31 dezembro 2016

Terapia de choque e lawfare




O que a "oposição moderada" síria, financiada por interesses externos, produziu em Alepo nestes cinco anos de guerra. Algo se desprende nessas imagens, a impossibilidade de acreditar em "rebeldes" preocupados com os destinos da nação síria. Tamanha destruição só poderia ser concebida em uma ação voltada para a destruição, por grupos mercenários muito bem armados.

É como se a tal "primavera" devesse se estabelecer a todo custo, guiado por um conjunto difuso de milicianos a serviço de diversas crenças e senhores, orientados por uma narrativa que propunha a democracia tal como idealizam as potências centrais do capitalismo. E uma vez diante de insuperável resistência, a única oferta disponível fosse a ruína como castigo merecido.

Em outras palavras: é imprescindível questionar o que se convenciona chamar de 'primavera árabe', esse influxo de destruição continuada onde nações como Síria, Líbia e atualmente o Iêmen, são deliberadamente devastadas em sua estrutura sócio-política-econômica, com terríveis efeitos no longo processo histórico e cultural. Tudo para que sejam reconfiguradas segundos a terapia de choque do capitalismo.

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O sentido ideológico dessa destruição física da Síria, cuja resistência ao terrorismo armado aprofunda o cenário de desconsolo, encontra similaridade nas transformações que ocorrem no último ano tanto no Brasil como na Argentina. Tomo em especial o caso do Brasil, onde a conspirata iniciada com o rito do golpe institucional se prolonga com efeitos em diversos setores de nossa sociedade.

Os interesses geopolíticos estadunidenses encontram guarida em instituições internas, como o ministério público, a imprensa corporativa, a Fiesp e os bancos, e no Congresso, ou seja, respectivamente, o poder jurídico, comunicacional, econômico-financeiro e político. Em fina articulação, colocaram um governo eleito democraticamente abandonado na sarjeta e agora procedem as mudanças estruturais.

Operam segundo o lawfare onde, atacando os adversários do sistema, se promove o desmonte do Estado social, submetido a uma onda de fortes privatizações. Em um primeiro momento e também posteriormente, se tem a impressão de que atores públicos assumem o papel de agentes da destruição, formulando propostas - não projetos - de descaracterização da carta magna, eliminando direitos sociais e instaurando privilégios cartoriais.

As expectativas são nebulosas, o que não elimina a disposição para o enfrentamento político. Ou seja, à sociedade civil não bastará apenas estar atenta aos acontecimentos, mas agir de modo decisivo contra esse golpismo disseminado, que inserindo-se nas frestas da ignorância política, promete nos fazer recuar em nosso Estado democrático de direito décadas a fio.

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Esta é a quingentésima postagem deste blog, uma saborosa conquista! Não tinha o propósito de que viesse a lume justamente no último dia de 2016, sabia que seria em algum momento de dezembro, não hoje. Seja como for, considero importante lembrar alguns temas que, desde o início, estiveram presentes neste espaço de reflexão: bem-estar social, luta política, ação cultural, mídia democrática, mídia golpista, indignação.

O desenrolar dos acontecimentos deste ano, em especial os do segundo semestre, fizeram com que retomasse mais regularmente este espaço, ainda que para registrar umas poucas linhas de inquietação. Termino o ano estimulado em prosseguir por aqui, escrevendo da maneira que for sobre essas inquietações, que cada vez mais ganham ares de indignação combativa e menos de fria reflexão.

Um ótimo Ano 2017 a todos!


17 dezembro 2016

As dimensões do inusitado



Acabo de concluir um texto que me trouxe muito prazer em escrever, que exigiu pelo menos três meses de pesquisas e escrituras, As dimensões do inusitado - do maravilhoso barroco ao maravilhoso encantado*, e que deverá fazer parte do livro a ser publicado pelo grupo de pesquisa Mnemon, sobre cosplay e outras teatralidades juvenis, organizado pela Mônica Nunes.

O artigo divide-se em duas partes, a primeira discute a narrativa latino-americana como elemento indispensável para a compreensão da história de Nuestra Pátria e do presente como projeto para o futuro, tomando por base a cosmogonia barroca do realismo maravilhoso de Carpentier.

Na segunda parte, destaco o maravilhoso encantado proporcionado pela leitura e representação de Tolkien, a partir das etnografias que o grupo fez junto a eventos revivalistas (vitorianos), medievalistas e retro-futuristas (steamers). Se na primeira parte temos a magia mobilizada para a transformação política, na segunda temos a magia como entretenimento.

