29 agosto 2020

Poesia 04

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PERCEPÇÃO OUTONAL

  

A bela caminhando

os olhares arredios

balouçando a cintura

esboçando um sorriso

louvando o céu escuro

                           (as nuvens plúmbeas)

  

                                               A bela caminhando

                                               feliz

                                               os pelos do corpo eretos

                                               toda a emoção

                                               evidenciada pelos largos tornozelos

 

O chão úmido

as árvores docilmente inclinadas, indiferentes

as paredes frias espreitam

o vento fino abstrai a alma

                        e desperta a consciência

 

                                               Os homens silenciosos, evadidos

                                               os carros imóveis, também mortos

                                               o sol distante que não se espraia

                                               mas o gato no telhado atento acompanha

                                               a bela caminhando.

                                          

                                                                                                          (abr/83)




15 agosto 2020

Outras palavras

Bruges, 2010

Nestes dias completei cinco meses de relativo isolamento: só saio para as compras de alimentos. O futebol recomeçou há duas ou três semanas sem despertar meu interesse. As atividades esportivas reiniciam aqui e no mundo sem público, sem animação. Torneios de tênis, de vôlei, de futebol, até essa coisa patética do UFC, o símbolo por excelência do neoliberalismo predador. Não se retoma o desejo de viagens, ou mesmo de ir aos cafés, cinemas ou restaurantes. Essa falta de desejo sem dúvida serve à ideologia dos novos tempos, o isolamento das pessoas, servidas por múltiplos cardápios de desinformação. As escolas não retomaram as aulas presenciais e é quase certo que não as teremos antes do próximo ano. Tudo parece capengar, amparado por práticas sociais à distância.

A literatura tem ocupado um tempo importante, finalmente. Tenho lido, tenho pesquisado, tenho assistido vídeos com os grandes escritores latino-americanos. Isso tem me inspirado a escrever, a corrigir meus textos já escritos, a enviar para publicação em revistas literárias, a participar de concursos. Ainda não escrevi nada novo, mas tenho pelo menos uma boa ideia para uma narrativa e uma boa ideia para finalizar uma nova coletânea. 

Falta concluir meu romance, Fragmentos de uma jornada sentimental (ou o título original, Jornada em Cambeville) que a bem da verdade falta bem pouco, e publicar meu livro de contos breves, O fragor silencioso de cada dia, que me parece concluído, recebendo de quando em quando alguma correção extemporânea. É provável que seja meu trabalho mais afetivo, considerando a gama de impressões sensíveis que percorrem a coletânea e imprimem um caleidoscópio bastante humana sobre a vida cotidiana.

Também tenho um volume de crônicas que considero concluído, O que aparentemente nos resta, que cobre o período de 2016 a 2019. E me resta concluir uma peça, Sabra e Chatila, gostaria de desenvolver um novo ato, cuja história se dá um complemento ao martírio palestino. E é tudo. Ao todo, uma produção literária tão curta, tão restrita, tão frágil. Ouvindo e lendo autores como Cortázar, Gabo Márquez, Borges, Carpentier, aprendo tardiamente sobre a coragem de se entregar de corpo e alma a um grande projeto, produzir uma literatura caudalosa, consistente. 

Cada um deles se entregou com afinco ao desejo de escrever e tornar-se um escritor com uma obra respeitável. Mas para isso se dedicaram de maneira implacável a esse objetivo, rompendo com meias-palavras e temores vãos. Sofreram na pele a escassez de recursos, o exílio, o cansaço, mas com dedicação construíram seus mundos maravilhosos, com os quais fundiram a fertilidade de seus imaginários com o absurdo da realidade vivida. E é tão belo percorrer a biografia de cada um, assim como as narrativas que deixaram.

Julio Cortázar me tomou um bom tempo neste último mês. De modo quase obsessivo mergulhei em seus contos, em suas entrevistas, em vídeos biográficos, que me desvelaram uma personalidade frágil e ao mesmo tempo decidida, com um desejo inquebrantável de adentrar o mundo literário, lendo, escrevendo, sacrificando a própria vida com coragem e determinação. Escrevia longamente, em seus pequenos cômodos, sem que nada o detivesse, nem mesmo os rituais impositivos da vida, como as relações humanas. Tudo que contribuía para o complemento de seu projeto literário foi bem-vindo, e não se pode dizer que tudo foram flores. 

De todo modo, tratava-se de um outro mundo, onde era possível viver em Paris com mínimos recursos, e ali travar contato com uma gama de outros grandes intelectuais, o que por certo só alimentava a imaginação. Essa cumplicidade entre artistas, que se desdobrava em estimulantes e inspirados desafios pessoais, certamente foi a marca de uma época. Hoje não é mais possível, pela literatura, encontrar ambiência tão benéfica à inspiração. Hoje não é mais possível passar horas e dias atravessado por uma obra em construção, com a compreensiva determinação de outrora. 

