29 agosto 2023

Viver cada dia

 

Museu Gurvich, Montevidéu


Há uma alegria que incorporo e compartilho com M. ao compreendermos que envelheceremos juntos. Isso nos dá um conforto que dimensionamos nos momentos em que compartilhamos nossos compromissos e expectativas. Vejo o quão agradável é realizarmos nossa história um ao lado do outro. Há amor, prazer, alegria, respeito, tudo o que se solicita para um saboroso convívio. E nos preparamos para os desdobramentos da vida, que serão bons naquilo que depender de nossos esforços, e nem sempre acalentadores, naquilo que depender das circunstâncias de nossa condição humana. Nossos esforços se encontram em uma celebração cotidiana, que passa pelas boas surpresas, como pelas dolorosas angústias. Sabemos, e procuramos nos proteger mutuamente dos dissabores das perdas inerentes e inevitáveis, em um futuro que se anuncia. Não estamos estagnados pelas certezas que a morte acarreta, e procuramos em nossas atitudes compreender que o caminho é seguir o canto dos pássaros, o rumor do mar, o prazer dos encontros, e viver cada dia.   



18 agosto 2023

No Café




Aquele Café era uma espécie de referência indispensável dos nossos encontros, onde decidíamos os temas e alinhavávamos a escritura das ideias e do futuro. Naquele dia a ameaça de chuva me fez chegar antes da hora e escolher uma mesa estratégica no andar de cima, ao lado de amplas janelas que me permitiria acompanhar a circulação dos passantes pela rua. Não demorei para rascunhar umas linhas e quando me encontrava na terceira lauda de rememorações vagas e descartáveis, o vento frio anunciou a quase imediata chuvarada torrencial.

Minha atenção voltou-se para o caudal incessante da água percolando intensa ao lado da guia, logo transformando a rua e a calçada num leito transbordante, pegando de surpresa aos pedestres que ainda conseguiam circular. Ao longe, a silhueta inconfundível de M., protegida por uma capa vermelha, a sombrinha frágil movendo-se de um lado para o outro pela ventania, carregada de livros e cadernos. Por um momento temi que não conseguisse chegar ao Café, e mesmo sob o temporal, demonstrava a graça toda característica de seu caminhar, desta feita saltando com delicadeza as poças que se formavam. Os trejeitos corporais no caminhar complementavam a versatilidade daquela mulher, a alegria de ser mesmo em circunstâncias tão íngremes.

Logo desapareceu sob minha janela, o que significava que tinha alcançado o Café. Pensava nas primeiras palavras que lhe diria quando ela chegou à mesa e sentou-se. Um frio na espinha me estremeceu, já não sabia se a encontrava ali para alinhavar os nossos compromissos acadêmicos em conjunto, ou se pelo amor àquela presença magnética, que obnubilava todos as outras razões de viver. Aguardei um pouco, M. esbaforida, emitia frases desconexas, e sorria, olhando-me. A chuva precipitava agora com toda a fúria, Ainda bem que você chegou, comentei retrucando o sorriso. Ela se desfez das coisas que carregava e demos um beijo casto. Isso não pode prosseguir dessa maneira, pensei em um vão de nossa conversação inicial, enquanto olhava para os grandes olhos azuis de M. que indagavam por onde começar.

Era essa a dúvida crucial, por onde começar, e depois, de que maneira prosseguir? À aproximação de Rita, a atendente que conhecíamos de longa data, ela pediu os dois macchiatos de sempre, enquanto abria o fichário com suas anotações.   



16 agosto 2023

Nagasaki, Argentina


Lagrimas de sangre, Guayasamín

Não houve qualquer referência de destaque na mídia sobre a tragédia de Nagasaki, há 78 anos. Falo de Nagasaki, oculta à sombra do episódio de Hiroshima, que também não tem mais aparecido na mídia. Nem, por certo, pedidos de desculpa do governo norte-americano. Depois dos textos de Tamiki Hara, e das imagens de Hideo Sekigawa, percebo o quão distinta é a percepção e a análise das explosões, considerando o olhar ocidental e o que aprendemos em relação a ele, e o relato nipônico. 

No primeiro caso, o fato é tratado sempre sob a frieza dos dados objetivos, número de mortos, destruição física da cidade, razões impositivas de cunho político, como uma quase justificação do ato. Ou, sobrevém o gesto misericordioso, como uma pena a ser paga pelas palavras acerca do sofrimento alheio. Nas narrativas japonesas - literário, imagético - surge o olhar que consegue impressionar até os nossos dias, a visão cotidiana do fato e de suas consequências. Consegue ser isento nas emoções, apenas descrevem o hediondo momento e os desdobramentos da vida. Até porque não há motivos para remeterem-se à política alucinada dos militares japoneses, porque isso conhecemos, a cegueira sobeja. 

Mas ali, no calderão dos acontecimentos, sobrevivem as famílias que não detinham qualquer poder, pessoas comuns que em suas conversas ironizavam a caminhada do Japão para a Idade Média. Cumpria-se o ritual diário de ir e vir, olhando para os céus, atentos ao próximo alarme aéreo. 

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No domingo passado, as eleições primárias na Argentina (PASO, Primarias, Abiertas, Simultáneas, Obligatorias), que definem os candidatos majoritários por partido ou coligação, e eliminam os pequenos partidos para a votação principal, que ocorre em outubro. Trata-se de uma interessante prévia acerca das pretensões do eleitorado, e desta feita, venceu com boa margem o sinistro ultraliberal Javier Milei, com pouco mais de 30%, seguido da coligação de centro direita, com a não menos sinistra Patricia Bulrich, pelo Juntos por el Cambio, somando mais de 28%, e com 27%, em terceiro lugar, a coligação peronista Unión por la Patria, com Sergio Massa. A abstenção ultrapassou a 30%, sendo a grande vencedora do pleito. 

Olhando friamente os números, o quadro é assustador. Mas por alguma razão, não me sinto apreensivo. Primeiro porque não creio que Milei consiga vencer, seja em primeiro, ou principalmente em segundo turno. Sua boca descontrolada e visceral emite códigos de governabilidade que começam a ser assustadores. Em segundo, foi oportuno a vitória de Bulrich e não de Larreta, em sua coligação. Aqui também há um certo desconforto pelos modos truculentos da candidata, que um dia foi montonera e agora se vende como liberal. Larreta seria um candidato mais propício para aglutinar o mercado ao seu redor. Em terceiro, há muito voto branco, nulo e ausente que pode rever a posição no segundo turno, e não acredito que quem o faça, venha maciçamente votar em Milei, ao contrário. E por fim, Sergio Massa, como candidato peronista e atual ministro da economia, não ficou tão distante, menos de 3% de Milei, e 1% de Patrícia, confirmando um quadro instável e indefinido.

A economia argentina não irá entrar nos eixos nestes dois meses, e a posição de Massa é ambígua: pode sofrer mais desgaste se a inflação aumentar (e é o que tudo indica), como pode ganhar mais robustez, se conseguir convencer a população com seu plano de governo de cunho mais social e distributivo. Não podemos saber o que vai acontecer, me parece muito difícil haver dupla candidatura de direita para o segundo turno, mas é plenamente possível que a catástrofe Milei se sobreponha, caso o governo prossiga em seu sono profundo e não compreenda os sintomas de uma população empobrecida e abandonada.