31 janeiro 2011

O Tempo pacificador




por Mônica Rebecca Ferrari Nunes
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Chegou cedo para o encontro. Abriu seu caderno de notas e com sua letra miúda, espremida entre linhas, escrevinhou duas ou três palavras.

Tinha descoberto o Tempo. Entregou-se, a princípio, comedidamente. Absorta, aos bocados. Primeiro seu sorriso, depois seus olhos, os cabelos, a cabeça toda enterrada no tempo morno, ela, à deriva.

Os dedos das mãos em repouso sobre o Tempo já escoando pela tarde azul, airosa.

Adormecer, acordar, sorrir e olhar para os olhos úmidos, globulosos, claros, prontos a tomá-la para sempre.

O corpo em séria trincheira decisiva - tão recôndito quanto exposto. Posto ali, absoluto.


30 janeiro 2011

Recortes urbanos (2)


Praga, 2010

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Logo após o Ano Novo, me desloquei à Praga, nada de estimulante. De Dresden, pouco mais de duas horas para cobrir 192km. A exemplo de outras capitais européias, outro centro de consumo, recebendo gente de todas as partes. Não reencontrei o encanto de quinze anos atrás. O poderoso mercado desfere um golpe no coração das almas atentas e recalcitrantes, e para os corpos que sucumbem à delícia da efemeridade, o prêmio de renascerem como zumbis do consumo. Um período em que as almas se colocam mais volúveis, milhões os que se entrechocam, hipnotizados pelo bimbalhar das compras. Tudo de forma agitada, abundante, sem se aperceber da metamorfose processada. E circulam, ansiosos, devoradores...

Na mais bela ponte de Praga, o ritual messiânico a uma das estátuas, talvez a de São Venceslau... e seu cão! Os peregrinos - aparentemente do leste europeu, pelo que identifiquei nas conversas - se amontoam à espera de tocar na escultura do santo e do cachorro, e em seguida atiram umas moedas ao rio. A fila se estende ao longe, as pessoas não se incomodam com o frio cortante. E fotografam. Um momento de concódia espiritual. Mal a moedinha se aninhou no fundo do rio, como que liberados por uma permissão divina, lançam-se para as conquistas materiais. De multidão comprometida e ordenada pelos preceitos místicos, para massa que devora, turbulenta, incerta, e avançando, se subdivide pelo caminho, e se recompõe mais à diante, agora com novos integrantes, sempre envolta por desejos díspares, seduzida pela dúvida, diante da infindável variedade de produtos oferecidos.

É impressionante acompanhar pelas ruas acanhadas, os fragmentos de massa feito blocos de gelo se desprendendo da massa principal, ocupando os cafés, restaurantes, as lojinhas de produtos turísticos, as barracas de alimentação... A bela cidade, fotografada, Powder Gate, Wenzelsplatz, Starometsky, Malá Strana, o castelo Hradcany, cenas acumuladas, o tempo da história dispersado... A massa que se movimenta sem cessar, e devora, sem responder à consciência crítica dos atos, tomada pelo estímulo de possuir o que reluz, na vitrina em frente. Massa que se entrega ao fascínio construído pela necessidade de consumo, habilmente processado pela dinâmica do mercado. Esse fascínio que não se resume a contemplar, mas que se forja na abrupta sede de possuir! Assim, a massa que nada mais é do que uma horda azeitada em sua função dispersiva, evolui para o desejo massivo, e individualista, de realizar-se no consumo.

No primeiro momento, fisgados pelo desejo, no segundo momento, a satisfação pela aquisição. Há preço para tudo, há freguês para todo preço, e no final todos ganham, é a essência do ritual mercadológico. Cada um escarafunchará o negócio mais atraente, e terá a pechincha de ocasião para contar... historinhas paralelas que acabam ganhando força, quando contadas para a família e amigos, no retorno. A beleza de uma viagem, consagrada em historinhas de ocasião!...

Os zumbis ressurgem de todos os cantos - não assustadores e disformes como em Thriller, mas saudáveis e bem vestidos - pela manhã, ao final da tarde, no dia seguinte, avançam pelas ruas uma vez mais, e ainda uma vez... Sedentos, não se fartam. A sofisticação do processo atinge níveis de tamanha voracidade, que um zumbi não reconhece outro zumbi - nem a ele mesmo. A necessidade de ter, como reflexo de uma cobiça banal, como finalidade de uma ação sem fim, estimulada pelas vozes dominantes do sistema...

