31 maio 2012

Callao, Bourdieu


Confiteria Molino, Callao


Retomei o trajeto que se tornou tão familiar, nestes anos. Saio da avenida Yrigoyen, atravesso a praça do Congresso, aprecio os renovados conjuntos de personagens, os cães ao lado dos donos, os mendigos em seus cantos, crianças brincando no gramado, as nuances de luz solar, tão intensa e fresca no outono, então alcanço a esquina com a Callao e vislumbro o majestático, tenebroso, edifício da antiga Cafeteria El Molino, abandonada aos pombos e seus inquilinos anônimos. Não tenho como não reter meu olhar aos desvãos escuros, à portentosa torre em forma de moinho, atravesso a avenida de Mayo submerso em sua grandiosidade gris, e percorro a avenida que me faz sentir à vontade em Buenos Aires, com suas livrarias, cafés, quiosques de flores, bistrôs musicais, lojas de roupas, de música, bancas de jornais, um comércio vívido, callejero, perscrutado por miles de personas que a percorrem decididas, em busca de seus destinos, nos pontos de ônibus, nos edifícios, na Corrientes ou na Santa Fé, artérias pulsantes da cidade. 

Detenho meu olhar menos acelerado nos homens com suas pastas de couro, bem vestidos, nas belas mulheres, nos jovens estudantes, nos velhos parados diante de uma vidriera, a analisar um produto, sem pressa de se decidir... Caminho, olho para dentro dos estabelecimentos, reencontro as charlas, os olhares solitários, os jornais abertos, aqui e ali um gesto imobilizado carregado de elegância, sorvendo un cortado con medialunas, o interior das bancas, os donos ouvindo o rádio com o mate servido, um cliente conhecido que se aconchega para falar de futebol ou política... uma dinâmica que me envolve enquanto sigo para meu compromisso, mais além, no Barrio Norte, tenho de sair da querida Callao, subo a Corrientes até a Ayacucho, estreita e longilínea, como é comum nas ruas portenhas, e sigo em frente, passo pelos inúmeros comércios, alcanço a Córdoba, vou até a Junín, dobro à direita, mais umas quadras, alcanço a Marcelo T. Alvear e chego ao meu destino. 

A entrada da Faculdade de Ciências Sociais está tomada por cartazes, as chamadas de ordem, convocações para jornadas acadêmicas, pequenas bancas com panfletos, rodeadas por alunos prontos para divulgar as mobilizações políticas. Como fundo, a movimentação incessante, alunos, professores, servidores, legitimando a função social do espaço público, transformando o movimento em permanente prontidão cívica. Um cheiro saboroso de tostada de queso invade as narinas, as aulas da noite estão por começar. Sigo para o primeiro andar, sala Rodolfo Walsh, ocupo um lugar nos bancos coletivos e aguardo mais um capítulo do seminário Pierre Bourdieu.




23 maio 2012

Mario Benedetti



Desaparecidos

Están en algún sitio/concertados
desconcertados/sordos
buscándose/buscándonos
bloqueados por los signos y las dudas
contemplando las verjas de las plazas
los timbres de las puertas/las viejas azoteas
ordenando sus sueños sus olvidos
quizá convalecientes de su muerte privada

nadie les ha explicado con certeza
si ya se fueron o si no
si son pancartas o temblores
sobrevivientes o responsos
ven pasar árboles y pájaros
e ignoran a qué sombra pertenecen

cuando empezaron a desaparecer
hace tres cinco siete ceremonias
a desaparecer como sin sangre
como sin rostro y sin motivo
vieron por la ventana de su ausencia
lo que quedaba atrás/ese andamiaje
de abrazos cielo y humo

cuando empezaron a desaparecer
como el oasis en los espejismos
a desaparecer sin últimas palabras
tenían em sus manos los trocitos
de cosas que querían

están en algún sitio/nube o tumba
están en algún sitio/estoy seguro
allá en el sur del alma
es posible que hayan extraviado la brújula
y hoy vaguen preguntando preguntando
dónde carajo queda el buen amor
porque vienen del odio


(Mario Benedetti)



03 maio 2012

Os delicados segredos da alma



Por
Mônica Rebecca F. Nunes
Marco Antonio Bin

Ele a aguardava no banco solitário, uma armação rústica de ramas de cedro, onde a relva se confundia com as pérgulas amparadas pelas sebes naturais, de onde se esparramavam cordões de folhas verdes, incrustadas por alamandas amarelas e uma espécie de bougainvilleas avermelhadas, espargidas pelo orvalho da manhã ainda fria e nebulosa. 

Ao longo do caminho, o silêncio do vale permitia com que sua espera fosse suave e generosa, sintonizado com o ambiente que o acolhia. Do outro lado, serpenteava mansamente o riacho de águas esverdeadas que escorria das montanhas a oeste e de algum modo definia o percurso pedregoso, que avançava em direção à cidade. 

Atravessou a vereda, escolheu uma pedra e a lançou ao meio das águas, ouvindo o estrugir do choque concorrer por um instante com o canto dos pássaros. O sol enevoado custaria um pouco mais a esquentar, o caminho permanecia virgem, apenas ressoando seus curtos passos. Sentou-se no gramado à margem d´água e ali permaneceu por uns bons minutos, acariciando as belas lembranças, que se confundiam com a ternura dos últimos encontros. 

O ritmo da grande cidade conduzira por longos anos suas falas e seus olhares, e por alguma razão que ele não se recordava ao certo, decidiram caminhar juntos, a partir daquele ponto que mal conheciam, em comunhão com a natureza e dos silêncios que eventualmente produzissem, intercalados pelas palavras generosas de sempre, pelos toques ariscos, pela alegria de estarem disponíveis para seus sonhos.

Foi quando ouviu um som que destoava, produzido no atrito com o cascalho, de modo alternado. Olhou para a estradinha e logo após a última curva, a uns cem metros, despontou a silhueta querida, um ponto que se destacava aos bocados, coberto pelo sobretudo vermelho. 

Logo foi possível distinguir o que mais apreciava nela, o sorriso exultante de uma pequena conquista, emaranhado pelos cabelos castanhos agitados pelo vento. Mais um pouco, e poderia se deleitar com o brilho vítreo dos dois topázios, que lhe revelariam os delicados segredos da alma. 

Ele se levantou para recebê-la, para o abraço demorado, que os aqueceu ternamente. Então ela começou a lhe falar sobre um belo tema, aleatório, que coincidia com a sutileza do momento, com o caminhar sem pressa, até o pequeno rancho que os esperava.

O caminho era longo, durava mais a cada passo que davam. Talvez quisessem isso mesmo: prorrogar o tempo de espera. De algum modo, havia na espera um acolhimento. Os anos que caminhavam em busca do pequeno rancho já se acumulavam. A estrada já havia mudado de cor, os lagos já se tornaram mares, os mares altos ficaram baixos dando vazão à praia imensa e sombria.  O sol esquentou. Continuavam. Juntos, sorridentes, felizes por estarem um na presença do outro. 

Os olhares diziam o que não ousavam dizer porque temiam o desencanto. Ela e ele. Haviam construído a paisagem, os sons do riacho e o sobretudo vermelho. Inventaram um e inventaram o outro, e, agora, tão perto do rancho, arquitetavam modos de não chegar e assim permanecerem juntos, nesta estranha dança sem rumo.