28 março 2009

Cortázar



"Mas la poesía es canto, alabanza. La ansiedad de ser surge confundida en un verso que celebra, que explica líricamente. (...) La música verbal es acto catártico por el cual la metáfora, la imagen (flecha lanzada al ente que mienta, y que cumple simultáneamente el retorno de ese viaje intemporal e inespacial) se libera de toda referencia significativa para no aludir y no asumir sino la esencia de sus objetos. (...)"

(Fragmento de Para una poética, Obra Crítica 2)



Chamas do preconceito



Em Chamas da Vingança (Man on fire), Denzel Washington faz o papel de um vingador valente, que extermina uma rede de sequestradores no México. Pobre Denzel, ainda me recordo de sua exuberante atuação como Steve Biko e aos poucos vejo-o arrastando-se para a vala-comum dos mortais. Uma narrativa ágil, enxuta, insossa e explosiva como todo descarte fílmico da pós-modernidade, que revelou duas coisas: a primeira, uma profusão de impactos que mais cansam do que criam tensão e suspense; e a segunda, a visão míope que nossos brothers do norte têm de nuestra realidad, visão que persiste preconceituosa. Em meio à corrupção e incompetência da polícia mexicana, desponta o caos urbano da cidade do México, aprofundada em seus bolsões de riqueza e pobreza, sem que haja um diálogo inteligente sobre essa desigualdade. Ao contrário, o feio e miserável é perigoso, o bonito é atraente. E o mestiço, suspeito, quando não culpado. Isso ocorre na família protagonista da história: a filhinha e a mãe, loiras insuspeitas, beleza que segue o melhor padrão publicitário, amáveis e sensíveis; e o pai, um tipo mestiço, de comportamento inseguro, atormentado pelo crime cometido (claro, ele tinha de estar envolvido em um crime). O bem e o mal dentro da mesma família.

O olhar tacanho sobre o que existe abaixo do rio Grande não atrapalha a indústria do entretenimento, ao contrário, a miséria latina costuma ser um tema divertido (ou no caso, um filão mercadológico). Além da rapina da nossa auto-estima, nossos brothers nos entretêm acreditando-nos como idiotas dominados pelo mal, aprofundando o abismo entre nossa essência e sua representação. É nesse ambiente que o segurança-militar Denzel surge como solução narrativa, disparando tudo o que a indústria armamentista dispõe a serviço do bem. A lei é jogada no lixo, pois o vingador precisa agir e do lado de cá da fronteira tudo é permitido. Perpassa na narrativa a prevalência de uma moral irredutível, vencedora, impondo-se sobre uma realidade tosca, a ser resgatada de suas mazelas culturais e de sua essência criminosa...

Podemos entender, a partir dos filmes estadunidenses desse tipo, o que foi a era Bush. Sua paranóia pela segurança da civilização eleita refletiu a ignorância que essa mesma civilização tem de nós e do resto do mundo, de tal modo que se torna mais fácil considerar o diferente como o inimigo. Na esteira do que dizia Bush, “Faremos o que for necessário para preservarmos nossos interesses”, a personagem de Denzel não deixa por menos e afirma que “Matarei todos os que me perseguem” e a velha cantilena de identificar e destruir o mal se reproduz. As coisas se encaixam na medida em que nosotros seguimos absorvidos por uma espécie de tolerância patética, enquanto a cultura hegemônica se apropria de nossas representações, de nossa dor e sofrimento para fazer negócios e, claro, proporcionar diversão.


23 março 2009

O acordo



Pois foi assim que a coisa terminou, em um belo acordo. Os representantes do Governo chegaram pela manhã e se dirigiram à cela principal do presídio, onde aguardavam os representantes da facção criminosa Poder do Comando Central. Após rápidos cumprimentos, o chefe da facção deu uma aspirada mais forte na bagana que fumava e deu início às negociações. Arrastaram as cadeiras para junto da televisão, que serviria de mesa improvisada e Cabeça de Cavalo pediu a todos que se retirassem, que ficasse ele e José Manuel, conhecido entre os detidos por Zé Mané, para os detalhes da negociação.

Proposta aceita, José Manuel abriu sua pasta e colocou os papéis sobre a mesa de 24 polegadas. Cabeça de Cavalo olhou para a testa de José Manuel, deu outra longa tragada e falou pausadamente, empurrando a papelada para o chão, Sem papéis, vamos acertar as coisas no papo reto, e soltou uma saborosa baforada nas fuças do interlocutor, Ou assim ou pode voltar de onde veio...

