31 maio 2013

O ser humano em seu espaço




Maio foi um mês especial, sobre diversos aspectos. Um mês de intensa produtividade, mesmo para um professor 'desocupado' como eu. Foi possível trabalhar em alguns textos, que para minha satisfação, foram imaginados e proporcionaram (ou estão a proporcionar) interessantes desfechos. Dois deles me permitiram que retomasse o caminho acadêmico escolhido e nem sempre explorado, a sociologia, e que me permitirão participar, como ponente, de um tradicional evento na Universidade de Buenos Aires, as Jornadas de Sociologia.

Em um terceiro, pude retomar uma parceria acadêmica que estimo profundamente, pela sintonia e fluidez das ideias, que nos permite avançar sem dificuldades em torno de um projeto. Com Mônica querida, pudemos concluir um belo texto, que nos possibilita participar de outro importante congresso, o RAM (Reunión de Antropología del Mercosur), em Córdoba.

Também encaminhei um resumo sobre um ensaio a ser feito, para a Universidade Nacional de Cuyo, em Mendoza, sobre o mito e a épica da América Latina, contada por sua literatura. Já tenho um trabalho a respeito, mas confesso, ainda a ser melhor trabalhado. Mais uma vez o espaço, no caso, sua construção a partir da cultura de sua gente, ocupando minhas preocupações mais imediatas. Se o resumo for aprovado, terei a satisfação de apresentar uma nova ponencia.  

Uma última produção acadêmica no mês foi a confecção de um projeto de pesquisa, que me trouxe muito prazer, porque retomei as discussões dos trabalhos acima citados, além de minha tese de doutoramento. Diz respeito a temas que me foram muito caros ao longo do último quarto de século, conceitos de geografia, como lugar, território, população; minha cidade de São Paulo; a arte e cultura das periferias. Se for aceita, poderei aplicá-la brevemente, on attends!

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Em todas essas reflexões, a inevitável presença do espaço e da população. E um pensador se destaca em especial, tal como um Robert Fripp a conduzir a banda com ritmo e leveza sem deixar as sombras do palco, estimulando a leitura da cidade, ou da globalização, ou de qualquer tema envolvendo as relações humanas no território, com a sobriedade de seus conceitos. É com ele, o professor Milton Santos, que invariavelmente recorro para avançar em meio a ideias e a memórias afetivas relacionadas ao meu lugar, à minha gente.  

Acima de tudo, dentro do melhor espírito acadêmico, ele me inspira a pensar o mundo presente, em sua complexidade dinâmica, na busca por um futuro possível. Além de me orientar sobre a concepção do território, é quem me elucida sobre os descaminhos da globalização excludente, em meio à imagem de seu indefectível sorriso jovial. 

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"Os pobres são solidários entre si. A cidadania está nestas formas de relação que se criam na base, entre os pobres. Com os pobres a mudança é cotidiana. São sempre obrigados a se rever. Com isso, aprendem mais do que nós. Como repetimos, não nos revemos. Nossa vida é um papel carbono depois de outro. O pobre não: é invenção diária de fórmulas. Mas a academia e a imprensa chamam atenção somente para os aspectos doentios da sociedade, já que são eles que dão manchetes. As manchetes são a união dos intelectuais e da imprensa. As nossas pesquisas são sobretudo voltadas para os aspectos perversos, não para os outros. Nós não trabalhamos as formas de solidariedade que existem e que explicam porque a barbárie ainda não tenha se instalado completamente nas grandes cidades. Os pobres todos os dias elaboram novas formas de solidariedade. Os pobres são mais sensíveis do que nós. Mas como eles não têm o espírito do sistema, não codificam. Isso não quer dizer que eles não aprendam".

("O geógrafo de campos e espaços", entrevista de Milton Santos a João P. Barile, jornal O Tempo, 1997, apud Coleção Encontros - Milton Santos, org. Maria Angela F. P. Leite, Beco do Azougue Editorial, 2010).



