23 setembro 2009

Ventos de Honduras




Os protestos callejeros prosseguem em Tegucigalpa e é difícil imaginar que se interrompam mesmo com o toque de recolher imposto pela ditadura de plantão. Há uma evidente perda de controle por parte das forças de segurança, que sequer conseguem conter os saques de alimentos. A embaixada brasileira está cercada e para dentro saltaram cerca de trezentos simpatizantes de Zelaya, receosos de sofrerem com a violência policial. Quem não conseguiu abrigo, é conduzido a três estádios, onde permanece em custódia. O número de detidos nesses locais chega, segundo o jornal Página 12, a 150 pessoas. Violência desatada, temperatura quente, resistência pronunciada, sobretudo com o regresso do presidente deposto Manuel Zelaya Rosales, ocorrida ontem. 

Quem quiser sentir o drama desses momentos, convido a ouvir a rádio Globo de Honduras, uma das poucas vozes que se opõem ao golpe de estado, defendendo o retorno do governo constitucional. É comum a rádio estabelecer contato por telefone com a população, e os depoimentos são emocionantes. São vozes que optam por se manifestar, de diversos rincões do país, seja para denunciar uma violência policial, para indicar que tipo de mobilização ocorre no local, ou apenas para se sinalizarem que ouvem a transmissão e apóiam o regime constitucional. Cheguei a ouvir mais de uma vez a palavra metamorfoseada em poesia, exprimindo o gesto ao alcance, cuja transmissão expõe uma postura moral comovente, que nos toca pela força e contundência moral.

São pessoas simples, que ousam ligar e se fazer ouvir, e dentro do tempo que possuem, conseguem dar o recado. A mensagem é inequívoca: estamos aqui e não fraquejaremos, contem conosco. É o alcance desse meio chamado rádio, a serviço do social, da consciência do que Benedict Anderson cunhou de comunidade imaginária. Nos dias de hoje, é num momento grave como este - a partir de um golpe de estado - que as consciências se voltam para aquilo que se esgarça, o sentido de coletividade constituído pela nação.
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Mas há outra Globo, a que insiste em apresentar esses acontecimentos em ebulição como um enfadonho jogo do campeonato da série B. A preocupação maior de seus porta-vozes (difícil aqui aplicar o termo jornalistas) é questionar se o governo brasileiro sabia que Zelaya estava a regressar a seu país. Uma questão de segunda categoria, que não exprime nada a não ser uma satisfação a nossa passividade, isso de estarmos conectados sem preocupação com a comunicação. Ao objetivar a população como um mercado de consumidores, nos propagam a notícia segundo o padrão "testar hipóteses" (uma meia verdade ou uma farsa atrás da outra), como se fôssemos milhões de Homers à espera da edição do Boner. Uma vez conectados - e só conectados - querem crer que só desejamos consumir um bolo de informações degustáveis. A notícia perde o seu impacto, nos chega mansa e sem gosto, em seu tom pasteurizado, sem surpresas. Um big mac a mais em nossas vidas...

Felizmente os acessos à informação e ao conhecimento proliferam pelas novas tecnologias, e a internet cumpre um papel importante ao oferecer o acesso a inúmeros jornais, revistas, rádios e TVs digitais, o que permite romper com esse processo de apatia induzida e tornar menos enfadonha a busca por informação e conhecimento. Temos disponível a interação mais dinâmica, que concorre com a conectividade passiva, consumista, oferecendo-nos o protagonismo de nosso destino e o entusiasmo da cidadania participante, como nos demonstra diariamente a rádio Globo de Honduras e seus ouvintes.

Estamos cada vez mais preparados para sair do marasmo imposto pelo sistema Big Brother, cujo apelo se desgasta e cujo brilho deixa de encantar quando as alternativas aparecem. E as alternativas estão cada vez mais ao nosso alcance.



