22 agosto 2015

Deutscher, Trotski


Natália, Trotski e Liova


Faz algumas semanas que penso em escrever sobre os últimos anos de Lev Davidovich, Trotski, do ponto de vista de seu mais completo biógrafo, Isaac Deutscher. Porque ali encontro não só a bela descrição de um consistente sistema de ideias - do contrário, não teria sido vítima de cruel perseguição sofrida por longos doze anos - mas também o texto exuberante de um intelectual marxista polonês que se empenhou em relatar em profundos detalhes o percurso do líder bolchevique.

Exuberante por vários motivos. O que mais me atrai na construção da pesquisa de Deutscher é a competência como descreve a cronologia dos fatos de uma época, sempre relacionando com sua personagem biografada. Assim, tomando este terceiro volume, O Profeta Banido, é possível acompanhar um painel da situação da oposição política na URSS no final dos anos 1920 com o exílio de Trotski em Alma Ata e mais tarde, com seu banimento para Prinkipo, na Turquia. Os anos trinta aparecem como uma sucessão de desventuras para Trotski, perambulando pela França, Noruega e México, sempre com o pano de fundo político de cada país, desenhados pelos principais atores políticos da época. 

A evolução do pensamento e da ação de Trotski são regidos pelas circunstâncias políticas definidas pelo exílio, e paralelamente, pelos acontecimentos no cenário europeu, como a subida dos nazistas ao poder, o front Populaire, os processos de Moscou, os alinhamentos dos partidos comunistas e a capitulação à burocracia stalinista. Os macro acontecimentos regem os movimentos de Trotski, que sem tempo para se definir uma plataforma de ação, sucumbe às pequenas demandas, as disputas internas de seu movimento e as urgentes respostas aos caluniadores. Aqui e ali, a liberdade para uma ação política mais consistente, como os encontros com Rivera e Breton, por exemplo, mas será uma década sem uma grande obra, à altura de Literatura e Revolução, ou A História da Revolução Russa, redigidos quando ainda participava do poder.         

Minha primeira leitura de O Profeta Banido ocorreu há exatos 30 anos, quando organizava meus conhecimentos políticos não apenas da revolução russa, mas sobre as tendências de esquerda, de um modo geral. Respirávamos, naquele momento, os ares da redemocratização, e os partidos definiam seus projetos para o embate político, que se estenderia com vigor até as eleições de 1989. Curiosamente neste ano, com a queda do muro de Berlim, ocorre um refluxo das utopias da esquerda, ocasião em que o neoliberalismo, amparado nos ideais dos governos de Reagan e Thatcher, ganha espaço com fuerza abrumadora. Os sonhos e esperanças dos processos de reabertura política nos anos 1980 em nosso continente sofreram um duro golpe, e o retrocesso duraria pelo menos uma década, quando uma onda de governos populares, começando em 1999 com Hugo Chávez e com Lula em 2002, romperiam de vez com o projeto de um mercado comum nas Américas, a famigerada Alca.  

De lá para cá, costumo retomar ao acaso a leitura de pequenos trechos da obra de Deutscher, e me situar em um determinado espaço-tempo da vida pessoal de Trotski. Termino por permanecer dias e mesmo semanas com o largo volume, avançando, recuando, buscando outros instantes desta luta imensa e condenada. Premido pela velocidade dos fatos, é um período em que não ocorrem grandes debates políticos que possibilitem um avanço no campo das ideias e das práticas no movimento comunista. Mesmo a organização e realização da 4a. Internacional se dará de modo praticamente clandestino. Trotski só tem tempo de responder, de reagir, e em certo sentido, de dançar conforme a música, o que faz com muita energia. A evolução dessa atividade exige esforços desgastantes, que nem sempre terão a repercussão desejada.  

Trotski esteve sempre muito à frente na análise da conjuntura política do que seus seguidores. Foram poucos os fiéis companheiros que puderam compreender e dar continuidade ao conjunto de proposições de seu líder, e nesse sentido fracassaram. Na parte final de sua vida, Trotski esteve à deriva na busca por um exílio satisfatório e por conta disso e da implacável perseguição da GPU, viu-se completamente isolado na articulação da 4a. Internacional, e como comentado acima, no avanço de uma oposição eficiente ao centralismo burocrático. A grande obra, a elaboração de uma biografia de Lênin, e sua principal denúncia, a biografia iniciada sobre Stálin, não se consubstanciaram. Pela dificuldade das circunstâncias, Trotski não conseguiu granjear militantes e simpatizantes em número suficiente para recompor uma plataforma de lutas, e não tardou a ser absorvido pela insídia stalinista. 