Em Praga, vislumbro esse corre-corre desenfreado, penso que cheguei em má hora. Há quinze anos, andava pelas ruas quase vazias, respirando história, absorto pelos traços predominantes da cultura local. Em uma das noites, não tão frias como agora, ouvi o que me pareceu um violino ao longe. Não pode ser... pensei, olhando para o vazio das ruas. Eram dez da noite, meus passos ressoavam pelos paralelepípedos, enquanto avançava às cegas, atraído pelas notas longas, melancólicas, até que, sob a penumbra de um beco, lá estava ele, o violinista solitário, tocando e deslindando seu instrumento, comovido em sua emoção, construindo com ela o seu tempo bondoso, em meio ao silêncio da noite.



27 janeiro 2011

A ganância e suas circunstâncias



O valor dos valores está ligado ao fato de que eles nos fogem, não por serem impossíveis de serem realizados, mas por não serem valores.
Arthur C.Danto

Ah, a insipiência dos que blefam... Pusilânimes sacristãos de um tempo condenado! Um tempo que engrandece os blefistas! Como entender a continuidade da história humana sob tal prisma? Sob a vilanagem de uns poucos, insaciáveis, insensíveis, que usufruindo, gargalham o mal?

O que me toca é observar seus gestos, melífluos, e não posso me conter, porque não posso tolerar. E então eu os descrevo, são frios, não direi metódicos, pois carecem de método, e alienados, para não dizer vãos, e as palavras tateiam o sentido, ainda que não o encontre! Vagueiam pelo discurso, como a cumprir seus papéis, e assim nada dizem.

Vilipendiam do alto do cume que escolheram, e dali rolarão!... Repito o sentido de Unamuno, vencem, mas não convencem, pois para convencer é necessário persuadir. Por mais que tratem de persuadir em sua infinita frivolidade, sucumbe o fascínio produzido.

Falo da miserabilidade desse poder sem virtude, dessa abrangência sem completude, que viceja como paradigma de comportamento nestes tempos macetados pelo neoliberalismo. Tempo de almas pequenas, onde tudo vale por expor seu preço, o valor vulgar, que se insinua, que penetra nos meandros descobertos, nas frestas abolorecidas, que manifesta com força, e se esvai, ao final de tudo, por não dispor de substância...

Ah, essa brutalidade oportunista, enganadora, que aparece impregnada de escárnio, pois somos todos vítimas dessa abundância que, propagando-se, fenece sem lamento! O que será dos bufões depravados, que desvelados em sua atuação grotesca, buscarão outras máscaras para vestir?

Pobres insanos, merecem o desdém, ofertado enquanto vigem em seu movimento desagregador. Merecem, pois, o infortúnio, no tempo em que se presumem incontestáveis.



25 janeiro 2011

A São Paulo do senhor Benega



No aniversário de 400 anos da cidade, Eduardo Benega, um jovem e solitário escrevente, saiu para um passeio matinal pelas ruas do centro de São Paulo. Resolveu caminhar de onde morava, na Rua São Luiz, até o Vale do Anhangabaú. Tomou em mãos o chapéu de feltro das ocasiões singulares e na companhia de Duque, um filhote vira-lata, desceu pelo elevador, atravessou o amplo saguão acarpetado e ganhou a calçada.
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Edu não se apressou em seu périplo; gostava de apreciar os fatos e se aprazia com o ritmo da montagem daquele dia de júbilo para São Paulo. Parava aqui e ali, na praça Dom José Gaspar, na ladeira da Memória, olhando para as ruas, para os edifícios, atento à paisagem sonora, sorrindo para os passantes, franzindo o cenho e piscando para Duque, como se confabulasse mentalmente com o bicho. E passaram pela Xavier de Toledo, na esquina, o prédio do Mappin... Surgiam os casais, os grupos de homens e mulheres com suas crianças, que vagavam sem pressa sob a bela manhã de sol, animados para participar da festa.
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Diante do edifício Mackenzie, o adensamento de gente tornava o caminhar mais dificultoso. O seu mundo confraternizava: vendedores de bexigas, algodão doce, crianças e idosos felizes, os passageiros que desciam dos bondes, as barracas de flores funcionando diante do Teatro Municipal, estendendo-se pelos seus jardins, na encosta do vale. Eduardo admirou-se com a paisagem da "cidade que mais crescia no mundo" longamente... Do outro lado, o charmoso terraço do Palacete Prates, a mulher idílica debruçada na mureta, apreciando o fundo do vale, os automóveis emergindo do "Buraco do Adhemar"... Entraram no meio da multidão festiva, e avançaram aos bocados pelo viaduto do Chá, rumo à Praça do Patriarca.
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Passou a discernir um rumor que tornou-se a irrupção de um drama: estudantes que se moviam, agitados, vindos da Faculdade de Direito, expressando nas faces a insatisfação do momento, tal como arautos de más notícias. Benega voltou-se para o Vale do Anhangabaú, uma lufada de ar revolveu a farta cabeleira, fechou os olhos. Ao reabri-los, viu cruzando o viaduto o que seria o indício de uma grande manifestação com Deus pela Liberdade... As faixas, o clima sombroso, "O que está acontecendo, outra manifestação?", perguntou por fim a um grupo com bandeiras que passava rumo à praça da República. Um dos rapazes, com expressão crispada diante da gravidade dos fatos, olhou enviesado para o velho cão: "Não, meu caro... desta vez vamos tirar o Brasil das mãos dos comunas!"...