22 setembro 2009

Miles



Retirou-se do tablado mais cabisbaixo do que nas últimas apresentações, alheio aos aplausos frenéticos que não cessavam e aos primeiros fãs que o acolheram na coxia. Presenciei aqueles passos incertos, permeados por um olhar vago e insatisfeito. Alguma falha grave ocorrida ao longo do espetáculo já teria sido exposta a todos nós ali mesmo, nos corredores internos, sem que isso impedisse que o ânimo prevalecesse, regado a muita cerveja e fumaça. Naquele dia ele se esquivou em meio aos seus gestos gentis e buscou enfurnar-se nos camarins até que o movimento acalmasse. Fui uma das três testemunhas a presenciar sua introspecção, enquanto bebíamos e fumávamos sem muito entusiasmo.
Mais tarde, já no hotel, dispensou ainda no hall as duas amigas que nos acompanhavam e subimos ao apartamento. Serviu-se de uma dose dupla de scotch com gelo e sentou-se no braço do confortável sofá branco, olhando-me como se desejasse antecipar minhas reações. Foi então até o terraço e permaneceu um tempo observando silenciosamente o bulício distante dos automóveis na avenida e retornou com a expressão facial menos grave: O si maior não saiu hoje, Tom...
Era o desalento que se pronunciava, sem que sua confissão o deixasse mais sossegado. Uma nota que não alcançara, era tudo, a razão suficiente para permanecer à margem da vida, ensimesmado por um fracasso. Não tinha mais o que dizer, estava evidente, porém permaneceu estático a minha frente, sorvendo suavemente seu scotch, talvez apreciando meu silêncio. Não reagi ao seu comentário, como normalmente fazia, porque naquela circunstância não soube exatamente o que dizer.
Os minutos fluíram devagar, deixando-me atento ao tilintar das pedrinhas de gelo que fazia girar no copo, entre um gole e outro. Quando se retirou para o quarto, restou o ruído abafado do trânsito lá embaixo, que penetrava aproveitando-se das portas escancaradas do terraço, em meio às lufadas do vento outonal. Resignei-me ao cansaço, reavivando os sons discerníveis em meio a essa quase inconsciência entre uma lembrança e outra, entregue à agradável sensação de um trompete capaz de extrair todas as mais belas notas musicais...

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17 setembro 2009

16 setembro 2009

Sobre Sabra e Chatila

(...)
Uma voz possante grita-lhes, do lado de fora: “Rendam-se e estarão em segurança”. Moufid mal chega à porta, três soldados armados invadem a casa. Wafa, Djamila e Zeinab olham, imobilizadas. Intissar levanta-se e aconchega os meninos. Abou mostra desapontamento por não ver o pai. O que parece ser o comandante faz uma inspeção no cômodo, com as mãos nas costas, o passo marcado, sem pressa. Não se ouve mais qualquer ruído vindo das ruas. Ao contrário, distingue-se o som pesado da respiração angustiada... O comandante para ao lado do móvel onde está o rádio, que ainda toca os músicos do Nilo. Toma o rádio nas mãos

COMANDANTE
(mostrando o rádio) Do que se trata?

MOUFID
A música de Shamandi Tewfiq...

COMANDANTE
(caminhando até Moufid) E não me diga que vocês apreciam esse tipo de música?... (atira violentamente o rádio no chão) Ou será uma espécie de escuta clandestina?...

MOUFID
Temos o direito de...

O Comandante cala Moufid desferindo-lhe um tapa no rosto. Wafa dá um grito e tenta levantar-se, mas é contida por um soldado. Intissar e as meninas, Zeinab e Djamila, entremeiam choros e orações. As crianças correm para a mãe...

