18 julho 2014

Escucha Chile


Uma deliciosa lembrança de meus tempos de rádio-escuta, o programa Escucha Chile, que recuperei inesperadamente em meio às minhas consultas no Youtube. Ele era transmitido direto da rádio Moscou, ao longo dos anos 1970 e 1980, e eu sintonizava em meu rádio de ondas curtas com regularidade, no final das noites, no correr de 1978. Foi uma emoção reconhecer a melodia inicial e em seguida o timbre de José Miguel Varas, que como a transmissão aqui postada, permanecia longamente com os informes políticos do Chile. 

O que me seduzia nestas transmissões era a audição incerta, originária de um lugar (Moscou) tão distante e naquela época, pouco acessível. O toque sonoro do início, que agora retomo, era um traço simbólico desse tempo-lugar misteriosos. As ondas iam e vinham, aprofundando o tom dramático da audição e me recordo que por intermédio do programa consegui estabelecer um fugaz contato com uma família de ouvintes, na cidade de Chañaral, que se limitou a umas poucas trocas de cartas.

Outro aspecto de meu interesse eram as informações em tese proibidas, que revelavam uma infinidade de detalhes as quais eu ignorava, sobre um governo golpista, já que o clamor das vozes democráticas não nos alcançava. Em 1978 eu não passava de um jovem ingênuo sobre as questões políticas, não havia tomado uma posição sobre o golpe de 11 de setembro, o que ocorreria de modo contundente nos anos subsequentes, esclarecido pelos ares da anistia e da abertura política. Assim, ouvir o programa alimentava minha curiosidade acerca de um imaginário que só o rádio nos proporciona. 

Permanecia paralisado sentindo a força argumentativa que a locução exalava e, paradoxalmente, sua completa impotência. De algum modo me sensibilizava a abundante quantidade e qualidade de informações, destinadas a mobilizar a resistência cívica. Ainda hoje me pergunto qual o alcance daquelas transmissões, qual o legado daquelas vozes em serena modulação, que se propagavam eletromagneticamente com um objetivo específico. Em meu íntimo, penso que ao menos preservaram a chama da liberdade em muitos corações.

          

16 julho 2014

Ivan Junqueira


Ivan Junqueira faria 80 anos em novembro e de sua obra muito pouco ouvi falar e nada conhecia. Apenas com sua morte procurei conhecer um pouco mais do seu percurso como crítico literário e poeta. Sua fala, que pude acompanhar, reproduzida em sua homenagem, fluía serena e atenta, como os versos de suas poesias. Impressionou-me a oposições em perfeita harmonia, a severidade para com o cenário da poesia nacional em contraposição com a delicadeza de seus argumentos, bordada não só de cuidado no expressar escorreito, mas também filtrada por um fino olhar poético. 

E como não poderia deixar de ser, alcançou-me o valor e a consistência da sua obra poética. Por ele, nos chegaram as traduções criteriosas de Baudelaire e Eliot. Nunca, como disse, havia me aproximado de sua poesia e agora, ainda que um pouco tardiamente, começo a apreciar o frescor de sua arquitetura sutil e elegante. Estive uma vez, há seis ou sete anos, na Academia Brasileira de Letras, no Rio, com a preocupação de visitar um imortal menor, em função de um prêmio literário não recebido. Pura perda de tempo. Poderia ter me dedicado a outro, de obra mais nobre e consistente. Poderia ter sido Ivan, e no lugar da lamúria, haveria a lembrança de um inesquecível encontro.

Transcrevo abaixo dois poemas de Ivan Junqueira.

...

FLOR AMARELA

Atrás daquela montanha 
tem uma flor amarela;
dentro da flor amarela
o menino que você era.
Porém, se atrás daquela
montanha não houver
a tal flor amarela,
o importante é acreditar
que atrás de outra montanha
tenha uma flor amarela
como o menino que você era
guardado dentro dela.

TALVEZ O VENTO SAIBA

Talvez o vento saiba dos meus passos,
das sendas que os meus pés já não abordam,
das ondas cujas cristas não transbordam
senão o sal que escorre dos meus braços.
As sereias que ouvi não mais acordam
à cálida pressão dos meus abraços,
e o que a infância teceu entre sargaços
as agulhas do tempo já não bordam.
Só vejo sobre a areia vagos traços
de tudo o que meus olhos mal recordam
e os dentes, por inúteis, não concordam
sequer em mastigar como bagaços.
Talvez se lembre o vento desses laços
que a dura mão de Deus fez em pedaços.


06 julho 2014

Contemplação ao alvorecer


Primeiro a voz feminina alertando alguém para soltá-la, junto a um alarido intenso de outras vozes, também o automóvel passando com o som de uma música minimalista, alto o suficiente para me despertar e alimentar o desejo, ainda sob a madrugada escura, de retomar o trabalho. Tal como uma troupe felliniana que atravessa o deserto em meio aos seus destemperos, acabaram por desaparecer e o relativo silêncio voltou a reinar. Com a possível condenação dos incompetentes gestores hídricos tucanos, a água que se faz escassa, tomei outro banho e coloco-me a postos diante do computador para prosseguir. Fico por aqui, querida, ao longo da jornada que não contará com jogo do Brasil e tampouco Copa a distrair a concentração. Sobressaem os saborosos mistérios das articulações sociais dos cosplays e dos poetas periféricos, o corpo performático que se insinua e ganha vida em seus respectivos movimentos. Há algo de felliniano nestes encontros coloridos, inebriantes, mas também de camusiano na soturna elaboração pessoal de cada participante e então me submeto à conjunção dos imaginários, agora os mágicos alentos de Cortázar, páginas de paisagens que se sucedem, que se levantam hipotéticas ao sabor do puro ensejo, a luz do mar que penetra a janela e nos confunde com as brumas misteriosas de cada luar, o chiado metálico dos bondes com animados foliões a avançar pela avenida descortinando os primeiros matizes da aurora, o olhar peregrino dos bondosos viajantes que aportam no cais, a calma expectativa em uma cadeira de balanço, deixando-nos um pouco mais sonhadores e felizes...