Incomodado pela tensão que pairava no ar, Benega prosseguiu pela Rua Líbero Badaró. No percurso, sentiu o clima de agitação perdurar, as pessoas atarefadas, os jovens perseguidos por militares, o vai-e-vem cada vez mais grave os comentários entrecortados sobre os tomates dos estudantes atirados no governador, em pleno 1. de Maio na Praça da Sé. Foi seu desejo esticar até o Café Girondino para degustar um bom café, afinal o fôlego não era o mesmo desde que a morte de Duque o alijara dos passeios frequentes.
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Mal se deteve para apreciar a fachada do Mosteiro de São Bento, Benega notou as pessoas acorrerem para o Viaduto Santa Ifigênia: do seu vão elas se hipnotizavam com o rubor que resplandecia nos céus, ao longe, defronte à Praça das Bandeiras. Eram tempos em que ainda se comovia com as tragédias humanas, e alguém exclamou, "oh, meu Deus, é o Joelma...", de modo tão vivaz, que o silêncio subsequente da multidão aprofundou o sentimento de dor. Benega, que não possuía a mesma visão aquilina de outrora, compreendeu-se impotente diante da situação desoladora. E afastou-se, no sentido rua da XV de Novembro.

Após o almoço, seguiu pelo calçadão rumo ao Pátio do Colégio. Não lhe escapou a profusão desencontrada de estilos arquitetônicos à sua volta, prédios de diferentes épocas, testemunhos de tempos mais afortunados do café. Enquanto se aproximava da Praça da Sé, sentiu o fragor cada vez mais forte de uma manifestação gigantesca. Desvelou-a aos poucos, visualizando também personalidades da vida pública nacional que se uniam ao clamor de milhares de pessoas pelo que indicavam as faixas, Diretas-Já.
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O senhor Benega vagou incerto em meio aos discursos produzidos no seleto palanque e retirou-se, tendo dificuldades para se desvencilhar da aglomeração. Alcançou sucessivamente, com o apoio da indefectível bengala, a Praça João Mendes, o Viaduto Dona Paulina e já exausto, no final da tarde, deparou com centenas de jovens caras-pintadas e os cartazes de Fora-Collor descendo a Avenida Brigadeiro Luiz Antônio, quase em frente ao cine Paramont. Um encontro que reavivou-lhe o espírito alquebrado pelos longos anos, que fez brotar na face enrugada um sorriso de satisfação.

Com tantas impressões vívidas colhidas no correr de seu itinerário, o velho Benega desejou como nunca o banco de uma praça, antes de aventurar-se mais nos espaços labirínticos da cidade. Perdeu-se nas ausências da memória coletiva e pessoal e tal como um indigente, tombou silenciosamente no início da noite, nas proximidades da Avenida Paulista. O menor que levou sua carteira guardou a arma e se evadiu furtivamente do local, sem o dinheiro que desejava e sem o remorso purificador, perdendo-se na festiva noite do domingo em que a Paulicéia oficial comemorava seus 450 anos.
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(Texto publicado na Revista FACOM em 2004, originalmente com o título No correr do tempo, aqui parcialmente modificado)



21 janeiro 2011

Condenados


O primeiro acordou com a descarga breve e múltipla, produzida no pátio. Os demais companheiros permaneceram imóveis. Acordou, deu uma geral em meio ao lusco-fusco da cela e fixou o olhar no teto, remoendo a ideia de que ocorrera mais um fuzilamento, agora mais impactante, pois envolvia um dos colegas de cela, levado na noite anterior. Os disparos que ocorriam frequentemente em outras ocasiões pareciam circunstâncias de rotina, considerando a tensão do cotidiano prisional de um cárcere em que se fuzilam condenados. Desta feita, os tiros significaram um golpe dolorosamente ameaçador. 