COMANDANTE
...errado! Começou errado, vovô. Vocês perderam os direitos desde ontem, não sabia disso? (vindo ao proscênio, como se falasse à platéia) Estamos prestes a completar o serviço em Beirute, viemos acertar as contas com... (apontando para Moufid) com gente como você! (deixa escapar um sorriso ensandecido) mas afinal, hoje estou me sentindo verdadeiramente bem, mais leve, diferente dos dias comuns de treinamentos... hoje estou agindo! Hoje sinto meu ser flutuar, o prazer fluir por intermédio das minhas mãos, meus mais profundos desejos ganham vida... não... esse ar que respiro não me basta, esta merda de casebre, uma dentre tantas ocupadas, coisas mundanas que nada querem dizer... mas a ação que empreendo ao fazê-los desaparecer... ah, a volúpia que me sufoca, a ansiedade que antecipa a doce emoção... é a isto que me refiro (gestos enérgicos no ar) a ação... estamos livres para agir, ah, para resolver essas pendências miseráveis... emoção e razão... meu espírito feliz regurgita, mas logo me detenho, sei que desempenho uma função vital, ah, ah... merdas (olhando detidamente para cada componente da família), merdas... esse palpitar, esse palpitar... benditos estes olhos que guiam meus atos, bendito este olfato que me distingue o salubre da imundície, bendito o bom Deus que ilumina meu caminho e me concebe a graça da vingança... falemos diretamente o que interessa: vingança! Vocês são os únicos culpados pelo castigo que agora lhes alcança... trombeteiem, pois, façam o que bem quiserem, esforcem-se para serem ouvidos, lamuriem-se pelas suas dores, chorem pela constatação da sua desgraça... não me interessa o que façam... Ah, esta noite me pertence, sorverei o cálice oferecido e me deleitarei de prazer... tenho pressa... ou não, é claro que não tenho pressa, a bem da verdade nada pode me impedir de completar o que tem de ser completado! Ah, Muster, traga-me o cálice... como eu poderia esquecer?... Um brinde, depois daremos uma salva de tiros ao Ocidente estúpido, que se esforça por interromper nossa ação... (pegando a garrafa que Muster lhe trouxe e dando diversas goladas); a esses Estados ultrapassados, especialistas em soluções... insuficientes, eh, eh... com suas lógicas podres... (mais outra golada) mas o que é que estou dizendo?!... desfrutemos as delícias desses momentos gloriosos... superestruturas, burocratas, políticos... (mais goles) que nós, os verdadeiros agentes da paz não sejamos perturbados... (já meio grogue) que resolvamos assim, com uma dedicação especial as nossas diferenças milenares... ei, não me olhem assim, não fui eu quem começou com essa história, eh, eh... não vou carregar nenhum remorso, esqueçam... posso oferecer razões geográficas para vocês, seus indesejáveis... ocuparam por muito tempo o nosso lugar... (uma rápida olhada para trás) Ah, quanta satisfação! (esvaziando a garrafa e atirando-a contra uma parede) já não sou mais dono dos meus atos... (olhando para as mulheres) bem, sim, agora tenho pressa... ao trabalho... (para Moufid) vamos lá, procurarei ser bonzinho... onde estão os outros?...

MOUFID
Não há ninguém além de nossa família...

COMANDANTE
Terroristas, velho, quero todos os terroristas...

MOUFID
Nossos combatentes já partiram, você sabe do acordo...

COMANDANTE
(irado, outro tapa em Moufid)... não quero saber de acordos... estou aqui para limpar a latrina... (detendo-se, exausto) não quero perder mais tempo com vocês... (para os soldados) revistem a casa. (para Moufid) Pegamos Abdul Youssef saindo daqui... (caminhando até Djamila) estava inquieto, meio apressado, não acha?...

INTISSAR
(assustada) Não, chega... por Allah, que mal fizemos a vocês?...

MOUFID
Calma, Intissar. (para o comandante) Nada sabemos de Abdul Youssef ou de quem quer que seja...

COMANDANTE
(dando uma gargalhada de galhofa, enquanto prossegue se insinuando para Djamila, que se defende como pode) Oh, comovente... Abdul Youssef, terrorista exemplar, profundo conhecedor da resistência em Beirute Ocidental... querido entre seu povo, morador de... como se chama este acampamento de merda, Ernest?...

ERNEST
Sabra, meu comandante...

COMANDANTE
... pois é, Sabra... (cuspindo no chão) e você me diz que não o conhece?... (arrebentando a alça do vestido de Djamila) fale a verdade, velho bastardo.

