26 junho 2017

Cidadão Ranulfo


La manos de la protesta, Oswaldo Guayasamin


Acabo de desligar o gravador, Ranulfo me diz "essa entrevista pode ajudar a você, mas a mim não vai fazer diferença", assim mesmo, sem rodeios. Durante os pouco mais de dez minutos manteve uma postura altiva, sem se intimidar. Sua fala é firme, escorreita, ainda que me desafie enquanto entrevistador, parece gostar da oportunidade de falar, ou pelo menos de ter uma chance de expor seu argumento crítico, como se ele o tivesse desenvolvido aos bocados, ao longo dos 64 anos de vida. 

A memória dos fatos é incisiva, "cheguei aqui há 47 anos, mas não foi debaixo de uma carroça", e quando pergunto se voltou para Salvador, "cheguei aqui em maio de 1970 e voltei lá em outubro de 1994, uma vez só". Ainda que rigoroso na descrição de sua apreensão do mundo, não relaciona sua condição de morador de rua com a atávica ausência de políticas públicas. Acompanha as notícias do mundo pelo rádio, pela TV, não sente falta de um aparelho para navegar na internet, mas ainda quer ter um celular para entrar em contato com as pessoas. Eu me pergunto, quais pessoas? Quando o encontrei, estava em papo aberto e reto com outro "carroceiro", em uma esquina do Paraíso.

Ranulfo é o segundo sem-teto que entrevisto e como o primeiro, fez questão de mostrar seus documentos, deixando a impressão de que é constantemente abordado pela polícia. Pergunto se a lei costuma incomodá-lo, não compreende, preciso explicar melhor o que quero dizer. E me responde com um exemplo, "ali em frente daquele prédio que tem a mulher (que se indispõe com ele, foi a primeira coisa que me contou quando me aproximei) a prefeitura me pagou 100 conto para ajudar a mudar de lugar uma placa que estava no lugar errado, à noite a polícia encostou desconfiada que eu estava roubando e deixei que o pessoal esclarecesse os policiais. No meio da confusão, falei pra eles resolverem enquanto eu ia tomar meu conhaque".

Fumava um cigarro atrás do outro, não por nervosismo. Eu fazia as vezes da mídia, segundo suas palavras, por isso não sentia inconveniente em falar, mas por certo alguma ansiedade, o que explica seu início com respostas enfáticas quase agressivas. Eu entendia que a calibragem do tom viria com a conversa, e mesmo dizendo-lhe mais de uma vez a razão da entrevista, Ranulfo não se sentiu satisfeito. Sua solidão perene em meio à multidão indiferente criara uma crosta de proteção, que servia igualmente de distanciamento.

Ranulfo se informa pela mídia dominante, TV e rádio, e faz questão de se informar sobre política. É forte sua decepção, mas coloca-se a disposição para falar do tema, “nunca votei no PT, quando vi meu candidato (Maluf) estampado junto com a Marta ali no outdoor, eu falei ‘mas nunca você ganha o meu voto’ e não votei mais”. Tento explorar essa posição, ele não facilita e expõe um arrazoado com sua firme dicção, ainda que confuso, "direito adquirido não se mexe", questionando as mudanças projetadas pelo governo golpista, "agora aos 65 eles querem mais 15 anos de contribuição (...) então vou ter de morrer ali debaixo", apontando para a carroça. Comento que lhe darei um livro de Che Guevara, ele ensaia em espanhol "el comandante Che" e pede que deixe "naquela portinha, com a pessoa que estiver lá que depois eu pego" e se afasta, sem se despedir. Nossa entrevista terminou como começou, sem qualquer formalidade. 

Como escreveu belamente João do Rio, "Qual de vós já passou a noite em claro ouvindo o segredo de cada rua? Qual de vós já sentiu o mistério, o sono, o vício, as ideias de cada bairro?". A rua tem alma e não há porque se admirar em ver os homens nelas dormir como se em casa estivessem, pois conforme João do Rio, "somos reflexos". Já não há mais lugar para o suave estranhamento da admiração, mas de se compreender a miserabilidade que elegemos como invisível. Não há como apreender a alma das ruas sem vivê-las intensamente.



23 junho 2017

Mano Browm, há um ano

  Mano Brown sobre os atores golpistas e seus atos

A impressionante lucidez social e política de Mano Brown, comentando, há um ano, sobre a desqualificação moral do governo golpista vigente, antecipando ao mesmo tempo as pautas hoje presentes seja nos debates de círculos intelectuais como nas passeatas de rua hoje em dia pelo Brasil, ou seja, eleições diretas, a ignorância política, o discurso tendencioso dos meios de comunicação, em destaque o do ainda influente conglomerado Globo. 

No momento da entrevista estávamos antes das eleições de novembro, cujos resultados completariam o cataclisma liberal-conservador que aprofundam as diferenças sociais, o autoritarismo das decisões políticas e o contínuo desinvestimento na educação e cultura. Mano Brown aponta com clareza que, antes das periferias tornarem-se "liberais" e deixarem de votar na esquerda como sugere certo discurso intelectual, ela foi abandonada a sua própria sorte.


14 junho 2017

Sobre artigos e pesquisas




Entre o final de abril e o final de maio, tive a grande satisfação de ver publicados dois textos que me deram muito prazer em escrever. O primeiro, como ensaio na edição 11 da revista Lumina, ligado ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), sob o título O Imaginário Latino-americano: memórias devoradas que se recriam, artigo que já havia sido apresentado no Congresso de Comunicação (Comunicon) do PPGCOM-ESPM, no longínquo 2012. Foi parcialmente revisado e ampliado em 2015 e esperou quase dois anos até ser aceito e publicado.

O outro artigo, As Periferias Digitais, mobilização para além da resistência, trata de meu objeto de pesquisa mais recente, envolvendo a digitalização das periferias como forma de ação cultural e política. Ele abre a sessão de Artigos Nacionais na edição 22 da revista Comunicação & Educação, do Departamento de Comunicação e Artes da ECA/USP. O texto igualmente havia sido apresentado anteriormente, neste caso no Seminário de Sociologia da FESPSP, 'Cidades conectadas: os desafios sociais na era das redes', em setembro de 2016, fazendo parte dos anais do evento.

Enfim, convido os leitores a apreciarem estes textos cujas temáticas, as periferias de São Paulo e o processo de formação sócio-político-econômico da América Latina, têm me mobilizado nos estudos acadêmicos. Podem ser encontrados nos links abaixo:

O Imaginário Latino-americano: memórias devoradas que se recriam
https://lumina.ufjf.emnuvens.com.br/lumina/article/view/466

As Periferias Digitais, mobilização para além da resistência
http://www.revistas.usp.br/comueduc/article/view/123209

As Periferias Digitais, mobilização para além da resistência (versão mais extensa, publicada nos anais do Seminário de Sociologia da FESPSP)
http://fespsp.wixsite.com/anais/gt6-16