Sentou-se no grabato, a luz difusa da aurora embaralhando sua visão, enquanto buscava organizar os pensamentos. Lançou um olhar lânguido para o leito inferior do beliche em frente, agora vago, pronto para receber um novo sentenciado à morte. Recordou-se de algo importante e ergueu o travesseiro, tomando nas mãos o caderno de capa dura onde realizava suas anotações e com o toco de lápis que lhe restava, recomeçou a escrever com sua letra miúda. Palavras que somadas a novas palavras, geravam frases e orações que compunham impressões inacabadas, fustigadas pela certeza de que não resultariam jamais em idéias concludentes. Folheou as páginas, agora sob o alvorecer do novo dia, detendo-se nos comentários mais lúcidos por seus efeitos acabrunhantes, “Serei o próximo a sucumbir, como uma maldita mosca no verão... Angústia que não desanima, que clama sem ser mais ouvida... Nada, a não ser os ecos de cada manhã, estampidos mortais...”, ou então preocupações sem sentido, “... essa sobremesa, a melhor coisa que me aconteceu desde que cheguei nessa espelunca...”, e que às vezes beirava o bizarro “... coloco-me sob a bondade divina, é o que me ampara... os cães já não latem nem nos meus pesadelos...)”. 

Nesse ínterim, o segundo condenado despertou do sono agitado e indagou sobre o ruído externo, Foi o que estou pensando?... É, aconteceu..., respondeu o primeiro, indiferente, contendo-se na leitura. Não conseguem impedir nunca... retomou o segundo, com a fala mais encorpada, desejoso por entabular uma conversa. O terceiro prisioneiro veio a si, lançando um olhar desavisado para os companheiros. Voltou-se então para a parte inferior do seu beliche e constatou a ausência. Por que vocês não voltam a dormir?, comentou remexendo as bochechas, Não vão trazer o cara de volta com essa conversa mole..., ao que recebeu do primeiro um Vai à merda!... assim bem seco e grosso, extravasando a tensão acumulada. Em qualquer outra ocasião teria sido uma provocação de consequências imprevisíveis, porém, naquela manhã, a iniciativa estava em falta e os ânimos, por demais retraídos. O segundo condenado resolveu intervir com um balbucio inofensivo, mais para desconversar e aquietou-se sob as cobertas. O primeiro detento deu continuidade a suas anotações no caderno de capa dura, enquanto que o terceiro remoeu-se em seu desprazer, atalhando por fim um Depois a gente se acerta... antes de virar-se para o concreto e calar-se pelo resto da manhã. 

(Pois os atos mais acerbados poderiam esperar, todos ali teriam o resto do dia para esgrimir suas futilidades e tergiversar sobre seus sonhos. E se o dia não fosse suficiente, poderiam prolongar a conversação pelo resto da semana, do mês, ou calar-se por anos a fio... Mais um pouco e a luz do sol se projetaria pela pequena abertura gradeada, definindo seus tons diversificados ao longo do dia, até seu esmaecimento, no crepúsculo da jornada. Teriam como companhia o rumor da chuva caindo, com seu cheiro sempre refrescante, ou o bramido de um vento tempestuoso; o gotejar da água em algum ponto do teto ou o chilrear de um pássaro desgarrado, na primavera, acontecimentos tão efêmeros quanto desinteressantes na vida de um quase-expurgado. No espaço áspero, a estima fenece com o andar do tempo; já o desprezo e a fantasia se acumulam em evolução crescente, acentuados com a ignomínia do isolamento. Daí que as reações promovem a exasperante ruminação de palavras e ideias inicialmente hostis, mas que cerceadas pelos muros acabam resignadas, recolhendo-se aos seus donos...).

O primeiro, o que tinha o caderno nas mãos, desistiu e o repôs sob o travesseiro. Manteve os pensamentos por mais uns minutos e quem sabe fosse seu desejo prosseguir em suas ponderações, se não sucumbisse ao único prazer solícito de um condenado, o sono.

(ao som de Superunknown, Soundgarden)



13 janeiro 2011

A dura luta




Vejo em meus papéis, na ordem, Para presidente da SIP, Lula ameaça democracia (Folha, 17 de julho de 2010), e mais adiante, SIP critica 'escalada contra liberdade de imprensa' na Argentina (O Estado SP, 24 de agosto de 2010).

