27 setembro 2010

Cinismo e dissimulação




Não me deixo mais levar pelas oscilações tempestivas da mídia dominante, que neste mês, como em nenhum outro, uniu suas forças para dinamitar a candidatura Dilma, danem-se as consequências. Essa tipo de atitude desgasta e aborrece o espírito, além de nada acrescentar para a construção da análise crítica.

A preocupação da velha mídia passa longe de organizar uma contestação sustentável e propositiva, além de incorrer no erro de cumprir o papel de oposição ao governo, fiscalizando apenas um lado e praticamente poupando de qualquer exposição as forças com as quais compõe o jogo político.

Me faz lembrar que há muito não se vê uma crítica estrutural sobre o governo municipal e estadual, aqui em São Paulo; seus governantes passam incólumes, e quando é inevitável a postura mais acerbada como foco da matéria jornalística, ela é trabalhada como uma disfunção pontual da administração. Para exemplificar, veja como foi abordado o desabamento do metrô, ocorrido na gestão Serra. Muita ponderação e cuidado na maneira asséptica de relatar o fato, poupando os grandes responsáveis pela tragédia de uma investigação mais incisiva e duradoura.

A verdade, nesse caso, funcionou em nome da preservação de um governo simpático aos desígnios midiáticos. Nenhum órgão de imprensa interrogou o governo estadual (ou o municipal), cobrando-os em suas responsabilidades, nem tampouco houve um transbordamento para temas correlatos, com denúncias renovadas sobre pontos suspeitos no ocorrido. E não que fosse necessário, mas não se descambou para a desmoralização dos agentes envolvidos, como também o tom dos comentaristas não alcançou aquele tom jocoso e típico dos bobos da corte, que divertem sem nada acrescentar.

Quando o caso envolve o governo federal, o que temos à exaustão é uma atuação naturalmente agressiva, formulando-se suspeitas para posterior averiguação. Normalmente desvela-se um indício, que se desdobra em um conjunto sistemático de denúncias não-comprovadas (factóides) ou turbinadas fora de seu contexto, sustentada por um pool de veículos midiáticos, que se revezam nos golpes. Sobrepõem-se o tom calhorda e a insinuação supérflua, condenando logo de saída. Se houver algum crime, todos saberemos bem depois; caso contrário, a reparação, se ocorrer, será breve e discreta.

A sucessão de invectivas montadas para expor e condenar o governo federal, delimita um componente cínico (porque se assume como parte do jogo democrático...) e dissimulado (porque mascara seus perversos objetivos...) que tem caracterizado o discurso midiático. Para o cidadão comum, acompanhar essas incongruências revela-se um fardo extenuante, que o desestimula em relação ao debate político. O cidadão urbano moderno, com todas as disponibilidades tecnológicas para o acesso à informação, não tem o menor interesse em se contaminar com tanto rancor e ódio...

Esse tem sido o modelo de desinformação praticado não só por meios hegemônicos de comunicação brasileiros, mas também argentinos e venezuelanos, para ficar nos exemplos mais notáveis na América do Sul. O que aí se reproduz é o que há de mais sórdido nessa função: a cizânia social. Tais veículos midiáticos talvez se preocupem em informar, mas cultivando o sensacionalismo político e, sempre que possível, demarcando diferenças, no lugar de despertar, relevar, preservar os valores comuns. Longe de contribuir para o debate nacional, produzem o discurso do oportunismo individual, além de assentar ideologias que assegurem o privilégio de seus interesses.


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Agora, cá pra nós, terrível mesmo é essa tensão criada pela tal bala de prata, o golpe decisivo a ser desfechado pela mídia contra Dilma. Espera-se qualquer coisa, seja da lengalenga das pequenas acusações, fogo brando e constante, ao ataque brutal e inesperado, às vésperas das eleições...
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Não é a imaginação do convívio democrático e tolerante que estimula esse clima deletério, mas a insolência de quem usa e abusa do direito de editar, deturpando os fatos e tripudiando sobre a verdade...

Durma-se com um barulho desse!...



22 setembro 2010

Certezas ineludíveis



Interessante a parte final do depoimento do senhor B., essa coisa de apreciar de maneira recorrente o canto dos pássaros (será em decorrência da fartura proporcionada pela nova estação, que surge sempre florida e aromatizada?!...), não só à noite, sob a luz tremeluzente da praça esquecida, mas no outro dia, na cancha de tênis, ou no crepúsculo, no quintal da sua casa... Deixei-o experimentar a deriva a que se entregava, Tudo isso me parece tão significativo... e suspirou... mas não interrompeu a fala e com seu olhar brilhoso, completou, Agora encontro sentido para o canto laborioso, sempre próximo... Sim, agora ouço-os muito claramente, com o coração...

O senhor B. suspendeu o depoimento... dei-me conta de que falava de pássaros, enquanto avaliava suas conclusões mais íntimas... Do longo silêncio, sobreveio o suspiro insofismável, desses que escancaram a alma de par em par e nos revelam os sentimentos de uma decisão bem tomada...