MOUFID
(desafiador) Não estamos em Sabra... Aqui em Chatila somos apenas velhos, mulheres e crianças, e a não ser que vocês queiram nos levar, peço que se retirem da nossa casa.

(...)

(extraído da peça 'A última noite de Sabra e Chatila')

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14 setembro 2009

O vento nos levará


Em minha noite, infelizmente tão curta
o vento está para encontrar as folhas
Minha noite, tão curta,
está cheia de angústia devastadora
Atenção! Ouve o sussurro das sombras?
Esta felicidade parece estranha para mim
Estou acostumado ao desespero
Atenção! Ouve o sussurro das sombras?
Lá, à noite, algo está acontecendo.
A lua está vermelha e ansiosa.
E grudados a este teto
que pode cair a qualquer momento...
as nuvens, como uma multidão de mulheres chorando...
esperam o nascimento da chuva.
Um segundo, e depois nada.
Por trás dessa janela, a noite treme.
E a terra pára de girar.
Por trás da janela, um estranho
preocupa-se contigo e comigo.
Você, em seu verdor
põe suas mãos, essas memórias ardentes
em minhas mãos amorosas.
E confia seus lábios,
plenos de calor da vida
ao toque dos meus lábios amorosos.
Se vier a minha casa
oh, bom senhor, traga a lâmpada
e uma janela pela qual eu possa ver
a multidão na rua feliz


(Farokhzad Forough)


13 setembro 2009

Por Honduras




Conectava-me ainda há pouco com as manifestações de resistência popular, emanadas em um programa da rádio Globo de Honduras (nada a ver com a homônima daqui), onde Ariela comandava com simpatia e competência um programa de conversa com a população.

Pude ouvir jovens e velhos, homens e mulheres, oriundos dos diversos rincões do país, a anunciar a organização da resistência das mais diversas formas. Gente comum em vigília, que começou a contagem regressiva para o fim do governo de fato, conduzido pelo golpista Roberto Micheletti.

O vídeo acima surgiu da sugestão de um ouvinte, que pedia a audição da música Nos tienen miedo, de Liliana Felipe. É uma homenagem ao povo que resiste de maneira pacífica, quase sem ser percebido pela mídia internacional, e que reivindica o retorno da ordem constitucional (com o retorno do presidente eleito José Manuel Zelaya Rosales) e a formação de uma assembleia nacional constituinte.



12 setembro 2009

Uma história truncada


Houve, naquela terra distante, um homem chamado Fermín que persistia em crer na prevalência da dimensão humana. Não passava um dia sem deixar de apascentar as almas desvairadas com sua dedicação, estimulando-as com boas palavras. O mundo, segundo ele, possuía corações ensandecidos e abençoados, de modo que bastava compreendê-los tal e qual para a dignidade humana prevalecer.

E assim Fermín desfrutou sua longa vida em meio a bons juízos, poucas pessoas e muita fé. Preservou os gestos comedidos sem alentar os desejos insaciáveis, que sentia contagiar aos seus semelhantes. Não se preocupou com o que denominou de comportamento vergonhoso e perseverou em seu esforço solidário, cada vez mais solitário. E assim foi.

No penúltimo dia de sua vida, Fermín despertou agitado: eis que em sonho lhe surgiu uma jovem, em vestes mal apanhadas, a dizer-lhe, com proverbial serenidade que sua compreensão para com o próximo não tinha sido suficiente. Com essas palavras a assediá-lo, Fermín amargou as incertezas da profecia, em profusa multiplicação.

Foram horas de amargura a preservar o olhar delicadamente cruel da jovem, quando o abrupto colapso cardíaco interrompeu.


Uma história qualquer


Mr. Stanley, de passagem por Santiago, resolveu sintonizar a CNN em espanhol, não só para saber notícias da América Latina, como para fugir das notícias de sua terra natal. Não teve jeito, a emissora interrompeu uma reportagem sobre a Venezuela justamente para a cobertura das primárias do importante estado de Iowa. Mas que saco, pensou, naturalmente em inglês, Stanley. Permaneceu sentado à beira da cama, enquanto Mary Jane, sua esposa, regurgitava em sono profundo.

