20 janeiro 2015

O mundo ao redor

Amsterdam, 2010


Os signos da fragilidade se estabelecem, e a cada encontro, as transformações removem uma nova porção da saúde outrora inabalável. Hoje não apenas seus passos tateiam o chão, como também a memória começa a pregar das suas peças, e sua continuidade fluida e imediata é parcialmente substituída por nuvens de esquecimento, que antes de mais nada, confundem o raciocínio. E como se cada instante de incerteza representasse uma ameaça, a fala a se coordenar de modo tímido e mais próximo a um balbucio. Já não é mais possível rememorarmos juntos algumas passagens, pequenas e tão esparsas, que convivemos ao longo da vida, e o que parece mais doloroso, talvez não seja mais possível compartilhar meus temores, como em tantas vezes, à espera de sua proteção incondicional. De algum modo, ele sempre esteve 'nos bastidores', amparando-me das armadilhas do mundo. A serenidade acentua-se em um olhar que se acomoda no silêncio, e quando desvanece o interesse, repousa. Agora satisfaço-me com esta presença suave, terna, quase infantil, como uma companhia tranquila, em uma caminhada que aos poucos se abstém do calor da mão protetora.

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A característica principal que move os seres humanos nesta contemporaneidade inconsistente é a fartura de respostas. Há respostas para tudo, para a tristeza, para o verão de altas temperaturas, para a falta de água ou para as chuvas que não vêm, para a ausência de ética, para a economia estagnada, para a violência endêmica... Só não há resposta para a pretensão desafortunada. O ser humano em sua ânsia galopante por se mostrar autossuficiente e assim, competitivo, elimina os parâmetros de uma formação consolidada, amparada por metodologias que estimulem a análise do objeto e a melhor hipótese para a ação. O improviso parece mais excitante ao mover-se na penumbra, e em meio ao destempero, às visões atribuladas de mundo. E assim, o estatuto do conhecimento se confunde com a próxima medalha ao mérito, ainda que o mérito não seja meritório. Castelos na areia, que parecem avançar no vácuo da destruição criativa liberal. A sanha presuntiva nunca esteve tão em alta, e como consequência, nunca houve tamanha gama de respostas. Há os neocons que avacalham com o mundo, há os odiojornalistas que implodem com a mediação, há os fundamentalismos que acabam com o fundamento. O mundo fica mais agitado e barulhento, uma infinidade de neomercadores, que no afã de mostrarem suas precárias competências, transformam-se em pura ambição.


17 janeiro 2015

O encanto carioca


Antonio Carlos Jobim, capa do disco lançado pela Elenco, 1964


Estar no Rio de Janeiro para mim, ainda que por uma breve jornada, é retomar os elementos que incorporam o ser brasileiro, em sua múltipla e diversa interação com a vida cotidiana. A beleza dos casarões arborizados de Botafogo, o espírito das mobilizações na Cinelândia, a delicadeza dos arcos da Lapa, o Cristo que nos acompanha a cada canto, a conversa solta em qualquer esquina. É ouvir Antônio Carlos Jobim, mas também Nelson Cavaquinho, saber do sol em suas cores, do mar em sua poesia. É revisitar as peculiaridades da literatura brasileira, de João do Rio a Vinícius, as paisagens do Cinema Novo, a bossa nova no Leblon ou o charme em Madureira, e aproximar das narrativas de nossa diversidade social. 

É também recuperar o vínculo incondicional com os signos de Nuestra America, tão presente no imaginário popular, para sentir sua história e sua cultura pulsando nas veias. Como é bom estar no Rio de Janeiro.



12 janeiro 2015

Formas e conteúdos da exaustão

Savignyplatz, 2010


Passados 75 dias do segundo turno das eleições presidenciais, o embate entre vencedores e perdedores promete prosseguir acirrado, com movimentos vigorosos da oposição trabalhando para o contínuo desgaste do governo, sem que os argumentos trazidos a lume proponham o esclarecimento da população. A mídia corporativa, que nos últimos anos tem se comportado como uma espécie de porta-voz da insatisfação oposicionista, não se cansa em lançar lenha na fogueira, estimulando uma pressão incansável e muitas vezes suicida não só contra representantes do governo federal, como contra instituições de grande significação simbólica e política, como é o presente caso da Petrobras. 