Ao tempo em que a narrativa das tensões políticas avança, Deutscher, por sua formação eclética, nos permite igualmente aproximações frequentes com a literatura. Em certo momento, Trotski se refere aos percalços do dr. Stockmann, personagem de Ibsen, quando se vê acuado por uma autoridade norueguesa. Mais tarde pude ler esta peça e constatar as similaridades entre a ficção e a realidade. Deutscher também relata a coincidência histórica que o próprio Trotski, em dado momento, estabelece com o arcipreste Protopop Avvakuum, personagem do século XVII que terminou condenado à imolação em praça pública. Também a certa altura, surge a referência ao rei Lear, de Sheakespeare. As relações com personagens atormentados ou condenados não descaracteriza o sentido da resistência ideológica que impregna cada personagem e por certo seja este aspecto, de cariz visceral, inexorável, que me aproxima de Trotski. E é o que encanta no magnífico painel construído por Deutscher. 


17 agosto 2015

O disperso agregado

manifestação
"Essas cicatrizes constituem deformações (...) podem tornar as pessoas burras"
Adorno/Horckeimer - A dialética do esclarecimento.

Nada me pareceu tão vago quanto esta manifestação organizada pelas oposições no Brasil. Na verdade, mais um encontro do tipo convescote de final de semana ensolarado do que propriamente um movimento reivindicatório. O dia estava bonito, a força convocatória nas mídias em pleno vapor, então porque não ir até a Paulista com a família, vestindo as camisas amarelas? Como de costume, os carros de som se distribuíam pela avenida, martelando palavras de ordem proferidas ao sabor do ódio do momento, em falas curtas, nem sempre audíveis, finalizados com os chavões usuais que ditos com a fúria esperada, empolgam os participantes do pedaço. As diatribes geradas pelo sistema de som de um veículo nunca é o mesmo daquele outro, trezentos metros adiante, e assim, em cada pedaço da manifestação, uma sandice distinta da outra, animando a indignação de quem transita com suas faixas disformes. Aqui, uma em inglês rechaçando tornar-se uma Cuba, ali outra pedindo a intervenção militar, acolá uma justificando a sonegação como legítima defesa... Procurei caminhar por entre os manifestantes, não se nota unidade, mas fragmentos que circulam, como blocos no degelo de um caudaloso rio. Se persiste o sentimento de repúdio, não é menos verdade que ele não se integra em uma agenda, como disse acima, em um discurso consistente, que dê força e sentido ao movimento, fazendo-o avançar. Se não há representação política, se não há proposição organizada em um conjunto de demandas, então o que move aquelas pessoas? Quem são? Provêm de quais setores sociais? É difícil compreender que não se articulam em torno de uma finalidade a não ser a retirada de Dilma e do PT do poder. Também parece muito simplório dizer que sejam conduzidos por uma onda de desprezo gerada nas mídias hegemônicas, ou patrocinados por não sei quais corporações. O que sei é que desfilam de modo descontraído, milhares deles, em sua maioria brancos, com aparência saudável, em família, com trajes verde-amarelo, exalando mais do que indignação, o vigor de uma repulsa raivosa, em muitos momentos grosseira, preconceituosa e presunçosa, e não raro, historicamente equivocada. O andar incerto de uma tarde, um disperso agregado que é sem se consubstanciar, sintoma de uma episteme que não se consolida, de um mal-estar que não se dilui, mas também não ganha força implacável. Temos um movimento contemporâneo, parido do ventre neoliberal, que se agrega de acordo com os matizes do momento, em torno de pequenos grupos que arregimentam com base em sua notoriedade efêmera, canalizando sentimentos fragmentários e como consequência, produzindo posicionamentos tão díspares quanto indefinidos. 

Eis meu esforço, em torno de palavras, que não conseguem dimensionar a clara impressão dos fatos.