O capitalismo em seu estágio mais exploratório, demanda cada vez mais produtividade, ainda que de um artista ou um intelectual. De outra parte, as generosas subvenções, ou na ausência destas, as generosas recepções aos trabalhos realizados, só ocorrem para aqueles que desfrutam de algum renome. Em outras palavras, o acolhimento da obra, em seu estágio de construção, não merece mais a atenção merecida. O trabalho realizado só desperta alguma atenção se estiver talhado ao sucesso. O mundo editorial está em plena falência e os leitores potenciais se voltam para as facilidades – ou as delícias – do dinheiro. O trabalho não tem como redundar em algo que possa não trazer resultados financeiros. O sonho, o devaneio, a imaginação, estão excluídos em nome do investimento que redunde mais-valor.

Tive em certo momento de minha vida a possibilidade de aproveitar o tempo bondoso e aprofundar leituras, estudos, escrituras. Confesso minha propensão à preguiça, que persiste até hoje. Lá no final dos anos 1970 e começos dos anos 1980, por toda a transformação política do país, pela valorização da cultura, pelo renascimento de um jornalismo crítico e ansioso por relatar novidades, houve uma janela de possibilidades, um período em que seria possível sonhar com um país menos burocrático. Essa bolha de desfrute rebentou e prevaleceu aquilo que jamais nos abandonou, o preconceito. 

O mundo repercute o que deseja oferecer, os signos frios do neoliberalismo, produzindo espelhos para que todos vejam reproduzidos o sucesso de uns poucos eleitos. Em meu pequeno apartamento, com esse distanciamento social, consigo reabilitar a generosidade da literatura, ainda que ela não possa oferecer nada além de um restrito bem-estar.

(Atualizado em 19.08.2020).


Papéis avulsos

Dresden, 2002

Es tan difícil decir lo que passa que uno prefiere callarse delante la catástrofe.

Se não fosse o isolamento social que de algum modo prevalece, em razão dessa pandemia horrorosa, que já cobrou oficialmente mais de 100 mil mortes, afetando de maneira devastadora tantas famílias pelo país e todas as classes sociais, e de maneira muito especial as mais precárias, diria que os dias correm dentro de uma estranha tranquilidade. Do lado de fora vejo um movimento crescente no comércio e na circulação de pessoas, ainda que dentro de um período marcado, entre o meio da manhã e o meio da tarde. Os bancos, os cafés, os centros comerciais, os restaurantes, cumprem horários mais restritos, de tal forma que as noites correm mais silenciosas e esvaziadas.

Se fosse pelo ímpeto do capital, a retomada do ‘normal’ já teria acontecido há muito. Trabalham fortemente contra essa decisão os meios de comunicação e um cuidado difuso que atravessa as pessoas, que defino como impulso de sobrevivência. Não fosse isso e estaríamos em meio à perdição total, guiada pelos interesses do mercado. Por mais possível, por mais terraplanista que o sujeito seja, ignorar a gravidade do momento, não apenas pelos números, mas pela curva de contágio que insiste em permanecer alta. Já são quase três milhões e trezentos mil casos confirmados de contágio em cinco meses, e se nada mudar, antes do final do ano chegaremos no Brasil a 200 mil mortes. Tenho visto casos fatais avançarem ao redor, afligindo grupos de amigos, em maior parte as pessoas mais velhas. Mortes que sucedem quase que à maneira clandestina, em que não é possível uma despedida dos amigos ou da família, onde o ritual do sepultamento é suprimido ao mínimo.

Em paralelo, amplia-se o número de desempregos, o sucateamento das políticas públicas, principalmente em relação à saúde e educação, a destruição e ocupação da Amazônia e a consequente intolerância contra grupos indígenas. A propósito, o espírito da intolerância prevalece como espírito desse desgoverno, que se espraia de modo descontrolado por nossa sociedade. O impulso inicial de destruição anunciado pelo capitão genocida, logo no início de seu desgoverno, se verifica com impressionante rigor metodológico. Sua aventura bárbara, instrumentalizada por um ministro da economia de linhagem neoliberal, promete entregar ao final de seu mandato uma terra arrasada, pronta para ser explorada pelas corporações. De nação para um território controlado por estamentos conectados e ordenados segundo os interesses do capital financeiro.

Ontem ouvi de passagem, porque não tive paciência para desejar compreender o que de fato ocorreu, sobre uma nova pesquisa de opinião do Datafolha, que indica um discreto aumento da popularidade desse capitão genocida. Esse aumento teria ocorrido nos setores menos favorecidos da sociedade, animados pelo auxílio emergencial de 600 reais. A miséria torna-se tamanha, que qualquer ajuda com cara boa é vista como uma iniciativa significativa, de tal modo que o desgoverno que arranca todos os direitos trabalhistas e previdenciários torna-se um governo decente. Lamentavelmente pouco se fez e pouco se fará no que diz respeito à cultura política de nosso país, controlada nas bases por grupos evangélicos, pelo conservadorismo atávico e pelo medo. O apelo à sensatez via meios tradicionais (universidades, sindicatos, partidos políticos, mídias) sucumbe às novas formas de ação política e interação social, como bem nos demonstrou o monstruoso Steve Bannon.

