31 julho 2018

A voracidade competitiva e a razão dissipada

Resultado de imagem para a hora do cão carybé
Carybé e o concreto

No café Cristallo, próximo de casa, como em todas as manhãs. O frio se instalou, ainda que não se possa designá-lo como invernal. Pela noite caiu uma chuvarada consistente, o que não ocorria há meses, e aqui estamos em um inverno politicamente desesperançado, onde cabeças inábeis fazem o serviço sujo impondo um liberalismo de guerra, destruidor de empregos e comportamentos. Pelas ruas, a prova desse despautério, com dezenas de pessoas sem um teto, agora dormindo e que ao longo das jornadas perambulam sem noção, sem acolhimento, sem paz de espírito. 

O modelo econômico pregado por essas cabeças desafortunadas do liberalismo define o indivíduo como sendo uma microempresa, sendo reconhecido e valorizado por sua capacidade produtiva. Isso pretende nos igualar em um sentido globalizante aos centros produtivos desenvolvidos do norte, desconsiderando as peculiaridades de nosso processo histórico, forjado em uma profunda desigualdade histórica e social. Como se, num passe de mágica, fôssemos apresentados ao sucesso, bastando para isso o esforço e a dedicação pessoal. O bem-estar viria como consequência meritória do sucesso alcançado. 

Tal discurso aparentemente sedutor e que promoveria a autonomia e a liberdade do indivíduo elimina de saída os desequilíbrios estruturais, nivelando todos a uma competição desenfreada, onde o importante são os fins alcançados. Não considera que nem todos partem do mesmo ponto de partida, nem que possuem as mesmas ferramentas cognitivas para serem bem-sucedidos. Ou seja, um discurso promovido de cima, orientado desde os escritórios climatizados, demarcado por gráficos, números, tabelas, que expurgam o insuficiente, do ponto de vista produtivo, e enaltecem os bons resultados individuais, que acabam por compor a eficiência corporativa. 

Milton Santos há vinte anos já denunciava essa espécie de competitividade excludente, que não promove a felicidade social, mas os bons resultados corporativos. Vale dizer, o sucesso empresarial, e aqui seja do micro (indivíduo) ou do macro (empresa) está alinhado ao resultado produtivo, alcançado a partir da competitividade, não importa o que isso represente. E igualmente vale dizer que esse embate invisível promove a crescente destruição do caráter, tal como nos aponta Richard Sennett. Não existe nesse processo meio termos, e o método que resulta na autonomia e liberdade se assemelha por todo o campo produtivo, no final das contas é como se servíssemos a um mesmo senhor, instigados pela mesma determinação em alcançar os resultados definidos pelas planilhas.

Quando visito meus pais vejo o quanto o entretenimento integra essa ordem produtiva. A emissora hegemônica não questiona ou dialoga, impõe a alienação como um vício, onde o produto oferecido passa a ser indispensável na construção da realidade cotidiana. Assim, cada vez mais seu discurso é assimilado pelos milhões de teledependentes, que interagem na vida de acordo com os modelos disseminados pela programação, por exemplo, pelas novelas sucessivas, entremeadas pelos noticiários, e finalizadas por programas de costumes os mais variados. O questionamento, a tensão dialética, não é considerada, e serenamente é inseminada a orientação dos diretores de programação, por sua vez orientados pelos controladores acionários da emissora. O trabalho competitivo do dia é reproduzido em suas dimensões ideológicas, no entretenimento noturno. O trabalhador não escapa, torna-se um adendo dessa máquina de espetáculos, que a sustenta, lhe dá sentido, e o que é pior, incorpora seu sonambulismo.

Vejo meu pai assistindo calmamente a programação, dia e noite, sem outra ocupação. Para ele, trata-se de uma medicação indispensável, definida por belas imagens e falas incompreensíveis, mas que seduzem. É capaz de submeter-se a essa terapia alienante sem qualquer inconveniente. O mesmo ocorre com minha mãe, que mais ativa ao longo da jornada, submete-se à programação sorumbática em busca de seus efeitos entorpecentes, que distorcem a realidade social íngreme em que vive.

