26 agosto 2011

Último desejo



Douglas mostrou-se satisfeito ao sair da loja com um reluzente celular. Caminhava por entre as pessoas, enquanto manuseava feito criança o aparelho, que em breve ganharia vida. Seguiu no sentido da cafeteria Pasternak, não só para tomar seu café da manhã, mas para descansar um pouco, desta feita sem o miserável apoio de sua bengala. Escolheria uma das mesinhas, ao lado das vidraças, para olhar um pouco as pessoas e ganhar outras impressões além da satisfação em dedilhar o seu novo brinquedo. 

Mas bastou dar os primeiros passos pela calçada para deter-se hesitante, a percepção esvaziada pela reflexão enviesada. Antes de assimilar as infinitas possibilidades do aparelho, a dúvida, a quem seria dado o primeiro telefonema? Não tinha intimidade com ninguém que valesse a pena receber um telefonema. O pai e a mãe, mortos, os amigos em destinos ignorados. Repassou uma vez mais a imagem do filho que não teve e o único tio vivo estava morando sabe-se lá em que rincão do Mato Grosso. 

Pensou em um ex-colega do clube em que fora sócio, pouco antes de se aposentar... o mal-estar pronunciou-se mais forte, aproximou-se do muro e da sombra, enquanto esforçava por rememorar, e pensou nas mulheres da sua vida. Lucinha, desaparecida nos porões das torturas... Esmeralda, que o enfeitiçara com o viço buliçoso do olhar... Adelita, graciosa e bonita, que regava as flores... e alegrava a vida cantando canções de amor... Marieta... uma coquete por quem perdera a cabeça, por isso a quis, por louca e coquete, sua linda Marieta... 

Encostou-se ao muro, a fim de restabelecer o equilíbrio. Sentiu as primeiras dores... acompanhou como se fosse tão estranho as pessoas aceleradas, muito parecidas nas expressões desinteressadas. Passou a mão no rosto úmido, a expressão grave, ainda o esforço por lembrar as opções que não tinha. Excluiu o pessoal do antigo serviço... Sebastião talvez merecesse um telefonema, pela amizade demonstrada depois da morte da esposa, mas... o que diria? Um nó na garganta o impediu de respirar livremente. Num derradeiro gesto, lembrou do Ermanno, querido amigo de infância, cúmplice das situações cotidianas, e que não encontrava havia uns bons quarenta anos...

Muitas outras imagens apareceram apenas para desaparecer, voláteis como a bruma das manhãs, e ainda teve tempo de acreditar que seu desalento fosse passageiro, mas o tempo não lhe agraciou com o fôlego necessário para meditar mais a respeito. Douglas sucumbiu segurando firme o brilhoso aparelho, sob a curiosidade de dois garotos de rua, agachados, tão próximos e tão distantes.


Gratuidade


Senti o gosto de meu próprio sangue... Sei que é difícil recuperar uma narrativa límpida, mas... mas era visível que os dois homens que entraram no ambiente não tinham mesmo boas intenções. Era como se eu soubesse que ambos portavam armas, por sob seus sobretudos. Procurei alertar as pessoas presentes, mas minha voz fracassou... A tudo visualizava, tal como uma câmara indiscreta, que captava os movimentos na mais completa impotência, guardando-os para mim. Tentei me esconder, fugir dali, mas não tinha pernas e meu olhar furtivo se alimentava da presença dos matadores, que se imiscuíram por entre suas vítimas, com o mais natural dos comportamentos. Eu os identifiquei, em meu silêncio, como os cruéis assassinos de um futuro anunciado, a cada instante mais próximo. Ficou claro que qualquer esforço seria vão, que o vago plano dos criminosos seria levado a cabo. O primeiro deles começou a sacudir estranhamente o corpo, como se fosse a senha para o ataque e o outro seguiu o combinado,  ao erguer o braço e atirar com a pistola, para um lado, para o outro, indiscriminadamente. A cena, de meu ponto de vista, passou a transcorrer como se fosse um filme silencioso, os movimentos contorcidos, dilacerados, se debatendo em pura representação imagética. O sujeito que sacudia não demorou a mostrar sua escopeta debaixo do sobretudo e mais uma vez compreendi que não escaparia. Eles atiravam e sorriam. Tive a impressão de reconhecer um deles, quando o que portava a pistola se aproximou de maneira convicta, mirou-me na face e, sem dor nem apelação, efetuou um único disparo.