Então ele acompanhou o resto da reportagem. Soube que quarenta milhões de dólares foram gastos no convescote de inverno. Por um momento, foi tomado por um certo incômodo ao imaginar que o mundo acompanhava evento tão singular. Nada escapava da cobertura, desde imagens dos lugares onde ocorreriam as votações, passando por importantes revelações pessoais de cada candidato. 

Um dos âncoras surgiu para explicar, com cuidadosa riqueza de detalhes, o método de pesquisa de boca de urna, que seria aplicada mediante um questionário. Sorridente, concluiu que com esse instrumento a população teria o percentual de votos de cada candidato, antes das apurações, com boa margem de segurança. Também seria possível conhecer um perfil do eleitorado, faixa etária, profissão, desejo de consumo, time de football, comida preferida etc.

Stanley coçou a vasta barbucha branca, como se algo lhe tivesse escapado na explicação. Imaginou que seu castelhano não estivesse bom o suficiente para entender as coisas. Resolveu deixar a TV ligada e estirou-se ao lado de Mary Jane. A cada quinze minutos, a CNN retornava direto de Iowa, para outros detalhes da mais alta importância.


11 setembro 2009

Chile

O ataque ao Palácio de La Moneda, 11.09.1973


A essa altura, há trinta e seis anos, um facínora implantava a ditadura mais perversa do Chile, após o suicídio do presidente eleito, Salvador Allende. Creio ser oportuno reproduzir abaixo uma experiência que tive, ao viajar para Viña del Mar, com um militar golpista de terceiro escalão, que me realçou o caráter abjeto desse episódio, de brutal ruptura constitucional no país.

O texto foi originalmente publicado em meu antigo blog, Caminhos da Liberdade, em 2006, e contou com três comentários de duas pessoas, uma delas chilena. Pela força e delicadeza dos argumentos, tomo a liberdade de incluí-los ao final da narrativa.

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No final dos anos oitenta, realizei uma viagem por terra, de Buenos Aires até Santiago do Chile, e depois de dois ou três dias caminhando pela bela capital chilena, decidi ir até Viña del Mar. Foi um viagem vespertina, no meio da semana. No ônibus, poucos passageiros, a maioria concentrada em sua parte dianteira. Escolhi a primeira poltrona, pois gostaria de realizar o percurso atento à paisagem, desvelando-a pelos amplos vidros dianteiros. 

Seria um cúmplice silencioso do motorista, caso não se acomodasse ao meu lado um senhor, na altura dos cinquenta anos, e que à primeira oportunidade, passou a falar sobre a história chilena. Eu mais ouvia do que falava, permitindo-o embrenhar-se pelos detalhes de acontecimentos por mim desconhecidos. Falou sobre a colonização estrangeira, sobre o processo de desenvolvimento do país no século vinte, até tocar no tema delicado para mim, a política contemporânea, culminando com um desejo, "Há que se erguer uma estátua até o céu para Pinochet".

Poderia ouvir qualquer coisa, menos um comentário como aquele! Olhei para a figura, imaginei que tivesse sido um subalterno qualquer do exército ou da marinha na época do golpe, indaguei-lhe o que sabia sobre o dia da derrubada de Allende. "Uns dias antes nos reunimos em Valparaíso e concluímos que a coisa não estava boa", disse isso com um gesto de mão e uma expressão facial como a denotar a fedentina do momento. Meu comportamento paciente resistiu até aquele momento, então passei a inquiri-lo diretamente acerca do governo pinochetista. 