No primeiro caso, o cubano miamero Alejandro Aguirre, afirma que Lula, pasmem os senhores, "não pode ser chamado de democrático". E mais adiante, o define, na companhia de Chávez, Evo, Cristina, como governantes que 'reduzem a liberdade de imprensa'. O tal Aguirre, ao longo de sua entrevista, atira para todos os lados, indicando fraqueza da democracia do Brasil, juntamente com o que ocorre na Argentina e no Equador.
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O jornalão da Barão de Limeira prossegue dando espaço para a voz boçal: "Temos governos que se beneficiaram das instituições democráticas, de eleições livres, e estão se beneficiando da fé e do poder que o povo neles depositou para destruir as instituições democráticas"(...) (grifo meu). Tais declarações foram tomadas como preâmbulo para o ataque brutal que a velha mídia se utilizaria nas eleições presidenciais no Brasil. Em outras palavras, começava a preparar o terreno para a cobertura tendenciosa que realizaria nos meses de setembro e, principalmente, outubro, buscando desequilibrar a disputa a favor do candidato sem projeto e cooptável pela elite dominante, José Serra.
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As questões decorrentes dessa entrevista desastrosa (quem é mesmo Alejandro Aguirre?) são diversas, vamos a algumas: 1) Onde está o desdobramento desse pensamento inebriante, no qual Lula significa um mal à liberdade de expressão? 2) Por que tal comentário foi assacado em momento tão propício para uma 'campanha' contra o governo Lula? 3) Por qual razão questionar o posicionamento político de governos eleitos democraticamente e que se norteiam por programas políticos de inclusão social, sem privilégios de classes sociais? Em outras palavras, por que contestar raivosamente a ruptura programática, não alinhada aos 'eternos donos do poder'?
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É o que ocorre com a manchete do Estado, em relação à Argentina. Também utilizando-se da malfadada SIP, a matéria se insurge contra a ação do governo Kirchner em romper os privilégios da empresa Papel Prensa, a principal fabricante de papel jornal do país, para com os diários La Nación e Clarín. A matéria, mais uma vez tendo como protagonista o tal Aguirre, destaca a preocupação da SIP, que "vê com muita preocupação a disputa do governo contra os meios de comunicação críticos e também o modo pelo qual a liberdade de imprensa pode sofrer com interesses políticos".
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Qualquer mortal que lê de maneira crítica Clarín ou La Nación compreende o que significa estar alinhado com 'interesses políticos'. Nesse momento, travava-se (e ainda se trava) um intenso debate público sobre o histórico do poder midiático tradicional e seus miseráveis privilégios, investidos desde os governos militares (1976-1983). A preocupação do Estadão em sua matéria não era outra senão alinhar-se aos interesses ideológicos de seus correlatos argentinos, defendendo-os da quebra dos monopólios midiáticos conduzido pelo governo de Cristina Kirchner.
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Por trás desse movimento da mídia hegemônica, subsistem os residuais interesses da famigerada política neoliberal. Como bem descreve Sandra Russo, jornalista e escritora argentina (Página 12, 17 de agosto de 2010),"Te dou um guarda-sol amarelo e ponho bancos de designers nas praças do norte (zona rica de Buenos Aires), mas fico com os recursos dos hospitais e não executo o orçamento da educação"... E na continuação de seu argumento, "E quanto ao emprego, se pudessem, cortariam sistematicamente as cabeças, de novo, a cada conquista e dariam baixa nos subsídios trabalhistas"...
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Russo conclui, "O modelo que (os neoliberais) têm em mente não tem qualquer resposta para o mundo do trabalho, já que é em si mesmo a resposta do mundo do capital para o Estado do bem-estar". De algum modo Bauman nos antecipou essa análise, quando diz que o Estado social é substituido pelos interesses do mercado. A voz mansa do oligopólio midiático se coloca em sintonia com os ensejos de uma alquebrada elite, insensível às demandas populares. Juntos, não toleram a presença do contradito dos novos atores sociais, cada vez mais conectadas nas mídias eletrônicas.
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O poder midiático custa a entender como se constrói a diversidade social, que se pauta não pelo privilégio vertical, classista, impositivo, mas pela expansão horizontal, democrática, dos interesses. Enquanto isso não for entendido em sua formulação tão natural, os cidadãos de bem continuarão pagando o preço da dura luta por uma sociedade mais justa, e longe das garras da SIP.



