15 março 2021

Entre a ruína e a redenção

Resistir com urgência!


"Hemos quemado el miedo, hemos mirado frente a frente al dolor, antes de merecer esta esperanza"

Juan Gelman


Por mais que possamos descrever o momento trágico em que vivemos no Brasil, e demonstrá-lo como um desdobramento direto da absoluta ausência da percepção sensível no capitão presidente, não chegaríamos a um quadro abrangente da angústia em que vivemos. A tragédia se anuncia muito mais cruel do que possamos esboçar com palavras. E seja a descrição que se puder esboçar, ela virá acompanhada de um forte sentimento de tristeza, de lamento, de profunda impotência. Esse indivíduo, seus filhos e o governo que montaram carrega essa qualidade, a de imobilizar pelo desalento. A canalhice funciona como um instrumento para impor a imobilidade, e por certo ela não é qualidade apenas desse executivo, mas também da parcela da sociedade que se presta a lamber-lhe as botas. 

Antes de impingir-lhe o dom da incompetência, é mais sensato dizer que o capitão desgoverna por não dispor de qualquer noção de estratégia inata ao estadista. Por certo segue as orientações de certos gurus, que não lhe acrescentam consistência política. Em outras palavras, trata-se de um preboste sem a menor carne de mito, e que se deixa levar pelos impulsos tempestivos de cada dia. Não tem a  visão de gerenciamento de como recuperar a economia, por onde começar a combater a pandemia, e desse modo, proporcionar alguma dignidade ao povo brasileiro.

A morte espreita agora os mais jovens, a contaminação acelera com o surgimento de novas cepas do Covid-19. Enquanto isso o descartável ministro da saúde está em um deixa-não deixa o desgoverno, o que não faz diferença. A ruína é tamanha que simplesmente ninguém por lá sabe como e por onde começar a fazer alguma coisa certa. E muito menos a encetar uma ação de enfrentamento da crise. Podiam ao menos ouvir Lula mais seriamente, que no meio da semana pontuou, como estadista que é, aspectos básicos de recuperação da economia, de combate à pandemia, os dramas mais urgentes de nossa vida cívica. Essa fala sim, deixou um sinal claro e objetivo da importância de um verdadeiro projeto político.

Quem o ouviu recuperou um pouco do amor próprio, da esperança por dias melhores, do horizonte a se trilhar e constatou a absoluta certeza de que existem formas distintas de se pensar uma nação.



12 março 2021

Os fins e os meios

Lula strikes again!

"E que, por coragem de prova, estava disposto a se apresentar, desarmado, ali perante, dar a fé de vir, pessoalmente, para declarar sua forte falta de culpa, caso tivessem lealdade."

Guimarães Rosa


Bastou a decisão isolada de um ministro do Supremo Tribunal Federal, Edson Fachin, anular as condenações de Lula, e no dia seguinte, um forte e inspirado discurso do próprio Lula, para o quadro política sair do marasmo controlado pelos desmandos do capitão e contagiar em emoção toda a sociedade. São esses estranhos casos brasileiros em que as revoluções ou os meros aquecimentos de alguma coisa mais séria prescindem da presença popular, definindo-se em salas ou corredores do poder. 

Em 1954 o caldo político entornou não nas ruas, mas nos gabinetes militares, o que imobilizou o executivo, criou a República do Galeão e condenou Vargas ao suicídio, solitário no Catete. Dez anos depois foi o gesto tresloucado de um general em Juiz de Fora que desencadeou o que por um tempo se denominou 'revolução redentora', e que hoje conhecemos como golpe cívico-militar de 1964. A resistência heroica se contava na pena dos intelectuais e na brava luta dos estudantes, que mesmo quando guerrilheiros não alcançaram o apoio popular.

Cinquenta anos mais tarde Dilma e o governo de base social do PT cairia praticamente sem qualquer oposição nas ruas, a contrapartida esperada das mobilizações de sindicatos e agremiações, o que abriu caminho para o exercício de tiro ao pato manco proporcionado pelo crescente desvario do lawfare de Moro e seus procuradores de Curitiba, com as bênçãos da mídia corporativa, neopentecostais e outros setores conservadores.  

Agora, duas manifestações de caráter distinto e isolado, produziram a efervescência política que deve perdurar até outubro de 2022. A esquerda adormecida, os obstáculos da pandemia, o silêncio subserviente das instâncias jurídicas possibilitaram que os gestos escabrosos da desgovernança federal prevalecessem de maneira dolorosa. A revolta parecia conter-se no silêncio indignado e de uma certa esperança mítica que não se vislumbrava no horizonte. Não havia cavaleiros intrépidos com bandeiras pela revolução, nem políticos audazes organizando do parlamento movimentos de resistência. 

O que aconteceu foi um juiz tomar uma decisão que tardou pelo menos três anos e um político mais do que carismático assumir o proscênio de um sindicato, ambos iluminados por convenientes luzes vindas dos mais diversos setores sociais. A mídia corporativa regurgitou, aquele movimento do bebê que depois de saciar a fome, dá um soluço esperado. Esse soluço me parece sugestivo, a chance animar as plateias com novas variantes de estratégia conservadora. 