O velho encarou de bom grado e fomos, durante cerca de uma hora, o centro tempestuoso das atenções naquele ônibus. "Em meu país tomamos o governo Pinochet como uma ditadura cruel", argui, sem alterar o tom de voz, olhando para a frente. O homem estrebuchou na poltrona, senti os passageiros vizinhos agitarem-se, como que preocupados com o que ouviam. "Está mal informado, señor...", "... Não, não creio que eu e o mundo estejamos mal informados!", e assim prosseguiu o duelo. "Há uma conta de milhares de desaparecidos...", ao que me retrucou, "Mentira!", de modo peremptório, como um desesperado ultimato para que me calasse.

Para encurtar a história, o canalha desceu ao avistarmos Viña do alto. Nas escadas do veículo, disse-me que eu "precisava me informar sobre as coisas". Senti pela primeira vez um clima de alívio envolver os passageiros, talvez porque pensassem que teriam de agir, intervindo contra um militar chileno (é preciso lembrar que vivíamos ainda os tempos Pinochet). O importante a dizer aqui é que não desejava ter chegado àquela situação embaraçosa, mas a arrogância me provocou, atingindo-me no âmago de minha dignidade como cidadão e compreendi que não poderia ficar quieto, ao lado de um canalha. Só não mandei o pulha à merda porque ele desceu antes da chegada ao terminal. 

Fiz o que estava ao meu alcance, não recusar o embate ideológico, mesmo em condições adversas. Não poderia fugir aos meus princípios nem ao debate do processo histórico, que condenavam a postura moral de meu interlocutor.

3 Comments:

At Quarta-feira, 08 Novembro, 2006, Sandra said...

Procurando informações na internet para realizar um sonho, o de fazer uma viagem a pé do Brasil até o Chile , encontrei seu texto "A elite vai ao desespero", que me fez reviver emoções fortes. Passei por algo parecido, sem ter a sua coragem e presença de espírito. Viajando em Portugal, um senhor de seus 50 anos sentou-se ao meu lado e começou a fazer um histórico de Portugal, ao qual ouvia atentamente, porém não tardou para que ele iniciasse uma glorificação a Salazar... Seus propósitos eram revoltantes, mas a única coisa que fiz foi controlar a minha raiva e vontade de lhe estrangular. Por isso gostaria de lhe parabenizar pela sua frieza e objetividade, que certamente foram cruciais para poder agir da maneira mais correta. E quanto ao real objetivo do texto, fico feliz em ver escrito de maneira tão brilhante opiniões que compartilho.

At Domingo, 12 Novembro, 2006, PorSiempreAmapola said...

...esta es nuestra tierra nuestra américa, mestizoamérica ungida con tantas sangres. Y en medio de tanta esquizofrenia colectiva, nosotros que nos empeñamos, nosotros que nos olvidamos e insistimos -pobres ciegos y porfiados- en la demencia suprema, en despojar al hombre de lo que es del hombre.

At Domingo, 12 Novembro, 2006, PorSiempreAmapola said...

(no sé por qué después de este texto suyo me dan ganas de darle tantas gracias. Como una mano que recoge un espejo partido en pedacitos)



09 setembro 2009

The boatman's call


Imagem relacionada


O jovem Ernani deteve-se no meio de suas explicações, para a surpresa de seu interlocutor. Por um instante imaginou que fosse apenas um lapso de memória, mas logo concluiu que não teria mais o porquê em prosseguir falando. O velhinho à sua frente estranhou o súbito silêncio e foi logo questionando sobre o procedimento mais indicado para o seu caso. Todos desejavam saber qual o procedimento correto para os seus infortúnios, ainda que fosse um simples número de sala, ou a cor do formulário mais apropriado. Ernani então observou a fila que serpenteava, pessoas sequiosas por informações, gesticulando com os papéis na mão, impacientes pela demora, pelo calor ambiente, pela certeza de que permaneceriam ali retidas por horas a fio. Nas faces cansadas, expressões desconcertadas que avançavam para os primeiros impropérios, entorpecendo a visão do jovem Ernani. 