José Manuel sentiu o pescoço estrangular sob o nó da gravata. Quis ganhar tempo, afinal era sua especialidade adquirida em anos de vivência na administração pública, enrolar até que as coisas se acomodassem na mesma. Olhou de soslaio, para a porta da cela, lá estava o fiel Diegão, pronto para referendar qualquer sinal do chefe. Recolheu os papéis enfiando-os de volta na maleta. Tem duas coisas aí que não dá pra acertar, balbuciou com certa confiança, disposto a renegociar o acordo selado, estufando o peito, mas cometendo o deslize de expressar um sobrolho de incerteza. Cabeça de Cavalo não perdeu de imediato a paciência, mas moveu o tronco na direção de Zé Mané e, catando-o com vigor pela gravata, puxou-o para bem perto das fuças. Não tem que propor nada, é o que é, ou faz do nosso jeitinho ou assume a merda que vai dar!... 

Ao terminar sua frase, pronunciada palavra por palavra, largou Zé Mané e com um meneio de cabeça, indicou para Diegão chamar a guarda. Três policiais assomaram apressados à porta da cela e Zé Mané, arrumando a gravata e o colarinho, ensaiou um derradeiro comentário, que foi esmagado no nascedouro por Cabeça de Cavalo. Com a mão, fez o gesto de um revolver e com a ponta do dedo indicador contornou no ar o corpo do político. Sorriu diante da perplexidade da lei ali representada e afastou-se, agora reproduzindo um celular, Por enquanto estamos entendidos, seguimos em contato!

Zé Mané retirou-se com sua guarda, preservando a altivez de um lacaio e silencioso como um burocrata do terceiro escalão. Encerrava-se sem mais nem menos a tratativa que a opinião pública jamais teria conhecimento em suas pérfidas nuanças.


21 março 2009

A condição humana



O longo corredor. Tive diante de mim o espaço longilíneo, ascético, insondável. Meus primeiros passos em sua direção soaram como instantes de uma longa condenação, a entrada em uma masmorra moderna, exilada do mundo. O longo corredor à minha espreita, escancarado, impondo-se como desafio. Nada tinha além dos meus passos e uma súbita impressão de que não regressaria por aquele caminho. Atenderia a um chamado, alguém que me solicitava, lá, na outra extremidade do corredor. O que fiz foi levantar-me do meu posto, olhar para a sala agitada naquele horário da tarde e dirigir-me à porta, passando pelo companheiro que me anunciara a presença inesperada. Deixei os demais com a dolorosa sensação na alma. E ter de enfrentar aquele corredor, que nunca me parecera tão abstruso, ecoando meus passos como se resistisse a eles, como se os tornasse ínfimos, distendendo o tempo e me apartando do destino. Um corredor que nunca se mostrara tão impiedoso, como se conjurasse com meus próprios rumores para protelar uma saída. Rumores que agigantavam a cada passo com seu ruído incômodo, acalentando fantasmas improváveis, o inequívoco desejo de não chegar, de aceitar a protelação. Senti-me amortecido por uma descompressão em que formas e conteúdos traduziam o sentido do nada. Um espaço que resultara da inflexão das minhas escolhas, tornando-me senhor de minha própria vertigem, sem direito a escapatória.

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19 março 2009

Futebol em tempos de ditadura

Eliminatórias da Copa do México, 1969

Eu era moleque e gostava de futebol. Meu pai gostava de nos abastecer de jornais e revistas, de onde eu me alimentava das imagens durante horas, mesmo dias. Não tínhamos a eficiência pós-moderna da televisão de hoje, da abundância de lances, por três, quatro ângulos diferentes, das narrações alienantes (mas isso é tema para outro post) e das reportagens sem imaginação... Bem, tínhamos imagens, e boas imagens. Falo hoje de uma que exerceu tamanha influência em mim, que quando jogava bola com os amiguinhos, procurava reproduzir o movimento do Tostão, aquele maravilhoso centroavante que tivemos no final dos anos 1960 e da Copa do México (a essa altura já não tão magnífico). É uma foto que completa quarenta anos e que a reproduzo de memória.

Como reproduzi-la com palavras? Primeiro, que o fotógrafo estava no lugar certo e fez o clic no tempo exato, mereceu ter sua obra estampada em página dupla da Fatos & Fotos. Estava posicionado bem atrás do gol colombiano, defendido pelo goleiro Largacha. Tomo seu ponto de vista: em primeiro plano, as redes do estádio El Campim e a bola com gomos pretos e brancos congelada a meia altura, a caminho delas. Mais adiante, na entrada da pequena área, o goleiro Largacha estendido ao solo, vencido, olhando desesperado para trás, para a bola que entra. Sobre ele, em um salto acrobático para evitar o choque, aí o punctum da imagem, um Tostão satisfeito, que acaba de tocar a bola para as redes. 


