28 fevereiro 2019

A racionalidade de resultados

Dia al-Azzawi, Masroor and His Beloved,1967  

O que mais se vê por aqui são esses homens de preto. Por um tempo eu os temi, depois passei a desprezá-los e por hoje, apenas constato que são apenas o que podem oferecer. Compõem uma categoria em expansão no capitalismo neoliberal, dedicada a competências nada específicas como intermediação de vendas, fluxos de caixa, consolidação das oportunidades financeiras, e cumprem de modo abnegado o papel que os constitui como míseros empreendedores. 

São adestrados para reproduzir técnicas vencedoras e designados a pequenas matilhas que agem motivadas pelas ofertas do mercado. No momento, desfrutam de um intervalo e merecida descontração. O que parece ser o chefe narra em alto e bom som suas aventuras por Las Vegas, nada que ultrapasse oitocentos dólares. São bolas de basquete, multas de voos não realizados, cremes de beleza, ingressos de beisebol. 

O segundo do grupo vez ou outra é acionado e corrobora as histórias do chefe puxando as gargalhadas. São viagens familiares, na hierarquia dessas engrenagens, há aquelas que desfrutam de prêmios, bônus, semanas de folga, e assim curtem os breves intervalos de sossego cumprindo outros comandos de suas funções no sistema. Os entretenimentos que desfrutam se encerram no escopo da voracidade sistêmica, a demanda de consumo apenas atende os deletérios desejos de se deliciar com o fetiche das pequenas mercadorias. 

Há uma tensão de fundo na narrativa, cumprem a programação da diversão internacional como se estivessem nas mesas de negócios, dedicados no arranjo das porcentagens de lucro. É uma sucessão verborrágica que paralisa aos demais, metidos em um silêncio cúmplice. Como ouvintes, devem imaginar com seus botões baratos que um dia poderão alcançar o mesmo patamar do controle do discurso, de também desfrutar e verbalizar os momentos de luxúria em shoppings de Miami. No momento, se limitam a sinalizar com um gesto de simpatia cada versão animada do chefe, emulando sorrisos mais do que subservientes. 

O riso tem um efeito poderoso, estimula o líder a prosseguir em suas narrativas ao tempo que repercute satisfação. Descartes verbais com o estatuto de ensinamento, como a firmar publicamente a humanização de quem comanda. Da experiência das perdas no cassino ao preconceito com o chofer mexicano, tudo emerge no discurso. 

Chega a vez da estratégia política, o chefe se entusiasma e avalia que logo um comando da CIA se infiltra, mete uma bala na cabeça de Maduro e desaparece. O sub contribui com alguma notícia a respeito, os outros acenam com o sorriso de aprovação. O riso nessas circunstâncias é a melhor demonstração de proximidade, removendo o apelo concorrencial indispensável no trabalho e expondo o lado do bem de suas funções de empreendedores ou seja lá o que for.

Cada descarte relatado significa um gesto autoritário a ser compreendido e posteriormente reproduzido como aprendizado. Por isso também a atenção dos subalternos, todo momento é tempo de valorizar modelos, seja na mesa de negócios, seja na mesa do café. Incorpora-se a racionalidade de resultados e na formatação dessa estrutura, são indispensáveis os momentos de descontração, ainda que contemplem seu oposto, a tolice ou desperdício sem fundamento. Talvez porque vivam submetidos a uma engrenagem cujo principal alimento é o descarte, antes mesmo da eficiência. 

Uma coisa é certa, as gargalhadas subalternas têm seu tempo de validade. Oportunidade para uma outra equipe disposta a novos sacrifícios, em nome da engrenagem que os aliena do verdadeiro sentido da vida.


26 fevereiro 2019

Ideologia da competição

 
Dia al Azzawi, Red Sky with birds, 1981

Cada vez menos possibilidades de arguir sobre o presente que vivemos, sucessão de descalabros morais e imbecilidades proferidas das pessoas que deveriam guardar a sensatez, o equilíbrio das palavras. Como se não bastasse o aluvião de besteiras, a vida no que denominamos Brasil segue por inércia, as instituições comandadas por gente que alimenta absoluto desprezo com a população. Não há notícia alvissareira, não surge um argumento de esperança, é só demolição, dos direitos civis, dos direitos trabalhistas, dos direitos à educação.

Por isso talvez, o relativo silêncio deste blog neste mês, que até aqui teve apenas uma postagem, pequena, distante da análise crítica da realidade. Cansaço? Desesperança? Penso que apenas a falta de proposições construtivas diante da escalada do imponderável. Agora essa besteira em oferecer ajuda humanitária à Venezuela, cavalo de troia da invasão comandada pelo Departamento de Estado e pela CIA. Ainda uma vez episódios de ataques virulentos ao direito de autogestão dos nossos povos. As cicatrizes das intervenções se acumulam em nossa experiência cultural e política, e pior do que isso, a desfaçatez com que cometem os atos de ingerência.

A Venezuela resiste, não sei por quanto tempo mais. Cercada, bloqueada, vilipendiada diariamente nas mídias hegemônicas, serão poucas as oportunidades em manter a dignidade e a autonomia. O império estadunidense ruge e impõe seu terror, sob a administração Trump, revelando os tempos de um modelo de capitalismo sem qualquer escrúpulo moral ou ético. É a vitória da subserviência do individualismo. E por aqui, submisso aos desígnios dos mercados, a impotência em acompanhar um desgoverno comandado por esse capitão de reserva, que não oferece a menor perspectiva de uma governabilidade construtiva. 

Assenta-se de maneira progressiva o direito à passividade, que propõe de modo generalizado apenas uma coisa, a aceitação dos dispositivos de disciplina da racionalidade neoliberal, nada mais que um sistema normativo como orientação disciplinada dos desejos individuais. Se este é o segredo do sucesso da ideologia da competição temos do ponto de vista humanista uma população que aprofunda sua alienação em face das sucessivas perdas dos direitos inalienáveis de cidadania. O caráter se forja não na virtude ético- moral da relação com o outro, mas na prática individualista do oportunismo competitivo.   

A consciência crítica é varrida de modo sistemático da vida cotidiana, de modo a não mais nos surpreendermos pela miserabilidade a que somos submetidos. Não encontro forças, ou melhor até, disposição para retomar o espírito da resistência que não seja a da literatura. Refugio-me aí para concatenar novas ideias, propor caminhos possíveis de luta, e não creio estar só nesse impasse político. Trata-se antes de uma espera, mais do que uma desistência. E no silêncio momentâneo, lamber as feridas, rechaçar o bizarro e preparar os esboços das análises necessárias.


16 fevereiro 2019

Uma janela em Berlim

Kantstrasse, Berlim, inverno de 2010 

A paisagem que usufruí de meu pequeno quarto, em Berlim. Na falta de qualquer outro compromisso, sentava-me diante da escrivaninha, reescrevia e imaginava a continuidade das narrativas de A Paixão Inútil, enquanto de tempos em tempos apreciava o silêncio da paisagem congelada. Concedia liberdade à imaginação de meus personagens, que por um momento desprendiam-se da concepção que lhes dava no papel para moverem-se livremente naquele pátio íngreme e ao mesmo tempo libertário. Foi assim que visualizei o simpático encontro entre os senhores Martinez e Virgílio, com seus pesados casacos, a caminho de seus apartamentos, e as irmãs Christine e Mellanie, elegantemente vestidas, de saída para um café nas imediações. Os quatro não desejavam nada mais do que a introspecção do inverno. Um encontro sob a neve da primeira manhã, onde foi possível apreciar a troca de cumprimentos, a conversa breve e a despedida, esta sim, acalorada e generosa.