca de parlamentares. Salvo pequenos entreveros aqui e ali, elas apoiarão o poder executivo em sua canalhice moral e em sua incompetência administrativa pelo menos até 2018.

Já não se trata de resistir, mas de enfrentar! Concordo com a análise do professor Peter Pal Pelbart, “a revolução é da ordem da cólera e da alegria, não da angústia e do tédio”. E para começar, temos a consciência dos fatos e os muros cinzentos para rabiscarmos nossas palavras.

Só não podemos esquecer, como diz o professor Pelbart, que "é preciso destituir a corja de bandidos que sequestrou o Estado (e) quebrar o monopólio das corporações que os sustentam". A pior coisa será aceitar pacificamente a paz cemiterial que nos impõem, sem o menor escrúpulo.

-o-

Leio outro texto revelador, de Aldo Fornazieri, sobre o que chama de 'decomposição moral das instituições'. Há uma corrosão completa começando pelo interior das instituições - mídia, judiciário, legislativo, empresariado, que se espraia para o restante da população, de maneira sórdida e irrefreável, verdadeira terra-arrasada que nos conduz a um Estado com funções vegetativas e a uma população bestializada. Em suma, mera sombra da nação que fomos.

O que sobrevive desse caos metodológico é sem dúvida o poder financeiro, que parece alimentar de maneira frívola o que se denomina como oportunidades de negócios. Parece ser o fim da estratégia de convencimento, do argumento sedutor, o objetivo torna-se uma ação de guerra, negociar com artimanhas canhestras e disseminar os exemplos antiéticos. 

Como se os bancos, via patéticos agentes de terno e gravata, deliberadamente promovessem um vírus degenerativo que, uma vez absorvido pelo cérebro, entorpecesse a capacidade crítica, tornando-nos dóceis ao mundo paralelo de paz e esperança, construído pelo discurso midiático.

Perdemos nossa representação política - talvez resultante de outro vírus inoculado pelo poder financeiro - e a percepção política dos fatos. O movimento golpista, desde seu início, insinuou seu propósito de nos transformar em outra Síria, talvez seja o desígnio do poder financeiro, parodiar Che e criar uma, duas, três, muitas Sírias pelo mundo, em nome do instinto de exploração do capital.


12 fevereiro 2017

Memorabilia



Na foto acima há um conjunto de informações formais que nos permite aprofundar um pouco mais em sua composição. A acreditar na data colocada à mão, no canto inferior esquerdo, ela completa 80 anos, e o que temos é um grupo de crianças, oito ao todo, enfileirado em um quintal de terra batida, alguns mais bem trajados que os outros, com um casarão pobre de tijolos e telhado de barro cozido ao fundo, em um lugar impreciso. 

Nem todos estampam um sorriso nas faces, o que não significa que os mais sérios estejam descontentes, e a considerar a sombra que imprimem no solo, estão no meio do dia. O que aparenta ser o mais velho da turma segura uma bola e expressa um gestual dinâmico, como se estivesse prestes a caminhar em direção ao fotógrafo. O outro que quebra o imobilismo formal da pose é o primeiro à esquerda, como se brincasse com o momento. Como última observação objetiva, a informação extra-diegética do ano anotado à mão, o mais jovem da turma ultrapassa 80 anos de idade.

Agora as informações que transcendem o registro formal. São crianças de classe média baixa; os jovens mais bem vestidos são da mesma família, os três da esquerda, mais o menino com a bola. O pequeno no centro e a única menina, a quarta da esquerda para a direita também. Estariam mais informais pois, suponho, a foto é um acontecimento forjado para celebrar os descendentes homens da casa, e o pequeno mesmo sendo menino, não dispunha de roupas apropriadas para o evento solene.