21 agosto 2011

Um canto solene


Fazer qualquer coisa é melhor do que o tédio das imagens e a miserabilidade das narrativas esportivas no domingo. Brincar com os filhos, visitar a feirinha de artesanato, ouvir música, escrever uma poesia, tomar um café com amigos, descansar na rede, sonhando com o amor que alumbra a vida. Qualquer coisa vale, tentar ler a página de um livro, navegar na internet, dar um mergulho no mar, passear com o cachorro... menos assistir a descrição das partidas de futebol, as entrevistas, o show de entretenimento fútil e repetitivo, sob o risco de dissolver a autonomia que temos para a compreensão do mundo, e a certeza de alimentarmos a ganância de uns poucos barões da comunicação. 

Nada ganhamos com nosso sagrado tempo morto diante dessa programação televisiva, nem com a vitória de nosso time, tampouco com as videocassetadas. Nada que inspire ou devolva o alento, apenas o choque voraz, que embaralha as certezas e agrava os temores. Um ritual lânguido, que reforça o torpor e conduz ao vazio da alma, o afundamento no nada e a desolação, antes da segunda-feira de batente. 

Enquanto me proponho em levantar ainda uma vez esta discussão, aqui neste blogue, um pouco desacorçoado, mas sem perder a esperança de que saberemos romper aos bocados a pressão desse garrote infame, ouço ali, vindo do prédio em reformas, uma voz solitária que se destaca, um canto solene, ritmado, inebriante, na tarde fria e apagada da metrópole. Um homem que tece as loas enquanto reafirma sua cultura, em meio aos ruídos destoantes, essa sofreguidão sonora que estronda a selvageria dos gestos, almejando o progresso. 

Esse mesmo progresso descrito por Benjamin, a tormenta que nos impulsiona de costas para o futuro, enquanto observamos em nosso rastro o monte de ruínas a alcançar os céus...



17 agosto 2011

O fracasso da violência



Emma Martinovic foi uma jovem que sobreviveu à chacina da ilha de Utoeya, cometida por Anders Breivik, um xenófobo que levou às últimas consequências seu ódio pela diversidade humana. Em seu depoimento, que pude ler no sítio Ópera Mundi, ela explica como teve de lutar pela vida, e mesmo atingida pelo terrorista, nadou com muito esforço, enquanto ouvia os gritos dos amigos e a morte se disseminar brutalmente ao seu redor. 

Em meio a esse cenário pungente, a certa altura Emma diz que "era possível ouvir tiros, gritos e a risada, a inconfundível risada do desgraçado. Ele gritava e dizia que não escaparíamos".

Anders cumpriu o seu propósito otimizando com impressionante frieza o seu desempenho, ao alvejar cada uma de suas vítimas. A violência, sob um tosco rótulo ideológico, se consolidou com o escárnio típico dos que se consideram racialmente superiores, quando Breivik definiu o destino delas, estampando a risada inconfundível com hálito mortal. 

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A primeira referência que tive do termo 'tropas de choque', ou paramilitares, foi dos bandos que tomavam as ruas das cidades alemãs, vestidas de camisas pardas e denominadas de SA - Sturmabteilung. Eram bandos incontroláveis que produziam exatamente isso, choques com seus adversários políticos, arruaças brutas, propagando o gene do partido nazista, a mobilização pela violência. Como diz Modris Eksteins, "O viver perigosamente (do nazismo) significa não aceitar nunca o status quo; significa fazer constantemente o papel de adversário; significa exagerar, provocar. Significa conflito permanente". 