Em um primeiro momento ele a tudo absorveu, aplicando a paciência apreendida ao longo de meses de convívio burocrático. Até aquela manhã, suas explicações eram corolários ricos em evasivas, divagações caprichosas e ludibriantes, que seus colegas apreciavam garantindo-lhe um futuro promissor na função. Todos os dias centenas e centenas de cidadãos o procuravam ali no Guichê de Encaminhamento Geral em busca de respostas. O homem à sua frente foi o primeiro a não poupar-lhe injúrias, sendo seguido por outro e mais outro, mas a Ernani prevaleceu o súbito frescor da melodia... the boatman calls from the lake... a lone loon dives upon the water... e que substituía o fragor das vozes e dos carimbos amalucados. Após uns instantes de imobilidade, deixou seu lugar e caminhou, a canção a dar suporte para seus atos... I put my hand over hers... down in the lime-tree arbour... sem se incomodar com o rumor da massa de desvalidos, ao atravessar o amplo salão... the wind in the trees is whispering... whispering low that I love her...

Ernani não ofereceu mais respostas, nem mesmo quando seu superior o interpelou, à saída do departamento. Uma retirada silenciosa, sem regresso possível... the boatman calls from the lake...


03 setembro 2009

Basta



Digamos que o tempo passa e eu o sinto na saliva, cada vez mais espessa. Teria que perguntar à consciência quantas reprovações me reserva. Mas prefiro fazer-me de surdo.
A palavra inquietude preenche a realidade, como se fosse fumaça concentrada. A liberdade dá um cutucão na alma e não se tem mais remédio que ser livre. De todo modo, a cordura vigia e ameaça nos meter no curral da razão. O desconsolo nos consola e nos é impossível atraiçoar.
Por sorte não temos deuses que nos perdoem. Às vezes penso que a vida é um erro, mas claro, erro maior é a morte.
Entre o sonho e o pesadelo há um parêntesis em que nos formamos. Surge o sol e fazemos sombra. Sombra de ar e de febre, sombra de mistério.
Quem seria capaz de nos revelar e de nos rebelar. O pobre lago nos copia como fomos e depois se desfaz.
Basta de navegar no esquecimento. Basta de nos bendizer na chuva. Basta de não ser nada. Basta de que o prazer nos desconheça. Basta de conviver com a derrota.
Basta, carajo.

Mario Benedetti

(Extraído do original em espanhol Basta (Vivir Adrede), Madrid: Santillana Ediciones, 2009).



Ausência




As coisas que nos faltam, quantas coisas. As que ficaram pelo caminho ou nunca o acederam. Quem mais, quem menos, todos levamos uma filatelia de ausências.

Há partidas, despedidas dos que não voltaram nem voltarão. Ainda nas melhores e conquistadas alegrias, sobrevém de imediato um vazio e ficamos taciturnos, desamparados, ternamente desolados.

Por sorte quando sonhamos voltam todos, os que ainda são e os que foram. E abraçamos fantasmas, almas em pena e almas em glória. Eles nos contam sua impiedosa sobrevida, ainda que, isso sim, marcando sempre seu território, que é apenas inverno.

Seu exílio tão passivo, tão inerte, não está consolidado. Com seu martírio, nos martirizamos, quem sabe porque sabemos que tudo isso acaba em um opaco despertar. Vem então a fase de olhos abertos, também chamada de insônia. Lá em cima está o céu raso, com a aranha de sempre em seu espaço de redes. Nos faltam mãos para acariciar, lábios para beijar, cintura para envolver, corpo que penetrar. Tudo é ausência.

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(Mario Benedetti, tradução a partir do texto original Ausencia, que compõe o livro Vivir Adrede, Alfaguara, 2009).



02 setembro 2009

Ignomínia


Mais uma vez o histórico Cala a boca e fique quietinho!

Desta vez, o bairro de Heliópolis e seus sofridos moradores surgem como vilões. Uma jovem de 17 anos foi assassinada por policiais da guarda civil. Não foi em razão de tiroteio, o que não amenizaria a gravidade do problema. A jovem estava no lugar errado, na hora errada; a polícia perseguia um bando, e atirava. Errou o bando, acertou a jovem, mãe de uma garotinha de um ano, que só terá consciência de sua perda daqui a alguns anos.