21 maio 2013

Cenas de um tempo perdido

Santiago, 2008

Recentemente assisti a uma série de vídeos históricos relatando, sob diversos pontos de vista, a vida do Chile. Alguns produzidos com fins educativos, no início do governo da Unidade Popular, pela Universidade de Chile; outros, de cunho documental, registrando no mesmo período particularidades das alegrias e das tensões cotidianas; e ainda outros, conduzidos por repórteres estrangeiros, para registrar os resíduos das emoções, no pós-golpe militar. Momentos em que se fazia história, em que se expunham as belezas e os riscos. 

Lembro-me, especialmente de uma reportagem que se inicia com uma sequência do sepultamento de Pablo Neruda. Uma voz declama em meio a uma centena de pessoas que acompanham o féretro nas ruas, "No has muerto, no has muerto, solamente has quedado dormido, como duermen las flores, cuando el sol se reclina... e então a Internacional entoada por todos, desafiando os semblantes cerrados e as armas engatilhadas de soldados. 

Tudo isso menos de duas semanas depois do golpe. Perguntei-me o que terá sido daquelas pessoas. Algumas encaram a câmera expressando a dor alimentada no mesmo fundo de alma de onde arrancavam a delicada altivez. A voz do jornalista, em over, comenta solene, "cem pessoas no cortejo, cem sacrificados"... Ofereciam-se solenemente ao sacrifício, pois que vida podia vingar, sob o silêncio sepulcral que se instaurava?... 

Lembro-me de um outro vídeo, desses tempos desesperançosos, o cerco espetaculoso em um subúrbio de Santiago a um militante sendo detido. Diante das imagens dramáticas, a voz narrando um poema. 


Testamento
(Ariel Dorfman) 

Cuando te digan
que no estoy preso,
no les creas.
Tendrán que reconocerlo
algún día.
Cuando te digan
que me soltaron,
no les creas.
Tendrán que reconocer
que es mentira algún día.
Cuando te digan
que traicioné al Partido,
no les creas.
Tendrán que reconocer
que fui leal algún día.
Cuando te digan
que estoy en Francia,
no les creas.
No les creas cuando te muestren
mi carnet falso,
no les creas.
No les creas cuando te muestren
la foto de mi cuerpo,
no les creas.
No les creas cuando te digan
que la luna es la luna,
si te dicen que la luna es luna,
que esta es mi voz en una
grabadora,
que esta es mi firma en un papel,
si dicen que un árbol es un árbol,
no les creas,
no les creas
nada de lo que digan
nada de lo que te juren
nada de lo que te muestren,
no les creas.
Y cuando finalmente
llegue ese día
cuando te pidan que pases
a reconocer el cadáver
y ahí me veas
y una voz te diga
“Lo matamos
se nos escapó en la tortura
está muerto”,
cuando te digan
que estoy
enteramente absolutamente
definitivamente
muerto,
no les creas,
no les creas,
no les creas,
no les creas.




07 maio 2013

Vestígios de Simmel





Abaixo, trechos de meu artigo publicado e apresentado nas X Jornadas de Sociologia da UBA (Universidade de Buenos Aires), julho de 2013, sob o título Modernidade e Vida Subjetiva: Simmel visita São Paulo.


I - MODERNIDADE

“No início do século XX, Berlim é uma cidade em profunda transformação, submetida a um crescimento vertiginoso. Recebe um fluxo ininterrupto de migrantes proveniente das zonas rurais, e em trinta anos, de 1870 a 1900 sua população triplica, passando de aproximadamente 900.000 para pouco mais de 3.000.000 de habitantes. Com a chegada dessa multidão de pessoas que se instala nos bairros mais periféricos, dilatando os limites da cidade, surgem novas fábricas, novos edifícios de apartamentos, expandem-se as linhas de bonde e do metrô, tudo regido por um fluxo renovado de pessoas, mercadorias e informação, frêmito laborioso que acentua o ruidoso esplendor das ruas da cidade moderna (...).