Mas a voracidade competitiva não se associa à compreensão afetiva da vida. Nem tampouco é justo destacá-la como parte integrante das referências saudosas da ordem produtiva. Um trabalhador sindicalizado que produziu, mas igualmente atuou politicamente junto a seus companheiros de trabalho por certo retém muitas recordações prazerosas de seu tempo de conquistas. Mas aqueles que se submeteram caninamente ao explorador modo de produção capitalista simplesmente sublimam as lembranças. Meu pai é capaz de recordar de muitas passagens de sua vida bucólica no interior, junto à família, aos amigos, mas não reteve qualquer memória do trabalho bancário. E a pergunta que faço, por que haveria de guardar alguma recordação de um período em que apenas contribuiu com as formas mecânicas de ser? 


12 julho 2018

Distorções e completudes




Há precisos 75 anos as forças soviéticas começavam a rechaçar de maneira irreversível o invasor nazista, no longo começo do fim dessa ideologia nefasta. Torna-se importante retomar esse tema pela retomada das práticas políticas de fundo fascista que se disseminam pelo mundo, associadas às práticas econômicas neoliberais, o liberalismo levado às últimas consequências, em detrimento do ser humano. No vácuo desse procedimento que varre a liberdade impondo suspeições e limites ao intelecto, viceja a mediocridade, a farsa, o temor pelo futuro. Os imigrantes são violentamente reprimidos, com a chancela da discriminação estampada na testa, sem direitos nos lugares em que aportam. Isso em razão do pensamento tosco de que ocupam os postos de trabalho cada vez mais escassos, sendo por essa razão responsáveis pelo desemprego da população local. O território, mais do que a nação, passa a ter um conjunto de donos exclusivos, “por direito”, ainda que não tenham a posse legal, nem possam alegar que sejam proprietários morais. Esgrimem com canções xenófobas, numa espécie de nacionalismo racial, onde sua cultura e seus costumes devem prevalecer. O advento Trump foi a chave que abriu as portas do inferno, permitindo que fantasmas de corpos fenecidos ressurgissem, promovendo a intolerância e o preconceito que se supunham sepultados em definitivo.

Os palpites ganham contornos de opiniões avalizadas, e parece que quanto mais rancor, mais aderência ganham, como se a reminiscência de um ódio atávico ganhasse o direito de ressurgir, com a virulência que fosse adequada. Contribuiu para esse estado de coisas os exageros radicalizados disseminados em massa e prolongadamente pelas mídias corporativas. A dimensão cuidadosa do jornalismo, o limite ético da notícia, desapareceram à medida que os bons negócios da especulação sensacionalista ofereceram o caminho da sobrevivência. Ledo engano, a histórica revista Veja, que nos seus últimos anos incorporou uma lamentável aura de exemplo do anti-jornalismo, começa a fechar suas portas. Igualmente Folha de SP, O Estado de SP, Globo, sobrevivem à custa de verbas de publicidade de um governo golpista, já que suas tiragens desabaram irreversivelmente. Trata-se de uma dentre tantas instituições que perderam a relação com a população. O sistema de um capitalismo crescentemente totalitário subverte os valores éticos, tornando as instituições públicas suas instituições, funcionais não pela prática da justa competitividade, mas pelos privilégios auferidos, em grande parte pela corrupção moral, quando não financeira. Assim, sucumbem a classe política, a classe jurídica, as empresas de comunicação, em nome de algo vago que impõe os valores objetivos da produtividade, da concorrência, da rentabilidade financeira.

Alguns personagens surgem como arautos desse sistema obtuso, como João Dória. À parte seu exercício autonomeado como empreendedor de sucesso, sem abandonar a prática empresarial, adentra a prática política redefinindo as funções da administração pública, praticamente subordinando-a aos sabores do mercado. Em suma, não é mais a demanda social que define a política pública, mas os interesses do capital, e por essa razão, não há mais motivos para a relação popular, bastam as relações corporativas. No mesmo sentido surge o juiz-promotor de Curitiba, de primeira instância, que igualmente impõe uma prática jurídica de subversão às leis e à hierarquia, em favor de interesses ainda a serem esclarecidos.