A foto foi tirada na cidade de Birigui, noroeste de São Paulo, em um bairro denominado Patrimônio Silvares, que na época ficava afastado do centro. Creio que não a vi mais de duas ou três vezes ao longo da vida, o que me permitiu fazer o reconhecimento dos personagens sem precisão concludente. A dar fé à minha lembrança, pelo menos dois estão mortos, a menina, Mafalda, que chegou aos oitenta anos, e o menino da bola, Irineu, que não chegou aos sessenta. E pelo menos quatro estão vivos e saudáveis, os dois primeiros à esquerda, Alcir e Edson, que na foto tinham quatro e seis anos, e o pequerrucho, Ourival, com dois anos. Estes e mais aqueles, todos irmãos. 

E completa a escala dos jovens vivos o terceiro à esquerda, de olhar mais compenetrado, Lairo, como seu primo Edson, tinha seis anos. Na verdade Lairo é um cognome familiar, o qual ninguém, nem o próprio, nunca soube definir a origem. Passou a infância e a adolescência no convívio cotidiano com seus primos, nessa mesma casa, em razão da ausência do pai e da morte prematura da mãe. Fora do círculo familiar foi conhecido pelo sobrenome, Bin, um bom jogador de futebol, advogado trabalhista, um homem justo e generoso, meu pai.


09 fevereiro 2017

Sobre o ganido do ouriço

'Las manos de la protesta', Oswaldo Guayasamin

Quando assaltaram o poder, cheguei a comentar aos mais próximos que fariam tudo o que lhes aprouvesse para impor suas míseras vontades. Não me surpreende, portanto, a calhordice dessa gente, mas lamento profundamente o tempo que nossa sociedade levará para recompor minimamente o estrago político e social. 

Incorporam a mediocridade imediata, disponível nos lugares-comuns que justificam a cordialidade brasileira e repudiam um projeto de nação, porque seu objetivo é justamente demolir o estado responsável pelas políticas econômicas e pela proteção social. Assumem um neoliberalismo esdrúxulo, já rejeitado nas principais economias industriais e se esforçam para preencher com arengas assépticas, enxutas e arcaicas o dístico positivista "ordem e progresso". 

Por muitas razões, penso que governam para ninguém, assim como a mídia corporativa se faz sem leitores e espectadores, as forças produtivas descartam as leis trabalhistas e as instâncias da justiça distorcem a letra da lei. 

Exalam palavras para serem esquecidas e novos padrões para serem assimilados, de onde se pode depreender que a farsa produzida e alimentada por esse governo golpista se desenvolve em um proscênio mambembe, a oferecer esquetes sombrios com a pretensa dimensão das feiticeiras de Macbeth em suas loas, "dobrem e redobrem a lida e o trabalho; o fogo cante e o caldeirão borbulhe". 


Entre informar e distorcer


Mais do mesmo: destaco aqui a cobertura jornalística de uma emissora argentina sobre a morte de Marisa Letícia, esposa de Lula. A diversidade informativa contida na rápida matéria produzida pela C5N, um canal voltado para notícias, só é possível na Argentina graças ao espírito da Ley de Medios, que embora bastante mutilada atualmente, ampliou a participação de agentes sociais nas comunicações no espectro magnético.

No Brasil, lamentavelmente as castas midiáticas controladas por algumas famílias e hoje, poderosamente castradoras dos fatos sociais, persistem em distorcer a notícia em favor do status quo golpista. Significa dizer que as contradições na montagem do discurso transformam os meios corporativos em meras agências de publicidade do poder usurpador.  

Retorno ao tema da concentração midiática, quando já imaginava farto em analisar o assunto. As surpresas desse jornalismo serviçal parecem não se esgotar e a Argentina, que passa pela mesma distopia do processo neoliberal, é capaz de mostrar vozes autônomas na construção do relato jornalístico. Estamos longe de dispor desse contraponto de ideias em nossa mídia; estamos longe de acompanhar a reflexão de jornalistas da estirpe de um Victor Hugo Morales, ou de um Pedro Brieger, no horário nobre.