As comunidades carentes carregam o inconveniente de aparecem no oligopólio midiático quando o fato é brutal, eivado de morte e sangue na sarjeta, sob o olhar assustado dos moradores. Tem de ter esse componente de drama, misturado com passividade. e a morte de uma jovem de 17 anos não seria um destaque suficientemente brutal. Diferente, por exemplo, de um crime ocorrido nos bairros chiques, no Morumbi ou nos Jardins. Aí a cobertura jornalística do oligopólio midiático acompanha o brado de justiça e os pedidos de justiça já, e os desdobramentos em passeatas, com o clamor de redução da maioridade, se o crime tiver como autor um menor abandonado.

Foi assim no episódio do bar Bodega, há alguns anos, quando Adriana foi assassinada e três jovens pobres foram acusados do crime. Mais tarde, depois de reações ensandecidas de nossa burguesia, com direito à formação do movimento Reage São Paulo e passeatas e campanhas midiáticas contra a violência urbana, comprovou-se a inocência dos suspeitos. Na parte final da sentença proferida pelo juiz José Ernesto de Mattos Lourenço, destacava-se: "(...) São Paulo Reage diante da morte de filhos ilustres, mas não se emociona diante da morte dos filhos dos desprovidos de capacidade econômica, que não podem freqüentar casas noturnas de Moema, mas freqüentam os bares dos bairros distantes. A conclusão é dolorosa: matar filho de rico em bairro de classe média alta ou abastada dá notícia, repercute, revolta a sociedade, que reage. O mesmo fato, quando atinge o marginalizado da economia, não desperta nenhuma reação”.

De volta ao assassinato da jovem do bairro de Heliópolis: ele foi o estopim para uma manifestação irada de moradores do bairro, cansados da falta de segurança, da falta de respeito. Sem apoio nem a condolência de nenhuma espécie, as pessoas saíram às ruas frustradas por mais uma injustiça. Quiseram cobrar. E a mensagem midiática foi clara: não pode! Para o oligopólio midiático, para esse jornalismo movido à espetacularidade, pobre tem de sofrer sem direito a manifestar sua indignidade, cala a boca e fique quietinho!, tal como ouvi certa vez, na rua Estados Unidos, nos Jardins.

Em uma bela noite após o trabalho, eu saí de uma lanchonete a dirigir-me ao ponto de ônibus, na rua Augusta. Caminhavam tranquilamente ao meu lado três trabalhadores negros, final de expediente, sacola de marmita na mão, conversa animada e tal. Eis que de repente e não mais que de repente, do nada, surge uma viatura policial, para no meio da rua e dois policiais saltam com arma em punho, empurrando os pobres homens para o muro. Pobres homens que, diga-se, também não têm o direito de se assustar, mas que são regularmente cobrados por assustarem. Pois bem, um deles quis reagir e o policial foi logo dizendo, Cala a boca e fique quietinho! Ele e os demais ficaram, sendo vítimas de uma acintosa revista. Fui poupado por ser branco? Depois da revista, resolveram os policiais darem no pé, deixando aos trabalhadores negros o amargo sabor de mais uma humilhação.

Esse também não seria considerado um fato brutal, não ganharia as manchetes, não passaria de um fato corriqueiro, sem graça, por não conter cenas de emoção e dramaticidade suficientes. Mas no bairro de Heliópolis elas ocorreram, e a impulsiva reação dos moradores foi tachada de vandalismo. É a definição emanada do conforto da redação, tão injusta quanto preconceituosa: protesto de morador de comunidade pobre vira ação de vandalismo! E sofra, e tome batida da polícia, e carregue a pecha de elemento suspeito, e continue mofando horas dentro da condução pública, e sobreviva com um salário pífio, e seja condenado ao faustão e ao gugu nas tardes de domingo, e morra com um tiro equivocado. Morador de comunidade pobre não tem direito a voz, nem a cidadania. E cala a boca e fique quietinho!