21 março 2012

Mulheres de Gaoudel



Os olhares, as expressões das três mulheres mais próximas. Acabam de atravessar a fronteira e esperam. Caminharam sob as condições mais íngremes, e uma vez em aparente segurança, não lhes resta alternativa senão aguardar. Diante de seu interlocutor, que registra a photo-op que correrá o mundo, fustigam nossos olhares compungidos. Não há razão para sorrir ou chorar, por isso exprimem indignação. A alma dilacerada incorpora-se nos gestos visíveis, tornando consistente a coragem que as conduz. Não há rancor ou revolta, ao contrário, há uma sutil elegância que nos embriaga, e assim permanecerão. O clic da máquina eterniza o gesto sublime, de aparência inesgotável, mas antes do mundo disseminar sua emoção, estas mulheres estarão cansadas de perseverar. 

Entregues ao silêncio de seus gestos, será difícil resistir indefinidamente ao escárnio, e o tempo cobrará seu tributo. O corpo manifestará seu brio até o limite do possível, e então... e então já não saberemos mais.



Apenas tudo




por Georg Simmel


"(...) Era uma vez um marido incrivelmente avaro, que tinha uma mulher bonita e jovem. Um dia partiu de viagem, e quando estava longe, um vagabundo golpeou a porta, pois não comia havia muito tempo. A mulher se compadeceu dele e foi buscar carne e vinho, mas descobriu que o marido, antes de partir, havia guardado tudo a chave. Em toda a casa não havia uma migalha de pão. Qualquer outra mulher teria se envergonhado e desesperado, não ela. Tomou o vagabundo pelo pescoço e lhe deu um beijo; como não podia dar-lhe menos, deu-lhe tudo. O vagabundo partiu feliz, menos saciado, mas muito satisfeito".


(extraído e traduzido do livro Imágenes momentáneas, Gedisa Editorial, Barcelona, 2007) 



12 março 2012

O Fabricante de Mentiras


Um sociólogo que sempre me deu prazer em discutir com os alunos na sala de aula foi Georg Simmel, pela atualidade de seus textos, pela fluência de sua escrita, pela clareza de suas ideias. É desses autores que nos preenche com seus argumentos, impulsionando-nos para novos horizontes. É um dos primeiros sociólogos a discutir a circulação do dinheiro e suas consequências na vida da metrópole. Expõe de modo consistente como a precisão e a racionalidade conduzem ao comportamento impessoal, ao esvaziamento do indivíduo (a atitude blasé), a vida objetiva prevalecendo sobre a vida subjetiva. 

A contemporaneidade de suas preocupações, marcadas pelas transformações da vida cotidiana e seus efeitos sobre o intelecto, sempre possibilitou aos alunos realizar o debate de temas cruciais de nossa época, como a violência das relações urbanas, o estresse, a sedução do dinheiro etc.

Ofereço aqui um outro Simmel, uma versão (parcial) de um de seus textos publicados na revista Jugend, uma breve narrativa literária, marcada por elementos lúdicos e fantasiosos.



por Georg Simmel


"Era uma vez um homem ao qual um mago lhe concedeu a capacidade de fazer as pessoas mentir, quando o desejasse (...) Uma vez se enamorou de uma mulher. Sabia que ela era distante e fria com ele e que isso nunca mudaria: entre ambos, havia um abismo que o amor podia perfeitamente saltar, ainda que faltasse a ponte para atravessá-lo. Ela era indiferente com ele, não como se é com qualquer um, mas uma indiferença que sugere um sentimento completamente positivo, não uma falta de sentimento (...). E não pode evitar a tentação de exercer seu poder: obrigou-a a responder que sim, não com o pesar de que fosse uma mentira, até porque era. Pois devia dizê-lo não apenas com seus lábios, mas também com alguma porção de seu eu, que transcendesse seu coração, com alguma parte de si que ela não pudesse desmentir, mas que a alma de sua alma condenasse a mentira.
De imediato sentiu o caráter insuportável da existência que a mulher levava a seu lado, a imensa desdita de que nem sequer uma vez ela pode odiá-lo de coração, mas que abrigara por ele um sentimento mentiroso. Ele havia se enganado, como todos os que opinam que se pode ser feliz em uma estreita relação à custa do outro. E como levavam juntos uma vida miserável, teve a ideia de exercer sobre si mesmo seu poder de fazer mentir: ele mesmo se faria crer que ambos eram felizes. Isto resultou excelente, e agora estava tudo tão bem - ao menos quase tão bem - como se poderia estar. Agora se dava conta de quantas boas intenções havia tido o mago para com ele".

(extraído do livro Imágenes momentáneas, Gedisa Editorial, Barcelona, 2007)


11 março 2012

Pablo Neruda

Santiago vista do cerro San Cristobal, 2008


Em meados dos anos 1980, a poesia de Pablo Neruda foi o instrumento mais ao meu alcance para resistir à ditadura de Pinochet. Seus versos tornaram-se uma fonte de inspiração, e a inquietação de suas palavras me alimentava.

"(...) Mirando frente a frente al sabio
sin decidirme a sucumbir
le mostré que podía ver,
palpar, oír y padecer
en otra ocasión favorable.
Y que me dejara el placer
de ser amado y de querer:
me buscaría algún amor
por un mes o por una semana
o por un penúltimo día".  

Naqueles anos, em pelo menos duas ocasiões, ela revelou-se calorosamente próxima. Numa delas, em meio a uma arguição minha sobre a chama visceral de Neruda (e por certo, da Unidade Popular), uma amiga retirou um dos tantos broches que guardava no peito e me entregou, "Agora isto lhe pertence". Tratava-se de uma delicada bandeirinha do Chile...  

"(...) Patria, tierra estimable, quemada luz ardiendo:
como el carbón adentro del fuego precipita
tu sal temible, tu desnuda sombra.
Sea yo lo que ayer me esperaba, y mañana
resista en um puñado de amapolas y polvo".

Meses mais tarde, ainda sob os efeitos desse tempo aceso da luta, escolhi buscar outras paragens para recomeçar a vida, ou apenas para sonhar. Foi quando um bom amigo, sabendo da minha decisão de partir, presenteou-me com Coração Amarelo, obra póstuma de Neruda. Continha uma dedicatória: 

"O Coração Amarelo do homem Negro, Branco ou Vermelho, que passou a vibrar em plataformas superiores, porque utilizando-se de sua Vontade, passou a saber ousar".