As primeiras semanas após os resultados oficiais, houve uma mobilização grosseira de parcelas da sociedade civil e de políticos oposicionistas, apostando em passeatas convocadas a toque de caixa, no afã de se aproveitar uma suposta insatisfação popular contra a continuidade do PT no poder. Também nas redes sociais, viu-se uma ação agressiva e inusitada de grupos assumidamente de direita, maculando a população nordestina - mais uma vez decisiva na vitória de Dilma - e em alguns casos, apoiando o retorno do regime militar para 'colocar ordem na casa'. 

A democracia brasileira mostrou-se forte o suficiente para resistir, em todas as linhas, a tantas imposturas, que em outras épocas poderiam ser fatais. Nunca duvidei da superação desse estágio primitivo de manifestação, que se pretendia inverter a continuidade natural do processo político. As vozes grosseiras que se insurgiram, nos corredores do Congresso ou nos carros de som, calaram-se momentaneamente, esgotadas pela inconsistência de seu discurso e pela pouca adesão popular.

Os aríetes dessas demandas atabalhoadas se ancoraram, ainda uma vez, nas manchetes midiáticas. A capa de VEJA, às vésperas do segundo turno, ultrapassou o limite do bom senso jornalístico e das normas eleitorais, constituindo-se no mínimo em uma peça golpista de mau gosto. Os demais meios corporativos de algum modo respaldaram as denúncias sem comprovação, e tudo não terminou tragicamente porque, repito, alcançamos a maioridade democrática, e hoje a população consegue distinguir o joio do trigo. 

Mas certamente ficaram sequelas, difíceis de serem superadas. É certo que em São Paulo, a derrota governista foi agravada por essa conjunção de ações negativas, onde o tema de uma capa de revista se transformou em camisetas e posteres da noite para o dia. E a postura antagônica dos barões da mídia contra o governo segue em alta, sem termos a menor ideia de como isso terminará. Ao que tudo indica, o PT conseguiu resistir ao assédio midiático, com Dilma alcançando índices mais positivos do que à época das eleições. 

A grande questão que retomo, passados estes primeiros meses de tensão e fúria - e que por certo estão a ponto morto pela desmobilização social, em razão do período de férias: se não há a preocupação, por parte da mídia corporativa, em informar a sociedade pela correta e responsável intermediação dos fatos, a que serve, qual sua função social? É óbvio que não basta apenas velar por seus interesses, é preciso compreender sua importância na construção do debate político. Lamentavelmente, porém, o passo dado foi substituir o poder da informação por formas anódinas de especulação. 

Resta dizer que a palavra não se acomoda em seu sentido tosco, constituído de desejos espúrios que não encontram representação social; ela é muito mais, e por certo mais atraente e sedutora quando utilizada com sabedoria. Em outras épocas, seus efeitos embrutecidos, partindo de uma elite econômica e política, conduziram à morte o estado democrático. Hoje, felizmente, somos uma nação que consegue debochar das ultrapassadas pretensões, incapazes de retroagir os verdadeiros processos sociais.


09 janeiro 2015

O Chile em seu labirinto


La Moneda, 1989


Terminei há poucos dias este denso ensaio sobre a ascensão e a queda da Unidade Popular no Chile. São mais de 600 páginas que esmiúçam os acontecimentos de modo cronológico, desde o processo da eleição de Allende, em setembro de 1970, a movimentação golpista que procura interditar sua posse, a comoção nacional com o assassinato do general constitucionalista René Schneider; os primeiros meses relativamente bem-sucedidos, com a rápida nacionalização da economia e a distribuição de terras a pequenos proprietários; os problemas do segundo ano, em parte pelos desencontros entre os partidos de esquerda, muitas vezes em relação ao processo de tomada de terras, acelerado pelo MIR e pela ala mais à esquerda do PS, comandado pelo senador Carlos Altamirano, em parte pela ação cada vez mais vigorosa de movimentos de direita, como o Patria y Libertad, financiados pela CIA, que intensificou as covert actions, minando os avanços sociais.