Lula, sem a condenação nas costas surge, como uma liderança para enfrentar a hegemonia do obscurantismo político. Os primeiros posicionamentos do maior conglomerado midiático desse país foram surpreendentemente simpáticos ao reaparecimento de Lula. Destacaram sua fala de estadista, seu esforço conciliatório, o desejo de elaborar um plano de ataque à pandemia e à recuperação econômica. É impressionante como o comportamento camaleônico pode ser demoníaco - como foi quando apoiaram veladamente o capitão desnaturado nas eleições de 2018 - e estranhamente generoso - como agora nessa cruzada contra o capitão desnaturado. 

Acrescente-se ao desespero brasileiro as mais de duas mil mortes diárias pela Covid-19, ultrapassando os 270 mil mortos, com mais de 11.200.000 casos. Os hospitais, públicos e privados, seguem superlotados, os lockdowns se multiplicam e a indignação bate à porta de todos. É nesse quadro grave da vida cívica brasileira que se insere a expectativa da decisão de um juiz e a fala de um político. Não foi preciso um tiro, uma manifestação com quebra-quebra, para que um ânimo inusitado despontasse no seio da sociedade. Como ontem, em meio às compras no supermercado deparo com um jovem empregado empurrando um carrinho de frutas e falando ao celular, voz atenta, "O Lula ainda está falando?" E logo abriu um sorriso e completou, "que bom, que bom...". Esta cena simples me permitiu algumas saudáveis considerações com meus botões.

Talvez a relação do governo do capitão desventurado com o conto de Guimarães Rosa, Os irmãos Dagobé, seja muito oportuna. São "gente que não prestava", mas a morte do Damastor possivelmente faça com que os demais irmãos "sorriam apressurados", esqueçam a vingança e partam para outra vida, por outras paragens. É a chance de uma esperança que, longe de ser revolucionária, apenas oferece a possibilidade de Liojorge colocar as coisas nos devidos lugares.  

(atualizado, 12.03.2021)



06 março 2021

Roman Polanski

Polanski em entrevista a Joaquín Serrano, 1980

Quando me solicitaram um projeto de pesquisa para candidatar-me no programa de pós-graduação da PUC de São Paulo, minha opção imediata foi o cinema de Roman Polanski. Meu desejo era discutir os aspectos existenciais em sua obra, mais especificamente, seus três primeiros longas-metragens, Faca na água, ainda na Polônia, Repulsa ao sexo e Armadilha do destino. Os três possuíam uma espécie de ligação temática que me agradava, algo que designei no projeto como "personagens instáveis, ora agressivos, ora amáveis, ou ambas as coisas ao mesmo tempo, mergulhados em um clima lúgubre, em uma passividade estéril, a bordejar o que Karl Jaspers definiria como situações-limites".

Foi um passo além das minhas pernas: conhecia apenas dois ou três filmes de Polanski, mas todos haviam me impressionado pelo desenvolvimento e pelos desfechos dramáticos. Tinha sido assim com O Inquilino, mas principalmente em um filme que havia assistido casualmente, Macbeth. Como estava muito vinculado às leituras existencialistas na época, resolvi tomar como método a fenomenologia e o problema da escolha e da liberdade, do indivíduo. Como aponto no projeto, "Em Repulsa ao sexo, a escolha de Carol (Catherine Deneuve) a faz mergulhar gradativamente em uma espécie de esquizofrenia claustrofóbica". Mais adiante, com respeito a Faca na água, "tal como na peça Entre quatro paredes, de Sartre, os três personagens convivem em um espaço limitado (um iate), onde a relação entre eles se deteriora progressivamente", daí a frase o inferno são os outros. 

O projeto foi apresentado e aprovado, e durante cerca de um ano organizei-me para estudar o cineasta polonês. Esse tipo de trabalho nos aproxima de maneira gradual e inexorável do tema, comi, dormi e tive pesadelos com cenários, roteiros e personagens polanskianos. Fiz o recorte do objeto a pesquisar, os três primeiros longas, as obras em P&B, e passei a reunir material. Investi em livros, em vídeos e mesmo durante uma viagem a Montreal, permaneci alguns dias na universidade local pesquisando textos de revistas e ensaios críticos de cinema. 

Longe de ser um autor marcante para mim, como qualquer um do nosso Cinema Novo ou da Nouvelle Vague francesa, o fato de ser um diretor pouco estudado, e com obras que podiam oferecer uma análise existencialista, avancei com entusiasmo. Passei a conhecer detalhes de sua vida, de seu percurso como diretor, de sua relativa independência com escolas europeias e descobri um diretor muito original, zeloso de seus trabalhos, competente na escolha dos temas e dos personagens que compunham seus filmes, além de amealhar um respeitável reconhecimento entre seus pares. Polanski foi para mim a descoberta do estudo crítico de cinema e da possibilidade de elaborar um ensaio transdisciplinar, cujo objeto não se limitasse à análise cinematográfica ou à interpretação filosófica e psicológica. Na verdade, ele me ofereceu um outro caminho profissional, que era o que mais procurava naquele momento, a educação.