Ao seu lado, direito, esquerdo, não me recordo, um Jairzinho em movimento, olhando igualmente feliz para a bola que entra. Um pouco mais adiante, já na entrada da grande área, pelo lado direito, uma barreira de jogadores colombianos que se desfaz após a bola ter passado por eles e se chocado no peitoril de Largacha, que não pode encaixá-la, permitindo o toque final de Tostão, que já está em pleno voo. Os jogadores colombianos, com suas camisas e meias escuras (quais seriam as cores?), olham entre expectantes e desconsolados, contrastando com os jogadores brasileiros. Mais adiante, quase que encoberto pela barreira que se desfaz, onze jardas para ser mais preciso, um Edu esfuziante inclina a cabeça a tempo de ver o desfecho de seu chute portentoso, defendido parcialmente por Largacha e que redunda no desvio apurado de Tostão, que salta. Edu sorri, como seus companheiros, seus dentes brancos em belo contraste com a tez negra. Pelé, curiosamente, não aparece.

Edu é o último a se distinguir na foto. Para além, temos o negrume não só da noite, mas principalmente ocasionado pelas condições técnicas da época. As imagens estáticas dos jogos noturnos tinham um alcance limitado, de modo a acrescentar mais dramaticidade a uma boa foto. Esta, além de esteticamente bela, correu o mundo pela sua importância: foi o primeiro gol da seleção brasileira, que terminaria invicta as eliminatórias e a Copa do México, doze jogos, doze vitórias! Daí em diante, muita coisa aconteceria. 

Costa e Silva, o ditador de plantão, morreria poucas semanas depois; um algoz da mesma estirpe, Médici, assumiria para dar continuidade ao que um jornal paulista denominou recentemente de ditabranda; Ditão, zagueiro corintiano, acertaria uma bolada no olho de Tostão, deslocando sua retina e quase tirando-o da Copa; o AI-5 e as torturas prosseguiriam; o mestre João Saldanha seria demitido do comando técnico pouco antes da Copa, tornando-se o grande comentarista de nossa época; mais mortes aconteceriam nos porões do regime nefasto e eu, bem, moleque, tentando repetir o pulo acrobático de Tostão a cada gol marcado.


18 março 2009

Mulay Idriss



Uma vez na estrada, os passageiros animaram-se na conversa. Havia no meio deles um mufti vestindo um kaftan cinza, que aos poucos assumiu as atenções. Tinha o rosto bonachão, de homem que aliava sem esforço a teoria dos estudos com a prática da vivência, os demais o ouviam serenamente. Falava árabe, dava-me prazer ouvi-lo em seus gestos respeitosos, embora o calor estivesse abrasador e todos suássemos em bicas. Sentia-me um pouco deslocado no meio daquela conversação, mas de modo algum ignorado, talvez por respeitarem um estrangeiro em sua peregrinação solitária a Mulay Idriss. Próximo à cidade sagrada, o mufti dirigiu-me a palavra em seu francês escorreito, com leve acento árabe, perguntando sobre o motivo de minha viagem ao Marrocos. Respondi que iria até os contrafortes de Ouarzazate, ao alcance do deserto, e ele sorriu. Queria indagá-lo sobre o islã, mas o homem voltou-se para outro passageiro, como se fosse seu papel contemplar a cada um com sua atenção.

Avançávamos por uma pista sinuosa, que recortava um relevo de morros suaves e coberto por vegetação rala, que se sobrepunha melancolicamente. O mufti então arguiu para todos, A terra é fértil, é preciso criar a oportunidade para o desenvolvimento agrícola... Não foi à toa que os romanos vieram para cá há dois mil anos... Não eram palavras muito sábias, mas o tom ponderado de sua fala nos acalentava o espírito. Pensei com meus botões como seria Mulay Idriss e o que poderia ser os restos romanos de Volubilis. Há muito que era fascinado pelas ruínas, mas nunca antes ouvira da cidade sagrada dos muçulmanos, até me informarem adequadamente em Meknés sobre a rota mais correta. Tinha a expectativa de encontrar uma pequena cidade italiana da Toscana, encravada na montanha, com ruelas e caminhos acidentados, um comércio vigoroso, tendo por fundo a rica arquitetura islâmica. O que vi me trouxe de volta à realidade urbanística marroquina: uma cidade pobre, enigmática, com suas cores densas ao cair da tarde e seus habitantes circulando em torno de suas singelas tarefas, despreocupados com os movimentos do forasteiro extemporâneo.