08 janeiro 2011

Agonias de um passado (4)



(...) Reformas. A luta continua. O que poderíamos denominar como Governo insiste em empurrá-la goela abaixo da população, sem sequer propor uma discussão. O que poderíamos denominar de Oposição – cerca de um quinto da bancada do Congresso e mais algumas entidades não-governamentais por este Brasil – tenta obstaculizar heroicamente o que parece ser o rumo irreversível dos acontecimentos. A mídia joga o seu peso descarado no que acredita ser "as mudanças saudáveis e necessárias" e uma nuvem cinzenta de deputados conservadores atuam numa política pendular no meio dessa barafunda sem fim, ora apoiando o governo, ora rejeitando as mudanças, principalmente quando estas vêm no sentido de acabar com o fisiologismo. 

Ninguém se entende, o governo vai e vem e nada engrena. A Previdência e os monopólios estatais (Petrobrás e telecomunicações) são o alvo preferido nesta tal de reforma constitucional. FHC acabou de retornar de uma viagem à terra de tio Sam onde certamente foi pedir a benção e receber um pito por não desenvolver como deveria a política estabelecida pelo Consenso de Washington. "Que merda de servilismo inoperante é esse?", devem ter guinchado os líderes da Metrópole!

Enfim, o certo é que a marcha irreversível dos acontecimentos deve ganhar fôlego novo e impor as mudanças, passando por cima da oposição desgastada e desfigurada. Com que armas poder-se-ia resistir à fome capitalista, à urgência de reestruturação da nova ordem mundial? (...)

(in Diários, sábado, 22 de abril de 1995)



Agonias de um passado (3)



(...) A sofreguidão das últimas semanas termina em uma ressaca insossa e aparentemente nada didática. À submissão do México (iniciada em dezembro) sobrevém a debacle argentina, gradual, porém ruidosa. Desde a minha visita, em fevereiro de 93, ficou muito claro que os indicadores sociais eram – para dizer um termo suave – tenebrosos. Preços altos, estáveis sim, porém em patamares elevados; uma enxurrada de eletrodomésticos importados nas vitrinas; a pobreza tomando conta das ruas, poucos indícios de que o plano de estabilização visava um equilíbrio social. Menem escancarou a Argentina ao capital estrangeiro, sem que se pudesse verificar alguma vantagem ao país. Fui obrigado a solicitar auxílio da telefonista para uma ligação internacional de péssima qualidade; A YPF foi rendida ao setor privado; o transporte público prosseguiu seu doloroso sucateamento, o custo dos produtos e dos serviços nas alturas!(...) Mas o que me convenceu do blefe neoliberal foi a insatisfação popular. Bastava cutucar as pessoas para que elas saíssem de uma certa apoplexia mental e enveredassem para uma argumentação hostil à política em andamento.

Chocou-me a brutalidade da ação de desmantelamento: foi como se a população fosse colocada parcialmente a par das decisões políticas, por sua vez tomadas em uma esfera absolutamente inacessível, por gente mais sintonizada com os interesses externos. E foi como se, simultaneamente à cadeia de decisões "em prol do melhor para a nação", essa gente mandasse a soberania do país à pqp... Na realidade, essa gente quebrou os mecanismos de atuação e participação do povo, solapando a organização sindical do país, enquanto a mídia fazia sua parte nessa empreitada neoliberal. Senti-me de certo modo agoniado em vivenciar uma realidade tão amordaçada, tão desesperançada e entregue nas mãos de tão poucos canalhas sem faces, subservientes...
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Pois de fevereiro de 93 a março de 95 a Argentina vem soçobrando, sem perspectivas de uma vida justa e participativa. Nessa esteira de fatalidades econômicas, o Brasil pinta ao horizonte. Não é possível que as forças neoliberais ainda encontrem eco em meio às ruínas que semeiam em nossa miserável América Latina! (...)

(in Diários, sexta-feira, 24 de março de 1995)




07 janeiro 2011

Pelo que vale a vida (2)


Há cerca de vinte anos Miguel de Unamuno me acompanha. O que ocorre é que tenho sido por demais ingrato, ou digamos melhor, desatento aos seus ensinamentos. Certa vez em Buenos Aires, em uma tarde abafada, como sói ocorrer nos verões portenhos, entrei em uma livraria e estendi a mão para o livrinho de capa vermelha, atraído pela força do título, Del sentimiento trágico de la vida. Eram meus anos existencialistas, e tais palavras me sinalizavam para a paixão inútil da existência humana.