Paralelamente a essas dificuldades, a Unidade Popular possui uma representação minoritária nas duas casas parlamentares, onde os projetos governistas são um a um derrotados, impedindo a aplicação das propostas da UP, determinando a progressiva paralisação do país. O empresariado e a burguesia se unem em suas ações de desestabilização econômica, como em outubro de 1972, com a gigantesca greve nos transportes, promovida pelos empresários de transportes. A asfixia como fórmula do caos se prolonga, ao longo do ano de 1973, e mesmo as tentativas de Allende em atrair os militares para formarem o gabinete de governo, redundam em fracasso. Após as eleições de abril de 1973, onde o impasse legislativo permanece (as oposições esperavam vencer para apresentarem um pedido de impeachment), a Democracia Cristã, as elites, a CIA e uma parcela crescente de militares de alto posto, decidem pelo golpe militar. 

De 29 de junho, quando ocorre o Tanquetazo, um ensaio de golpe encenado por uma divisão de Santiago, até 11 de setembro, o país estará virtualmente em clima de guerra civil, e Allende apenas adia o que parece inevitável. O texto ganha contornos dramáticos, descrevendo cada movimento, tanto por parte do governo, quando por parte das oposições e dos grupos de direita. Os atentados recrudescem, as mulheres dos generais saem para o panelaço nas ruas, assim como os partidos de esquerda, em suas multitudinárias passeatas. Ocorrerá uma com 800.000 pessoas em 4 de setembro, em apoio a Allende, cujas cenas noturnas podem ser vistas no ótimo documentário A Batalha do Chile, de Patricio Gusmán. Pinochet foi empossado no Ministério da Defesa e no Comando do Exército, no lugar do general constitucionalista Carlos Prats, e bastaram 20 dias para o violento ataque ao Palácio de La Moneda e a derrubada da Unidade Popular.


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Foi uma leitura educativa, para muito além do lugar comum dos ensaios e biografias bem-comportados, pois além do caudaloso texto embasado em farta documentação, hoje em dia é possível encontrar inúmeros vídeos sobre o período nas redes sociais. Assisti a documentários produzidos ao longo do governo Allende e após o golpe por equipes estrangeiras. No primeiro caso, encontramos a apresentação de uma experiência inédita na América Latina, um governo socialista eleito nas urnas; e no segundo caso, um esforço da ditadura em apresentar o país em calma, onde se é possível circular e registrar as cenas urbanas e entrevistar naturalmente as autoridades. No livro, sobressaem os tentáculos amaldiçoados do Departamento de Estado, que atuam com habilidade e desfaçatez. Nas imagens, temos os fatos que nem sempre são corroborados pelos relatos. Assim, no vídeo Pinochet y sus tres generales, os líderes golpistas se esforçam por passar uma imagem cálida, de um cotidiano caseiro quase idílico, enquanto a edição intercala depoimentos de populares, que falam dos desaparecimentos políticos.

A leitura de Fórmula para o Caos, de Luiz Alberto Moniz Bandeira, significou para mim o ápice, e de algum modo, o complemento definitivo desse estudo que realizo ao longo dos últimos 30 anos. Esta obra, imensa, saborosamente pretensiosa, consegue alcançar seus objetivos, ainda que recheada de pequenos problemas semânticos (equívocos como por exemplo, a data do golpe na Guatemala, indicada como 1964 em vez de 1954 (p.124); ou a recorrência no texto das palavras de ordem da esquerda, como 'Crear, Crear, Poder Popular'), mas que, em absoluto, retiram o brilho da seriedade da pesquisa e da qualidade do texto, fluente e que nos transmite a densidade do clima social e político daqueles anos. Além do que a narrativa histórica se estrutura no contexto do Cone Sul, ou seja, acompanhamos também capítulos onde vemos os desdobramentos do cenário político no Uruguai de Jorge Pacheco Areco e dos Tupamaros, e na Bolívia do presidente Juan José Torres - em ambos os casos, a dolorosa escalada do fim dos direitos humanos e políticos, patrocinada pela CIA, rumo a brutais regimes de exceção.