Paralelamente a tudo isso, visito meus pais, após um interregno de três semanas. Vejo-os muito bem, minha mãe saudável e mais animada, meu pai forte e bastante bem para seus recém-completados 87 anos. A memória se esvai lentamente, principalmente aquela que não se liga diretamente com os acontecimentos de sua juventude, como a família, o futebol, a casa onde vivia, coisas simples e singelas, que lhe significavam muito. Em contrapartida, as relações com a vida bancária de quase 40 anos desapareceram, ficando marcas indeléveis apenas em suas passageiras imagens alucinatórias, que por certo perdurarão até o fim. Com firmeza e atenção aos detalhes da casa e da vida, minha mãe segue no comando da nau e rege o ritmo da casa, como sempre fez.  



10 julho 2018

Formas indissolúveis de poder


Cabeza de la Montaña, Guayasamín


Atravessamos um tempo em que, por mais que se resista, por mais que se denuncie, os poderes consolidados em nossa América Latina permanecem inabaláveis. Em Buenos Aires, uma multitudinária manifestación contra o acordo do governo Macri com o FMI não é capaz de criar qualquer mal-estar junto ao oficialismo. Aqui no Brasil, um juiz de primeira instância no gozo de suas férias é capaz de impedir de maneira imperial a decisão de um desembargador, ainda que esta fosse posteriormente questionada nas instâncias jurídicas superiores. O que quero dizer é que esse juiz não se mostra nem um pouco incomodado com as normas jurídicas, ou com os crescentes questionamentos de suas decisões, prosseguindo inabalável.

Essa espécie de sociopatia do poder parece uma condição indispensável para o poder aliado aos interesses financeiros galopar sereno em meio aos seus atos, por mais questionados que sejam. É como se a mão invisível do capital especulativo provesse de garantias absolutas o suave desfazer constitucional, impondo a ferro e fogo seus caminhos para a rapina desavergonhada e, ao que parece, decisiva, para o sucesso corporativo. É como se o capitalismo estivesse fatigado da competição, e no melhor modelo flibusteiro do século XVI, tomasse de assalto as fontes provedoras de riquezas para seu usufruto. Assim, vale o ataque ambiental, vale a eliminação massiva de postos de trabalho, vale a repressão ao debate de gênero, vale o assalto ao patrimônio do Estado, vale a mentira noticiosa na mídia corporativa como elemento discursivo, vale a indiferença absoluta à miséria escancarada nas ruas, porque os agentes dessa sofisticada espoliação têm seus interesses silenciosamente resguardados.

Por mais que os indicadores de confiança na economia tenham queda generalizada, por mais que a prevaricação esteja na ordem do dia, por mais que esses men in black ao redor alimentem a ignorância bolsonárica, nada parece impedir o avanço dessa miserabilidade sistêmica. Como argumenta o professor Fábio Comparato, a característica do totalitarismo na contemporaneidade é a destruição pelo poder público das estruturas mentais e institucionais de um povo, e a reconstrução de mentalidades e instituições inteiramente novas. Esse poder público passa a ser incorporado por agentes ideológicos que assomam ao poder de uma forma ou de outra, e acobertados pelo capital financeiro, dissolvem os critérios tradicionais de moralidade e as virtudes costumeiras de um povo, para implementar a razão de suas práticas corporativas. Poderia prosseguir no desenvolvimento deste argumento em seus objetivos mais específicos, mas aqui não é o lugar apropriado, ficaremos apenas na indicação do objetivo geral.

O certo é que não se retoma uma proposta totalitária nos moldes nazifascistas já derrotados, mas uma nova ação deletéria, silenciosa, atraente, quase invisível, que conquiste de maneira eficiente os corações e mentes, desestimulando o mais débil questionamento de seu poderoso processo de expropriação.