Não foi difícil incorporar-me ao espaço urbano da cidade e acompanhar alguns aspectos de sua vida cotidiana.




15 março 2009

Blanca Varela



NADIE NOS DICE
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Nadie nos dice como
voltear la cara contra la pared
y
morirnos sencillamente
así como lo hicieron el gato
o el perro de la casa
o el elefante
que caminó en pos de sua agonia
como quien va
a uma impostergable ceremonia
batiendo orejas
al compás
del cadencioso resuello
de su trompa
solo en el reino animal
hay ejemplares de tal
comportamiento
cambiar el paso
acercarse
y oler lo ya vivido
y dar la vuelta
sencillamente
dar la vuelta



14 março 2009

É... (parte II)


Salvo o noticiário da grande mídia e sua miserabilidade analítica, que não consegue escapar do padrão neoliberal de observação da crise - bendita crise, amada crise, explorada crise - desvelamos uma outra realidade em curso.
Ponderemos sobre um universo distinto de análises, apresentadas de modo sério, preocupadas com a verdade sobre o tema:
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"Demorou, mas começou a ser levantado o pesado manto que ainda encobre o imenso fracasso dos economistas neoclássicos (neoliberais, para os íntimos), depois de pelo menos duas décadas e meia de hegemonia, no campo do pensamento econômico. No debate intramuros, que agora começa a chegar ao mundo dos mortais, ainda há divergências em relação à culpa das teorias econômicas vigentes, no cartório da crise. Mas não há divergências – ou pelo menos elas são bem menores – sobre a parte que cabe no desastre a um certo tipo dominante de economista (...).

(...) Espanta observar que, no Brasil, aqueles mesmos que ajudaram a disseminar a visão estreita e arrogante que levou ao atual desastre econômico continuam ocupando espaço privilegiado na mídia. Continuam lá, como se nada tivesse acontecido, arrotando opiniões definitivas sobre a política econômica que o País deve seguir. E fazendo previsões irresponsáveis, com base nos mesmos modelos - modelos que pretendem vender rigor científico, mas não passam de ideologia barata. Parece que o retumbante fracasso das receitas de política econômica baseadas nos “mercados eficientes” não é com eles.
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(José Paulo Kupfer em seu blog)
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"Crise econômica ou Armagedon? Após o IBGE ter divulgado uma queda de 3,6% no crescimento da economia brasileira no último trimestre de 2008, os editores de primeira página de O Globo e da Folha de São Paulo não hesitaram em recorrer, na quarta-feira, 11/3, às habituais formas de terrorismo editorial. A capa do diário carioca ostentava:" Indústria desaba. Consumo cai e já se teme 2009 com recessão". O jornal paulista não ficou atrás:" Queda do PIB no Brasil é uma das piores do mundo".
O fato de a desaceleração ter ocorrido no último trimestre pareceu irrelevante para os editores da conhecida publicação da Barão de Limeira. Apoiando-se no que julgava ser potencialmente mais explosivo, omitiu um dado de capital importância para compreensão da realidade econômica do país: o PIB brasileiro, apesar da crise em escala planetária, apresentou o segundo maior crescimento mundial. Ou seja, outras manchetes seriam possíveis. Algo do gênero “Apesar da recessão global, PIB cresce 5,1%" Por que não? Por determinações da pequena política.
Que tipo de jornalismo está sendo feito no Brasil? Para quais interesses é direcionada sua estrutura narrativa? É o caso de reexaminar, como já sugeriu o jornalista Alberto Dines, os procedimentos e padrões para a formulação de títulos? Ou o claro viés ideológico clama por uma inflexão de outra natureza? O que está em xeque é a própria ética do fazer jornalístico (...)"
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(Gilson Caroni, Agência Carta Maior)
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"Após três meses de queda, vendas no varejo voltam a subir

Crescimento em janeiro chega a 1,4% com ajuste sazonal, segundo IBGE.
As vendas registradas pelo comércio varejista ao longo do mês de janeiro apresentaram crescimento de 1,4% ajustados sazonalmente, segundo dados divulgados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Ao mesmo tempo, a receita nominal apresentou um crescimento de apenas 2,1%.

