14 abril 2012

Modos de resistir (3)



"(...) Tenho de confessar: bastou uma semana de cativeiro para sumir o meu hábito de limpeza. Vou zanzando pelos lavatórios, e lá até o companheiro Steinlauf, meu amigo quase cinquentão, de peito nu, esfregando-se ombros e pescoço com escassos resultados (nem tem sabão), mas com extrema energia. Steinlauf me vê, me saúda, e sem rodeios, me pergunta, severamente, por que não me lavo. E por que deveria me lavar? Me sentiria melhor do que estou me sentindo? Alguém gostaria mais de mim? Viveria um dia, uma hora a mais? Pelo contrário, viveria menos, porque lavar-se dá trabalho, é um desperdício de energia e de calor. (...) 

Steinlauf, porém, passa-me uma descompostura. Terminou de se lavar, está se secando com o casaco de lona que antes segurava, enrolado, entre os joelhos e que logo vestirá, e, sem interromper a operação, me dá uma preleção em regra. 

Já esqueci, e o lamento, suas palavras diretas e claras. (...) Seu sentido, porém, que não esqueci nunca mais, era esse: justamente porque o Campo é uma grande engrenagem para nos transformar em animais, não devemos nos transformar em animais; até num lugar como este, pode-se sobreviver, para relatar a verdade, para dar nosso depoimento; e, para viver, é essencial esforçar-nos por salvar ao menos a estrutura, a forma da civilização. Sim, somos escravos, despojados de qualquer direito, expostos a qualquer injúria, destinados a uma morte quase certa, mas ainda nos resta uma opção. Devemos nos esforçar por defendê-la a todo custo, justamente porque é a última: a opção de recusar nosso consentimento. Portanto, devemos nos lavar, sim; ainda que sem sabão, com essa água suja e usando o casaco como toalha. Devemos engraxar os sapatos, não porque assim reza o regulamento, e sim por dignidade e alinho. Devemos marchar eretos, sem arrastar os pés, não em homenagem à disciplina prussiana, e sim para continuarmos vivos, para não começarmos a morrer. (...)"

(extraído do livro É isto um homem?de Primo Levi, Ed. Rocco, 1988).



10 abril 2012

Modos de resistir (2)


Logo após a renúncia de Jânio, na sexta-feira, 25 de agosto de 1961, os militares mobilizam-se para impedir a posse do vice, João Goulart, que se encontrava em viagem diplomática na China. Leonel Brizola, então governador do Rio Grande do Sul, organiza a resistência ao golpe, exigindo nada mais que o cumprimento da Constituição. O impasse durará treze dias, mas é certo que nos três primeiros, enquanto os dois lados vão consolidando apoios e estratégias, a expectativa é de um confronto militar. 
Na manhã da segunda-feira, 28 de agosto, com os transmissores requisitados da rádio Guaíba, Brizola transmite diretamente dos porões do Palácio Piratini, pela Rádio da Legalidade. Por volta das 11h30, estava marcada a audiência solicitada pelo comandante do III exército, Machado Lopes, e não se sabia com que intenções viria. 

"(...) Pode ser que esse encontro não signifique uma simples visita de amigo, que não seja uma aliança entre o poder militar e o poder civil: pode significar uma comunicação da deposição do governo do Estado. (...) Se ocorrer a eventualidade de um ultimato, ocorrerão também consequências muito sérias, porque não nos submetemos a nenhum golpe, a nenhuma resolução arbitrária. Que nos esmaguem! Que nos destruam! Que nos chacinem neste Palácio! Chacinado estará o Brasil com a imposição de uma ditadura! Esta rádio será silenciada; porém, não será silenciada sem balas. Tanto aqui como nos transmissores, estamos guardados por fortes contingentes da Brigada Militar. (...) Não nos encontramos entre uma submissão à União Soviética ou aos Estados Unidos. Tenho uma posição inequívoca sobre isto. Mas tenho aquilo que falta a muitos anticomunistas exaltados deste país, que é a coragem de dizer que os Estados Unidos da América, protegendo seus monopólios e trustes, vão espoliando e explorando esta nação sofrida e miserabilizada. Penso com independência. Não penso ao lado dos russos ou dos americanos. Penso pelo Brasil e pela República. Um Brasil forte e independente. Não um Brasil escravo dos militaristas e dos trustes e monopólios norte-americanos. Nada temos com os russos. Mas nada temos também com os americanos, que espoliam e mantêm nossa pátria na pobreza, no analfabetismo e na miséria. (...) Povo de Porto Alegre, meus amigos do Rio Grande do Sul. Não desejo sacrificar ninguém, mas venham para a frente deste Palácio, em demonstração de protesto contra essa loucura e esse desatino. Venham, e se eles quiserem cometer essa chacina, retirem-se. Mas eu não me retirarei e aqui ficarei até o fim. Poderei ser esmagado. Poderei ser destruído. Eu, a minha esposa e muitos amigos civis e militares do Rio Grande do Sul. Não importa! Ficará o nosso protesto, lavando a honra desta nação. Aqui resistiremos até o fim. A morte é melhor do que a vida sem honra, sem dignidade e sem glória."

(Trechos do pronunciamento de Brizola, extraídos do livro 1961: O Golpe Derrotado, de Flavio Tavares, Ed. LP&M, 2012)



06 abril 2012

Modos de resistir (1)


(...) Os protestos (de Wall Street) realmente criaram um vazio - um vazio no campo da ideologia hegemônica - e será necessário algum tempo para preenchê-lo de maneira apropriada posto que se trata de um vazio que carrega consigo um embrião, uma abertura para o verdadeiro Novo. A razão de os manifestantes saírem às ruas é que estão fartos de um mundo onde reciclar latinhas de Coca-Cola, dar alguns dólares para a caridade ou comprar cappuccino da Starbucks com 1% da renda revertida para os problemas do Terceiro Mundo é o suficiente para se sentir bem. Após a terceirização do trabalho e da tortura, após as agências matrimoniais começarem a terceirizar até nossos encontros, os manifestantes perceberam que por um longo tempo permitiram que seus compromissos políticos também fossem terceirizados - e querem-nos de volta. (...)

(Slavoj Zizek in OCCUPY - Movimentos de protesto que tomaram as ruas, Boitempo Editorial, 2012)


05 abril 2012

Linhas Periféricas



Nunca é demais sentir o pulsar das periferias.
Sobretudo quando se manifesta poeticamente, rompendo com normas e preconceitos. 



04 abril 2012

Baudelaire




Assim, o princípio da poesia é, estrita e simplesmente, a aspiração humana a uma beleza superior, e a manifestação desse princípio reside num entusiasmo, numa excitação da alma - entusiasmo absolutamente independente da paixão, que é a embriaguez do coração, e da verdade, que é o alimento da razão. Porque a paixão é natural, demasiado natural para não introduzir um tom ofensivo, discordante, no domínio da beleza pura, demasiado familiar e por demais violenta para não escandalizar os puros Desejos, as graciosas Melancolias e os nobres Desesperos que habitam as regiões sobrenaturais da poesia. (...)

(extraído do livro A Invenção da Modernidade, Relógios D´Água, Lisboa)