Foi em busca desse "conflito permanente" que os fascismos produziram terror e violência como forma de se impor. A glorificação da violência se reproduziu amparada na sedução estética, no passo de ganso ressoando pelas ruas, nos grandes espetáculos embandeirados, nos uniformes impecáveis, "O terror, como tudo o mais, foi transformado numa forma de arte. Os nazistas mais ardorosos se deliciavam com a estética do assassinato". 

O esvaziamento existencial proporcionado por tal engodo ainda preserva o poder de seduzir corações e mentes exacerbados em seu ódio indolente, estimulando o confronto com culturas distintas, sob um discurso intolerante e excludente, como o construído por Breivik. Conceitos confusos, para não dizer primários, que se acumulam com o mero intuito de justificar a violência, "Vendo a falta de coesão social do Brasil (...), é evidente que uma aproximação similar na Europa seria devastadora e retardante nacionalmente, sem mencionar que seria um grave crime (genocídio) em contribuir de qualquer maneira para a aniquilação, desconstrução e genocídio dos povos indígenas, que são nórdicos por definição". 

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Foi uma briga de crianças, ou antes, um embate em que um batia e outro que se deixava bater. Por alguma razão, resolvi confrontar o amigo, meus socos atingiam o peito e seus braços, enquanto o espicaçava com palavras duras. E recebia de volta o silêncio, o movimento de seus braços desarvorados, esboçando uma defesa. Átila era o seu nome.

Entramos assim em um longo corredor, e os outros amigos se amontoando ao redor, o jogo de futebol definitivamente esquecido. A certa altura, meus movimentos começaram a minguar e ao final do corredor, apenas encontrava disposição para empurrá-lo, quase que implorando para reagir. 

Átila não reagiu, nem proferiu palavra ou gemido, apenas resistiu. O mais doloroso de tudo foi cruzar com seu olhar, desarranjado na dor. Ao final, o encurralei contra a parede, sem tomar qualquer atitude. Seus olhos deitaram lágrimas amargas pelas gordas bochechas. A contenda terminava ali, em seus movimentos tão brutos, destituídos de expectativa. Uma sensação contraditória me tomou ao longo da ação, o prazer em golpear o alvo flácido, tão exposto, e a quase simultânea rejeição em continuar golpeando.  

O fato foi que nunca mais consegui a mesma amizade de Átila, e por anos a fio permaneceu a lembrança de seu olhar, que tardiamente compreendi como uma expressão de súplica. Uma súplica dolorosa, imersa em ternas razões, para que eu parasse o que estava a fazer.

Foi meu primeiro contato com uma espécie de violência gratuita, que me deixou marcas. Mais do que a reprimenda moral, subsistiu seu significado social: ela definitivamente me revelou a impossibilidade de me superar a partir da fragilidade do outro. Pela primeira vez me dei conta de que a agressão me faria sentir apenas vergonha de minha condição humana.  



16 agosto 2011

12 agosto 2011

O retorno a Cambeville




"Era como se a caminhada sorrateira despertasse os deuses fracassados em seu sono eterno e o purgassem com lembranças desvairadas, incompletas, assim como inquietação. A cada olhar, a cada decisão, ele sentia uma pulsação na parte posterior da cabeça, como a orientar-lhe na peregrinação desafiadora. Que fosse insensata ou mesmo inconsequente, ele desejava descobrir em cada rastro marcado por seus passos, as pistas para a continuidade de sua vida. Enveredava para além do desencanto que o recebia sem piedade, pois afinal, havia uma insolência a desafiar a acomodação longamente estruturada. Seria o fim, ou o começo, ou apenas uma solene perda de tempo, coisas que poderiam ser dolorosamente sondadas, com o inefável devidamente instalado em seu bornal..."