“Sob o ritmo veloz da modernidade, os berlinenses estão mais atentos à leitura dinâmica dos jornais, no tempo livre dentro dos bondes. Tornam-se leitores ávidos das notícias que informam diariamente sobre alojamentos, trabalho, serviços etc, colocam-se a par sobre o pulsar e o crescimento da cidade. Em um período que os romances começam a dar lugar aos novos meios de informação, Gurk, como outros autores contemporâneos, consideram os jornais e outros meios de comunicação metropolitanos como poderosos agentes de homogeneização e empobrecimento espiritual (...)

“Na mesma linha em promover o ritmo ativo e dinâmico da grande Berlim moderna, está o filme Berlin, Die Sinfonie der Grossstadt (Berlim, a Sinfonia da Grande Cidade, 1927), de Walter Ruttmann. No início, a cidade amanhecendo calma e esvaziada, para aos poucos mostrar os detalhes das pessoas despertando para os seus afazeres, o comércio abrindo as portas, as crianças chegando à escola, os automóveis, os bondes, os metrôs dando ritmo à narrativa silenciosa, os planos se ampliam, dão ênfase à rua, ao movimento constante, a grupos de pessoas, depois à multidão deslocando-se ao trabalho, as máquinas em pleno funcionamento. A vida se restabelece, desponta calcada na modernidade dos artefatos mecânicos, mas também às pequenas nuances, a confusão na calçada com o batedor de carteiras, a dama da rua que galanteia o cavalheiro, através da vitrina, a cena de casamento, a senhora que sobe lentamente a escadaria da catedral, pontos que arrefecem por instantes a pressa cotidiana, pequenos detalhes inseridos na sinfonia da grande cidade. A tecnologia coordenada pela sincronia racional, como diz Georg Simmel, a técnica da vida na grande cidade não é concebível sem que todas as atividades e relações mútuas tenham sido coordenadas num esquema fixo e supra-subjetivo (...).

II – SUBJETIVIDADE

“Para se compreender a coisificação do mundo e suas distorções regidas pela circulação monetária, um caminho instigante na sociologia de Simmel é, como dissemos, o que passa pelo espírito subjetivo das apreensões cotidianas. Em sua obra Imagens Momentâneas, temos um conjunto de contos, fábulas, sátiras, até mesmo um poema, que foram anteriormente publicados na revista de vanguarda Jugend, de Munique, sob os auspícios do movimento Jugendstil (a Art Nouveau alemã). Encontramos neste pequeno volume, o olhar corriqueiro, as percepções imediatas da vida diária, tentativas de captar os signos dos tempos modernos. Simmel se entrega à liberdade em escrever sátiras, contos, fábulas, com o mesmo espírito linguístico-literário aplicado a Nietzsche, reflexões do sentido sem sentido, um movimento de reconciliação entre o olhar mais superficial e o espírito mais profundo das coisas. Com estes textos, Simmel alinha as primeiras ideias de seu método indutivo, para mais tarde ganhar substância na construção de sua obra (...)

“No texto Só o dinheiro não traz a felicidade, Simmel nos descreve uma conversa de salão entre dois indivíduos que avaliam o valor do dinheiro na sociedade, e faz em seguida a avaliação do problema levantado pelo diálogo, a possessão (do dinheiro) nos domina no afã de ter sempre mais e nos enredamos em inúmeros assuntos irremediáveis, que são alheios à salvação da alma, para proceder à conclusão em forma de moral, as coisas espirituais estão mais além da questão de ter ou não ter. O dinheiro cobiçado tem seu valor apenas se o temos, pois só assim podemos usufruir dos prazeres que ele pode oferecer. Ao contrário, os prazeres da beleza das estrelas ou de uma paisagem campestre residem no encanto proporcionado ao espírito, não precisamos tê-los como posse (...)