Nas demais comparações, obtidas das séries sem ajuste, o volume de vendas acelerou 6% ante o mesmo período de 2008, acumulando um crescim,ento de 8,7% nos últimos 12 meses. Já a receita nominal subiu 11,9% e acumulou 14,7% de avanço nos últimos 12 meses (...)".


(Agência Dinheiro Vivo)


13 março 2009

Sobre o exílio



Chegam-me relatos dando conta que a casa de mamãe foi vendida. Minhas duas irmãs descrevem-me mais ou menos com as mesmas palavras o que foi a reunião para a venda do casarão. Por certo ainda não me dei conta por inteiro do assunto, isso não será nada fácil. Darei comida aos cães, me distrairei com as caminhadas, eis a melhor solução para o momento. Os fatos se sucedem com uma crueldade dolorosa: mal consigo recuperar-me da dura perda de mamãe e agora a perda definitiva do que restava da matéria de minha juventude. 

Aqui, neste meu rincão perdido, vejo as ruas cobertas por espessa camada de neve infinita, extraindo as cores exuberantes da primavera. Agora, sou refém desse branco autoritário que me confina. Penso um pouco naqueles dias felizes, vividos no amplo quintal de terra, as brincadeiras infindáveis com os amigos de escola, os fundos da casa, as parreiras de uvas rosadas tão bem conservadas por papai, meu quarto verde-claro onde dormia e sonhava sob o luar das noites claras, a sala escura passei a melhor tarde com Silvia, os livros de contabilidade apodrecendo nos espaços ocos sob a casa, as reuniões familiares nas festas de fim de ano... mais do que uma página virada, um livro encerrado. 

Ao menos venderam por um bom preço. Heloísa me diz que foi a melhor alternativa, uma vez que os custos da manutenção da casa imensa e vazia eram elevados. Lúcia não me fala de cifras, mas me relata a dor que sentiu ao ter de recolher alguns objetos, dentre eles uma pequena pintura de uma casa solitária, de janelas amarelas, plantada aos pés de uma montanha azulada. Não passava de um simples fragmento bucólico, que decorou pelos longos anos de minha juventude a parede da nossa sala. Antes de adormecer, era comum imaginar como seria viver naquele lugar singelo, isolado do mundo. Para uma criança, havia o desafio permanente em desvelar os segredos da montanha azul, como havia o lado intrigante do seu silêncio misterioso. Curioso não me lembrar de haver comentado com Lúcia, ou com quem fosse, o meu apego por esta pintura abandonada, pouco maior que a palma da mão, ponto de partida de frequentes rememorações neste meu exílio profundo.

Agora posso olhar a neve sem receios. Não será mais possível retornar a nossa casa, com papai, mamãe e minhas irmãs, mas o resgate da pequena paisagem me anima a aguardar o primeiro vislumbre da primavera, impedindo que a saudade se desvaneça em amargura.


10 março 2009

Le mani sulla città



O que me impressionou em Le mani sulla città foi a atualidade de seu tema e a contundência de sua narrativa. Francesco Rosi expõe de maneira implacável os meandros das negociatas envolvendo políticos e a construção civil, em detrimento do planejamento urbano. Mais do que isso, demonstra como os interesses entre as partes podem se fundir na ação de um político, Edoardo Nottola (o excelente Rod Steiger), que atua em nome de seus interesses como empresário imobiliário. Ele não se detém diante das dificuldades, contorna-as com frieza necessária, típica daqueles que sabem rodear a borda dos mais íngremes desfiladeiros, sem padecer de enjoos. Não se dobra aos sentimentos, movimenta-se como uma retroescavadeira demolindo edificações degradadas e as efêmeras resistências políticas.

Nottola é o estereótipo acabado do empresário imobiliário cuja fome não tem limites. Sua luta alimenta o instinto devorador que as oportunidades se lhe oferecem e isso é suficiente para colocá-lo em vantagem sobre seus adversários, ou até mesmo seus companheiros de partido. Sabe que são feitos de carne e osso, com sentimentos delineados por algum sentido ético na tomada das decisões, e é aí que ele se supera, jogando suas fichas com astúcia. 


Escrúpulos são exigidos aos políticos com sangue nas veias e um mínimo de responsabilidade junto ao seu eleitorado, não para Nottola. Ele ignora essas questões menores, transcendendo continuamente seus horizontes. É o que basta para arriscar o que for necessário para salvaguardar seus intentos ambiciosos. Entre uma e outra situação, a única evidência humana em seu semblante é o suor da tensão, que o coloca entre o fracasso momentâneo e a vitória na próxima esquina. A música de Piero Piccioni aprofunda o impacto da feiúra e da descontinuidade arquitetônica da cidade, sobretudo no início, quando a vemos do alto, em planos gerais tomados por helicóptero.