Aos poucos descobri que a presença da fé, em constante luta com a razão, condenava o meu desejo em avançar na filosofia unamuniana. Não eram tempos de paciência, tampouco de concordância. Em outras palavras, nada que arranhasse a interpretação sartriana da vida merecia minha contemplação.

Com isso, posterguei indefinidamente a compreensão do olhar sensível de Unamuno. Nem o sentimento faz do consolo, verdade; nem a razão faz da verdade, consolo. Se por um lado a razão é o impeditivo para o desejo vital da imortalidade, a fé nos dá a aceitação da imortalidade, mas graças à nossa condição humana, em meio à permanente dúvida e incerteza.

E diz Unamuno, A fome de Deus, a sede de eternidade, de sobreviver, nos afogará sempre esse pobre gozo da vida, que passa e não fica. A pura agonia, que nos projeta para o futuro, sem definir ao certo o que virá. Mas não é suficiente ao humano satisfazer-se com sua finitude, ou, de outro modo, essa consciência não lhe trará sossego. Há uma verdade (a esperança?) que se coloca para além de nossos propósitos... Oh, quem pudera prolongar este doce momento e dormir nele e nele eternizar-se!...

E o que se pode indagar acerca da razão da imortalidade? (...) Para que queres ser imortal? Não entendo a pergunta, porque é perguntar a razão da razão, o fim do fim, o princípio do princípio... Ou dito de outra maneira, A fé na imortalidade é irracional. E, no entanto, fé, vida e razão se necessitam mutuamente (...) Razão e fé são dois inimigos que não podem sustentar-se um sem o outro...

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Miguel de Unamuno era o reitor da universidade de Salamanca, quando da cerimônia do Día de la Raza. Na ocasião, o general Millán Astray, um dos líderes do alzamiento, fez uma alocução em que proferiu o clássico grito de guerra falangista, Viva la muerte!
A resposta de Unamuno não tardou, eloquente:

Acabo de ouvir o grito necrófilo e sem sentido de Viva la muerte! Isso me soa o mesmo que Morra a vida! (...) O general Millán Astray é um inválido. Não é preciso dizê-lo em um tom mais baixo. É um inválido de guerra. Também o foi Cervantes. Porém, os extremos não servem como norma. Desgraçadamente, há hoje em dia demasiados inválidos... E logo haverá mais se Deus não remediar. Me dói pensar que o general Millán Astray possa ditar as normas da psicologia de massas. Um inválido que careça da grandeza espiritual de Cervantes, que era um homem - não um super homem - viril e completo, apesar de suas mutilações; um inválido, como disse, que careça dessa superioridade de espírito, costuma sentir-se aliviado vendo como aumenta o número de mutilados ao seu redor.

Houve um tumulto no plenário. Há que se recordar que esse pronunciamento se deu em um recinto coalhado de altas patentes franquistas. Segundo a descrição do historiador Rafael Abella, da qual me utilizo, Unamuno aguentou a tormenta e sua voz retomou a firmeza, prosseguindo em seu discurso,

Este é o templo da inteligência. E eu sou seu sumo sacerdote. Vós estais profanando este sagrado recinto. Eu sempre fui, diga o que diga o provérbio, um profeta em meu próprio país. Vencereis, mas não convencereis. Vencereis porque tereis força bruta de sobra, mas não convencereis porque convencer significa persuadir. E para persuadir, necessitais algo que vos falta, razão e direito na luta. Me parece inútil pedir-vos que penseis na Espanha. Tenho dito.

Miguel de Unamuno não sobreviveria à guerra civil espanhola, falecendo poucos meses mais tarde, na mesma Salamanca.


01 janeiro 2011

Pelo que vale a vida (1)


Caim - És feliz?
Lúcifer - Somos poderosos!
Caim - És feliz?
Lúcifer - Não, e tu?
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(Caim, Lord Byron)