Ao mesmo tempo que me aproximei da obra cinematográfica e da vida de Polanski, curiosamente apenas recentemente consegui me aproximar de sua pessoa, de saber de si, ainda que de modo breve, a partir de sua fala, de suas expressões corporais. A entrevista com o jornalista espanhol Joaquín Soler Serrano me revelou em uma hora o que meses de estudos não me haviam mostrado. Naqueles idos dos anos 1990, os acessos mais restritos, que excluíam a internet, permitiram a reunião de um razoável material bibliográfico, o qual estudei parcimoniosamente por poucos meses. 

Acabei que, em meio aos meus primeiros esboços de escritura, certo dia tomei a decisão de ir ao cinema pertinho de casa, estreavam a cópia nova de um filme chamado São Paulo Sociedade Anônima, do qual só conhecia o título, de um certo Luiz Sérgio Person, paulistano, de quem nada sabia. O choque foi tão impressionante que retornei para assistir a única sessão diária repetidas vezes. Foi o suficiente para mudar meu tema de pesquisa. Com a obra magna de Person, seria possível retomar minhas raízes, compreender um pouco mais a cinematografia paulista dos anos 1960, a sociologia urbana de minha cidade e ao mesmo tempo realizar um estudo do individualismo burguês de Carlos, o protagonista da narrativa, em suas escolhas e sua liberdade. 

A mudança radical em meus estudos não me fez esquecer a originalidade e inquietação do cinema de Roman Polanski.

(atualizado em 07.03.2021)



04 março 2021

Quando a Terra se torna plana

 

Quadro do filme Linha Geral, de S. Eisenstein

Y así pasan los días por el alma,
y así en su daño, obsesionada, llora:
Cómo decir el mal que me devora,
el mal que me devora y no se calma?

Alfonsina Storni

E a Terra se torna cada vez mais plana, impressão que se tem com nitidez a partir do Brasil. Na semana que vem completa-se um ano nesse estado de coisas. Já são quase 260 mil mortes oficiais em razão do contágio pela covid-19 e ontem ultrapassamos a marca de 1.900 mortes em um único dia. O desgoverno não anuncia qualquer medida sanitária de emergência, as vacinas chegam a conta-gotas (até aqui vacinados os agentes de saúde e idosos com mais de 80 anos). Há um distanciamento inconsistente com a gravidade da situação, como se as pessoas estivessem sem um pingo de paciência para se cuidar. A população pobre segue tomando o transporte de massa porque precisa sobreviver. E também confraterniza, a exemplo da classe média, nos botecos e bares da vida, sem qualquer prevenção. O discurso canalha de que a máscara e o distanciamento não são importantes convence uma substanciosa parcela da população, que ajuda assim, a marcharmos para o despenhadeiro.

Nunca a bestialidade foi tão consagrada!! Ser idiota nesses tempos de argumentos não-científicos é o comportamento mais natural, seja em uma postagem no Facebook ou no trabalho ou no almoço de domingo com a família. Bom, sejamos francos, a idiotice já vinha cavalgando pela estrada, e era possível encontrar alguns sinais de que estava prestes a coroar-se. Lembro-me na última faculdade em que lecionei de certas atividades produzidas por professores que beiravam a plena estupidez, como os games, as gincanas, os ‘quiz’ de perguntas e respostas. Chegaram a montar uma rádio no saguão de entrada, com um professor-animador falando sem parar... Definitivamente um sinal de que as coisas, já na escola, não avançavam bem. Em meu último semestre de aula, estava com apenas quatro classes de sociologia, já antevendo o fim da disciplina na grade de aulas e meu desligamento.

A bestialidade grassa sem controle, o sujeito que entra em um estabelecimento sem máscara, ou que se nega a tomar vacina, ou que elogia os desmandos do capitão que desgoverna o país. Mas tal bestialidade não é o problema central. Ao contrário, parece ser vista sem problemas, e mesmo estimulada por um modo individualista de encarar o mundo. O Congresso paralisado, sem nenhum consenso sobre a pandemia ou qualquer outro projeto, a mídia em seu pequeno jogo dialético sobre a miséria política de cada dia, o supremo tribunal em seu imobilismo, mesmo envolto em uma montanha de provas que convalidam a revisão de sentenças. 

Nunca a alienação esteve tão legalizada nos discursos, nas conversas, no desempenho meritocrático em cada atividade profissional. Não me lembro de distanciamento tão desesperançado entre as pessoas. Nada parece mais natural do que criar falsos silogismos e bater-se por eles; nada é mais bem-vindo do que negar a pandemia e defender práticas mentirosas de prevenção, nada é mais certeiro do que afirmar que a Terra é plana. Diante desse quadro, a banalidade se instala.

(atualizado em 05.03.2021)