Seguramente Le mani sulla città sugestionou Luiz Sérgio Person - que o viu pouco antes de voltar da Itália para rodar seu estupendo São Paulo S/A - seja no delineamento de sua personagem central, Carlos (Walmor Chagas), também uma espécie de proto-fascista preso em seu individualismo; seja na presença onipresente da cidade ao se insinuar na narrativa como pano de fundo, como palco privilegiado, ou mesmo como personagem, tenebrosamente refletida nos vidros opacos, espectro resultante da impostura humana.


07 março 2009

O método do fracasso




Tomei o livro nas mãos, ao acaso, em meio a uma infinidade de opções similares e passei a averiguar a proposta do título, "Os cinco passos framboesa", redigido assim mesmo, em uma capa escura com a frutinha no meio. Gosto de, vez ou outra, me entreter com achados bizarros na área de marketing, pois sugerem como ser bem-sucedido no mercado, sem produzir qualquer resultado. São as pílulas inócuas do sistema, que ao menos divertem pelo desvario. 

Na última semana, antes desse Os cinco passos framboesa, tirei da prateleira e folheei um livro em que o consultor de ocasião - um desses estadunidenses que apodrecem ganhando dinheiro com palestras motivacionais - refazia a história de Esopo, aquela da corrida entre a tartaruga e a lebre. Relacionava a fábula com a importância da velocidade em nossos tempos, e dizia algo do tipo 'a tartaruga venceu porque a lebre não quis vencer...", tentando convencer sobre a importância de sermos cada vez mais velozes...

Descartei o livro quando li algo como "a velocidade é a grande solução para se aumentar a produtividade e obter melhores resultados...", mostrando que o século XXI é o século do jato e não do balão, que para sobreviver na era da velocidade seria imprescindível ser ágil, aerodinâmico e alinhado... Na verdade, eu tinha me cansado com o ritmo alucinante da leitura. Bem, e agora descobri esse achado sobre a framboesa, pobre framboesa. 

Em suma, são esses os cinco pontos: a) ela possui um sabor característico, é azedinha no início, suave e adocicado depois; b) por mais que seja confundida com a amora, ela é uma framboesa; c) embora delicada, de manejo complicado, fornece ótima rentabilidade; d) uma vez madura, ela fica vermelha, e por fim; e) ela fornece não só saborosas tortas, mas também deliciosas combinações de bebidas.

Até onde consegui ler, mais parecia um mestre-cuca falando de sua especialidade na cozinha, do que um profissional de negócios tentando me convencer das vantagens de ser um empregado-framboesa. Mas depois, ele de alguma forma tentou adaptar as cinco características como essenciais para o sucesso no mercado. Não avancei nessa parte, pois como no livro do coelho e da tartaruga, ele conseguiu o oposto de seu objetivo, desmotivando-me com a leitura. Fui até a orelha final do livro, lá estava a foto do sujeito, uma pera de gravata. 

De todo modo, fiz um esforço para imaginar o desdobramento dos cinco passos do ser framboesa e concluí que, em a) pode ser a importância da personalidade mutante, sempre suave e adocicada quando a circunstância exigir; em b) a importância de se mostrar diferente, ainda que em um ambiente de marmotas; em c) a importância de ser um idiota a serviço do patrão; em d) não faço a menor ideia; e finalmente, em e) a importância de se deixar ser esmagado e ter a consciência de que está servindo para alguma coisa.

Pensando em livros mirabolantes como esses, que atulham as prateleiras das principais livrarias, é que compreendo um pouco a razão do capitalismo liberal se liquefazer de modo ágil, aerodinâmico e alinhado... Quando métodos vendidos como redentores por um sistema produtivo não passam de mero embuste, é sinal de que o próprio sistema produtivo tornou-se um embuste.


04 março 2009

Sábato



(...) La creación sólo surge en la libertad y está estrechamente ligada al sentido de la responsabilidad, es el poder que vence al miedo. El hombre de la postmodernidad está encadenado a las comodidades que le procura la técnica, no se atreve a hundirse en experiencias hondas como el amor o la solidaridad. Pero paradójicamente, sólo se salvará si pone su vida en riesgo por el otro hombre, por su prójimo, o su vecino, o el chico abandonado en el frío de la calle (...)".

in La resistencia