De modo que se não tomo os devidos cuidados, este diário torna-se um conjunto de ideias mal alinhavadas em torno dos mesmos temas. Em uma palavra, o pensamento civilizatório está em xeque. As eleições de novembro, aqui e nos EUA podem minimizar o quadro dramático da ignomínia instalada. Já não se ouve mais o argumento, mas o des-argumento, e aqui, quem nos “ensina” é o famigerado Olavo de Carvalho. Junto com o estratagema de Bannon, o des-pensamento olavista encontra espaço para garantir e firmar a conquista, algo como os Einsatzgruppen fizeram na Rússia, ao longo da invasão alemã. Gente miserável que, a partir da proliferação de falsos ideais, ocupa os espaços e estabelece o horror.


01 agosto 2020

Algumas considerações tardias

Cracóvia, 1994


As notícias falsas que inundaram o mundo, e em especial o Brasil no tempo das últimas eleições, seguem lentamente seu destino ominoso, a acossar de modo implacável as pessoas, demolidas em seu cotidiano pelo temor, pela torpeza fútil que não se detém. Quando se espera que a justiça aja como deve ser, subitamente o silêncio inadequado prevalece, a dar tempo e espaço para as ondas de crescente intolerância alcance suas praias e promova sua destruição. 

O mais grave desse nosso tempo talvez seja isso, a omissão de quem poderia agir, de quem poderia reconduzir a razão. Vivemos um presente que renega o processo histórico e desaprende com o futuro. Mergulhamos nos desvãos do ódio, convidados por Caim e sua legião de imprestáveis servidores, prestes a realizar a travessia com Caronte, e desembarcar nos primeiros círculos do inferno. As notícias falsas circulam, pois, em um ambiente propício, a verter cuidadosa destruição.

Aproximamo-nos do quinto mês de um confinamento que se dissipa gradualmente. Sem um plano para conter o contágio e as mortes, o desgoverno e seus cúmplices tripudiam fornecendo cloroquina e atendendo os pleitos do poder econômico e financeiro. Promovem uma precipitada abertura dos serviços, sem qualquer interesse em regulamentar as aglomerações públicas, enquanto a contagem tétrica nos aproxima dos cem mil óbitos. 

Isso não causa qualquer estranheza ou desolação. Apatetados, entorpecidos, sem uma consciência crítica a nortear ações consistentes, é mais cômodo deixar-nos seduzir por uma modorrenta flauta de Hamelin a caminho do precipício. Imobilizados e entorpecidos pelas contradições do sistema de mentiras, tornamo-nos presa fácil das garras de um capitalismo agressivo, cujos ditames engendram sua ordem autoritária. 

Não há desemprego, não há contágio, não há farsa que rebente o sorriso do cão e faça interromper o cortejo fúnebre.

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Em tempo:

Retomo nas mãos o livro de Sérgio Ricardo (1932-2020) que girava entre o sala de estar e a mesa de trabalho, na espera de alguma atenção de minha parte. Retirei da estante dos livros abandonados quando voltei a assistir o documentário Pássaro do Morro, de Hilton Lacerda e Joaquim Castro, sobre sua vida. 

Nunca dediquei atenção especial a este mestre brasileiro das artes. Foi ator e diretor de cinema nos tempos do Cinema Novo, compositor de mão cheia, poeta, dramaturgo. Foi paulatinamente apagado da memória de nossa cultura pela ação premeditada de governos e veículos midiáticos. De uma atuação intensa nos anos 1960 e 1970, sua consciência política foi suficiente para ser deixado de lado.

O livro, sua autobiografia Quem quebrou meu violão, revela não apenas algo de sua rica passagem pela cultura brasileira, como revela a qualidade de sua escritura e a força de suas palavras. Fiquei extasiado com seu relato intransigente, que retoma a lembrança das amizades, os percalços com a censura, sua criatividade poética ao descrever as letras de diversas composições. Um livro poderosamente belo e inquietante.

Termino esta postagem com uma delas, que me parece muito sugestiva, triste e ao mesmo tempo desafiadora.

Em noite de luar no céu

Maria do Grotão, ai, se deu

um cão latindo ao longe

e Zé Tulão derrubou sua fulô

os gemidos de Maria

só quem pôde ouvir

foi mandacaru

Dorme que só é bom sonhar

Sonha que o mundo vai se acabar

que a gente foi pra longe

onde ninguém tem carência de levar

o que a gente fez nascer

com trabalho e dor.

morte e amor.