No final, a despeito do grande esforço em construir esse painel fragmentado, senti especial prazer em destacar um pensamento tão envolvente que começa em nossa literatura latino-americana e se projeta nos jovens secundaristas, como herdeiros dessa pulsão telúrica fomentada pelo nosso barroco, além de retomar as falas dos jovens que se deliciam com a recriação estética e comportamental na prática das culturas midiatizadas, como os steampunks e os medievalistas.

Abaixo, apresento um pequeno trecho do trabalho. 

(...)
A eleição criativa, plena de simbiose e mestiçagem, fende os entraves impostos pela submissão do sujeito colonizado e possibilita a inserção no tempo mítico, “o prazer do gozo intenso, diferenciado, que rompe com o tempo cronológico e previsível de cada dia, e pelo encontro com outros ‘encantados’ que também fogem da solidão” (PAZ, 2006: p. 190). O relato da cosmogonia latino-americana que se reconfigura desde os primórdios da conquista ibérica ganha seu ritmo, suas cores, seus pontos de vista e se fundem na narrativa do real maravilhoso, tão conectada com o insólito do cotidiano. A cosmogonia barroca apresenta-se menos como um corpo de doutrinas do que a própria condição para o relato maravilhoso, não se conter na mera apreensão dos códigos da memória, mas a partir da pulsão criadora, inventar os códigos do fantástico.

Nesse sentido, para Carpentier, a magia vivenciada em cada canto e em cada momento de sua passagem no Haiti representavam a metonímia do continente americano, consubstanciando um projeto literário onde o gesto político promove uma qualidade essencialista que engloba todo o continente, definida pela fé e pelo milagre. No prefácio de sua novela “O Reino deste Mundo”, Carpentier faz uma breve definição do real maravilhoso enquanto narrativa necessariamente ungida “por toda uma mitologia, acompanhada de hinos mágicos, conservados por todo um povo (...)” e dessa forma, nada mais natural que toda a intensidade do real maravilhoso se manifestasse em sua visita ao Haiti. Em outras palavras, “o artista que não tem a mesma fé que alimenta os habitantes da América Latina, que não crê no milagre e na magia, não poderá captar a complexa realidade do continente, nem seu inesgotável caudal de mitologias” (SOLDÁN, 2008: p. 34).

Essa fé, essa magia perpassam as fecundas mestiçagens que dão a cor, a beleza, a intensidade do relato maravilhoso, que perpassam por exemplo as crônicas testemunhais da opressão colonial de Huamán Poma[1], ou o diário sobre o massacre dos jagunços de Canudos descrito por Euclides da Cunha, cujo relato da resistência sertaneja mobiliza o respeito do autor, “Sejamos justos – há alguma coisa de grande e solene nessa coragem estoica e incoercível, no heroísmo soberano e forte dos nossos rudes patrícios transviados e cada vez mais acredito que a mais bela vitória, a conquista real consistirá no incorporá-los, amanhã, em breve, definitivamente, à nossa existência política” (CUNHA, 2013, p.108).
(...)



[1] Conforme Carlos Araníbar, Huamán Poma foi um contestador e andarilho filho dos Andes, que viveu no século XVI e expressava os males da invasão espanhola em imagens e palavras, “emparelha texto-figura e como cara e coroa de uma velha medalha, nos oferece duas versões paralelas: desenhos para o analfabeto, letras para quem sabe ler” (ARANÍBAR, 2015, p. 9).
* N.A. - O texto foi renomeado na revisão gráfica e ficou De Carpentier a Tolkien: do maravilhoso barroco ao maravilhoso encantado.


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Também ontem, em minha página do facebook, republiquei um trecho de Pedro Páramo, depois de quatro anos. Tinha acabado de fazer a leitura, quando, ainda tomado pela beleza do texto, destaquei um pequeno trecho que reproduzo abaixo.

"E sua alma? Onde você acha que ela foi?
Deve estar vagando pela terra como tantas outras, procurando viventes que rezem por ela. Talvez me odeie pelos maus tratos que lhe dei, mas isso não me preocupa mais. Descansei do vício dos seus remorsos. Ela me amargurava até o pouco que eu comia e tornava as minhas noites insuportáveis; enchendo-as de pensamentos inquietos, com figuras de condenados e outras coisas assim. Quando me sentei para morrer, ela implorou que eu me levantasse e continuasse arrastando a vida, como se ainda esperasse um milagre que me limpasse das culpas. Não fiz nem sequer uma tentativa: 'Aqui termina o caminho', disse ela. 'Já não tenho forças para mais'. E abri a boca para que fosse embora. E ela foi. Senti quando caiu nas minhas mãos o filete de sangue com que estava amarrada ao meu coração".

(Pedro Páramo, de Juan Rulfo)