- ... e isso pode ser o tangível, mas não é o que conta, entendes?...
- Como se fosse um... transgredir?...
- Pensa desta forma, o teu objeto de desejo, este carro, aquela mulher, tal poder, alguma grandeza... tudo o que desejares, nesse estágio em que te encontras, tens de possuir...
- E para possuir...
- ... não tens de pensar em como possuir... esse não é o objetivo final, ou se preferires, o objeto a ser alcançado... Possuir é a primeira compensação do teu movimento...
- Passar pelas coisas como se elas...
- ... Nada significassem!... Entendes, não é mesmo...?
- Busco o efêmero?...
- Buscas o teu brilho refulgente, que intriga enquanto dura e não pode ser reproduzido... Buscas o agora que rebenta em novos agoras e se renova em um movimento cíclico... um processo que te conduzirás, vê bem o que te falo, às ações pelas quais desejas manipular... que te atiçam e que te empurram para outras ações, que te proporcionam conquistas... Busques os prazeres que te estimulam, não os que te satisfazem!...
- E o sentimento...
- Abandona tua compaixão... vês o casal que se encontra para o café? De nada te serve, para nada te inspira... Representa a bolha de um prazer condenado!... Como não conta a recordação, a poesia do olhar, como não faz diferença Marx ou Che... Tua transfiguração está para além do teu horizonte... esqueças o ético ou o aético, que hoje nada são que palavras jogadas ao vento... Lembra-te, não és mais nem melhor, és o que te proporcionas o momento infinito, que já se alimenta do próximo... é o que basta, ao tempo que não basta...
- E o conhecimento?...
- Utiliza-o!... Forja-o, se necessário!... Apropria-te do que lhe convém!... Saberás sempre como, e tua assistência te reconhecerá como aquele que sabe!... Qual fim mais emblemático senão a realização do instante... em plena sucessão... livres, desconectados, à sua mercê... Conquista e abandona!... Tens a lâmina, fere como quiseres...
- O mais solícito improviso...
- ... e te dispõe para o argumento seguinte...
- E quanto à moral?...
- Aprende bem, como deve ser, sem remendos ou escrúpulos!... Ali tens, vê aquela paisagem, significa algo em si? Pois te confirmo, nada! não significa nada, sem os teus artifícios, sem a tua marca! O belo em um pôr do sol, sublime em si, um vago desperdício! O quadro todo, vejamos: o mar ao fundo, a resplandecência de seu brilho nas águas, as árvores se interpondo, a brisa fresca afagando os galhos imprecisos, adensados por belas folhas e flores, a ramagem dengosa, o claro-escuro pronunciando-se nas sutis concavidades... as rochas em contínuos fragmentos, menos azuladas, a rebentação borbulhante... matizes de verde, de azul, de harmonia... Nada mais lindo e incompleto em si... nada significa sem teus propósitos, sem agregares a tua ambição... Podes usufruir? Por quanto tempo? Ah, mansamente estendido sob a sombra, te servem em teus caprichos, te alimentas, resfolegas, despertas e aprecias... Entendeste por fim... Nenhuma beleza se constitui sem que possas assentá-la à tua necessidade...
- Qual olhar?...
- Menos o contemplativo per si... teu sorriso insinua que compreendes bem... (um sorriso metálico, que eclode na justa medida em que fenece) Há que alimentá-lo, sempre, com novas aspirações... teus objetos de desejo... o carro com que sonhas, ali, bem posto ao abrigo, a casa mais adornada, aqui, valorizada pela paisagem... a mulher... bem isso não interessa... vê o quanto tua alma sedenta pode converter!... vê o que pode te preencher, sem jamais te completar!...
- O tempo...
- Faze do tempo o teu tempo!... Quando conseguires, os outros hão de te ouvir...
- E o outro...
- Compõe com quem te é confiável, pelo tempo que te for útil...
- Me repreenderão...
- Que os parvos falem, mas só estes, porque não ousarão te afrontar... Desfaça as resistências à tua passagem, sem te deteres nos emaranhados da justificação... Prepara-te para o subterfúgio... tua argúcia, mais do que a razão, é o teu móvel, e aprenderás com ela...
- E o que me define...
- Nada, senão a ambição do presente! O brilho refulgente, lembra-te... Hás de ser hábil e astuto... E assim é: nenhuma palavra torna-se tão sábia que permaneça, nem consistente, que impeça a tua versão...
- A versão me define...
- A versão te empurra para o próximo passo... Pascal, Benjamin, Lorca, Piazzolla... transforma-os em teus caminhos, não em teus obstáculos, iluminando-os à tua maneira...
- Sem detalhes...
- Para que os detalhes?... condensações te imobilizam... não te detenhas em princípios de análise, mas nas artimanhas do discurso mais propício...
- Elas me conduzirão!...
- E o mais importante, saberás como manejá-las no impacto e na intensidade, sempre em teu interesse... Controla e te renova, capiscas?
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(gargalhadas estrepitosas, metálicas...)
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