“Um dos exemplos mais representativos da obra, que contrapõe o valor monetário (dinheiro) ao valor metafísico (alma) se apresenta no texto Leilão. Segundo Simmel, o leilão anunciado de um cobiçado carneiro, para ajudar na manutenção de uma criança órfã, o remete a um sonho, onde se leiloava uma alma para corpos desalmados. Não houve muitos interessados, e ao fim, acabou vendida por um baixo preço a alguém que em realidade não tinha alma, e que no caso de possuir uma, não lhe acarretaria o mais insignificante gasto. A criança e a alma colocadas na mesma chave, em oposição ao mesmo sentimento desalmado, e desta maneira, valores como ganância e sensibilidade do espírito, colocados em oposição um ao outro.

III – SIMMEL VISITA SÃO PAULO

“A cidade de São Paulo dos anos 1950 em muitos aspectos se assemelha a Berlim dos anos 1900. Cresce e se desenvolve, submetendo-se a uma profunda transformação da paisagem urbana. Em dez anos, de 1950 a 1960, a população salta de 2.200.000 para 3.825.000 habitantes. O grande fluxo migratório, proveniente em sua parcela mais significativa das áreas menos desenvolvidas do nordeste do Brasil, se estabelece na cidade e em seu entorno (região metropolitana), para se incorporar como mão de obra de baixo custo. O que move o desenvolvimento da cidade é a implantação da indústria automobilística, em meados dos anos 1950, e a construção civil, que se incrementa nos anos posteriores. A cidade se modifica rapidamente, os casarões da nobre avenida Paulista são demolidos para o surgimento de edifícios comerciais e residenciais. O automóvel também não tardará em ocupar o espaço urbano de modo abundante, tornando-se símbolo da pujança econômica, incorporando o slogan a cidade que não pode parar. E não para (...)

“A cidade industrial reproduz ainda que por um período breve, o mesmo cenário inquieto, ansioso, profícuo, notívago, de multidões de pedestres que se entrecruzam e se dispersam. Ao longo da jornada diurna, a São Paulo movida pelos negócios, pelas máquinas, pela circulação de dinheiro; à noite, o tempo dos boêmios, os bares cheios, as boates... o chiado dos motores abre espaço para a sonoridade das canções e das discussões políticas, entrecortadas por tilintares de copos. A cidade guarda essa dicotomia da modernidade, veloz, ruidosa e dinâmica ao longo do dia, sonhadora e boêmia, ao cair da noite. Como em Berlim ou Paris, no século XIX, o flâneur paulistano em sua condição moderna, circula enfurnado na multidão, como seu refúgio, como um entorpecente (...)

“As perdas são visíveis em poucos anos, os escritórios se deslocarão mais para oeste, para a região da avenida Paulista, as multidões de cidadãos participantes se transformam em multidão de consumidores assustados e se deslocam para os novos centros sagrados do consumo, os shoppings centers, de carro. A especulação imobiliária, encorpada com farta mão-de-obra, empurrará paulatinamente estes operários e a população de renda mais baixa dos seus sobrados e dos cortiços centrais, para os bairros distantes, justamente na altura em que os bondes são retirados de circulação (...)

(...) 
V – CONCLUSÃO

“ (...) O olhar atento de filósofo e sociólogo de Georg Simmel tomará a condição do dinheiro como denominador comum de todos os valores da metrópole, chamando a atenção para o aprofundamento da impessoalidade e para a objetividade das relações urbanas, que se expressa em sua consagrada definição do caráter blasé. A grande cidade, em sua definição, “é o verdadeiro cenário da cultura objetiva, que cresce para além de tudo o que é pessoal”. Em outras palavras, a resistência do sujeito pode não ser suficiente para quebrantar a plenitude do espírito impessoal, e mesmo o devaneio criativo do flâneur – ou o espírito lúdico do sociólogo – mostra um delicado contraponto reflexivo para a intensa coisificação da vida citadina, a qual ganha fôlego no capitalismo mais contemporâneo, de caráter neoliberal”.

(disponível em: http://cdsa.aacademica.org/000-038/521)