20 setembro 2010

Tempo de mudanças



A mídia hegemônica sucumbe em função de um jornalismo que não diferencia alhos de bugalhos. Ao contrário, para manter-se dominante no mercado, transforma o mundo em uma farsa espetaculosa, maçaroca que, ao contrário de poder, oferece perda de credibilidade.
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Quando falo em farsa espetaculosa, o objeto da notícia pode ser o terremoto do Haiti ou as eleições brasileiras de outubro. O terremoto do Haiti presta-se como notícia enquanto se sustenta como um drama vendável, onde as matérias perduram até arrancar uma derradeira dor de desconsolo. As eleições preservam-se como notícia enquanto puder se desdobrar de um fato, para um escândalo artificioso. A semelhança entre os dois temas é que eles desaparecem quando novos assuntos potencialmente explosivos tornam-se sedutoramente exploráveis.
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Assim, a mídia hegemônica distancia-se do verdadeiro jornalismo. E estruturada nas bases presentes, condena-se, pois não tem como resistir à inovação proporcionada pelas mídias sociais. Inovação cunhada em princípios que valorizam o conhecimento e a informação, que transforma o leitor de mero sujeito passivo, receptor tolerante das interpretações fechadas, em um agente participante, que propõe suas ideias e interage nos debates.
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O estilo neocom, bruto e autoritário, que desponta com o robustecimento do neoliberalismo, nos anos 1990, sucumbe, pois, diante da fascinante abertura democrática proposta pelas mídias eletrônicas. Rompe-se a hierarquia da produção de informação e conhecimento, assentando as trocas na horizontalidade dos direitos universais. A mentira não mais se sustenta!
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Para não perder espaço, a decadente mídia hegemônica não abre mão do espetáculo, que surgindo da dor ou da farsa, é explorado da mesma maneira. Sua base de sustentação se restringe cada vez mais a uma burguesia aristocrática, que também não consegue ver as transformações ao redor. Para ela, a derrota de Serra é uma catástrofe, com a qual não sabe lidar, nem tampouco explicar. Essa catástrofe expressa apenas o sentimento de que nada vai mudar ou as coisas só vão piorar, quietismos ou catastrofismos que evidenciam o desconsolo pelos desígnios da classe, completamente descolados do sentimento da nação...

A voz que manifestará esses sentimentos será a mídia hegemônica. Ela pautará os anseios e dissabores (aliás, como sempre o fez) da classe dominante, editando as pautas políticas a partir dos seus interesses em questão.
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É essa força e esse poder que a envelhecida mídia resiste em constatar que perdeu. Persistirá em sua luta obstinada (desvinculada da luta pelos interesses da nação) em dar voz aos eternos desígnios da burguesia aristocrática, sem que ambas consigam compreender as transformações sociais dos novos tempos. E juntas - a outrora mídia dominante mais a burguesia de monóculo - dadas as circunstâncias dos acontecimentos, aprofundarão o processo de fratura social.

Donde podemos compreender que a divisão social não é estimulada pelas políticas sociais de um governo popular, mas pela resistência de uma elite arcaica, que deseja ser o que não é mais possível e acreditar em um mundo que não mais existe.


14 setembro 2010

Alfredo




Há que se recordar o momento em que Victória adentrou o Café, em meio à sonoridade eflúvia que se desprendia nos mínimos detalhes do ambiente, as cadeiras arrastadas, os tilintares das taças, o murmúrio das conversações fugidias, entremeadas por olhares confessos, como este que absorveu a Alfredo. As notas do bandoneón sobrepunham-se, em sua cadência melancólica, como um fundo necessário para distinguir o ritual do encontro. O fog se elevava mais denso, bruma etérea que conduzia a uma dimensão de luzes fugidiças, das luminárias que configuravam uma aura embaciada... por um lado, e por mais outro, os garçons singravam elegantes, prestimosos, com as gravatas borboleta e uma seriedade conveniente, equilibrando suas bandejas cheias... Pois Alfredo só teve tempo de erguer-se, ao se dar conta que a mulher, a Victória que sequer conhecia, se aproximou envolta por seu olhar fulgente, que a penetrar as guardas de seu então distanciamento, indo atingir-lhe o coração! Não houve palavras, já próxima ela lhe estendeu a mão enluvada, e um sorriso adornou-lhe as faces rosadas. Mas os olhos, duas turquesas densas e cintilantes, esses refletiam mais do que mero brilho, formulavam a intensidade da alma, emoldurados por um outro tempo, que transbordavam o próprio querer... Não foi mais que um momento o transe, calados pela mútua expectativa. A verdade foi que, dissipado o transe revolto que os tomaram por um tempo indizível, se deixaram levar, como se o tango rememorasse seus corpos como parceiros de sempre, entregues aos caprichos da vida...

... e por sobre a mesa, o livro de Paul Valéry que tomava as atenções de Alfredo... É possível ler no parágrafo seguinte de onde parou a leitura,
(...) Quanto a mim, sinto estar seguro, de uma segurança de sonho, de que tu estás atrás de mim, com tudo o que está por vir, como num passado, como se uma coisa toda concluída e que não existe ainda... É por isso que meu coração é arrebatado... O livro que está diante de meus olhos é ilegível, e minha alma, sobre essas linhas às quais meus olhos se apegam sem esperança, aguarda o choque...



11 setembro 2010

Sobre a corrosão do caráter



Há um século, Georg Simmel escrevia sobre a presença do dinheiro na vida da metrópole, seu efeito desagregador na vida subjetiva do indivíduo, transformando-a em vida puramente objetiva. Em outras palavras, a vida cotidiana voltada para o crescimento do intelecto, produzindo um distanciamento espiritual, essa dolorosa ausência do equilíbrio corpo e mente, que nos abandona em permanente déficit emocional. Para Simmel, o dinheiro torna-se o denominador comum de todos os valores, e compreender essa racionalidade voltada para a realização dos desejos materiais seria suficiente para desvelarmos o descompasso do mundo pós-moderno.

Gosto de Simmel porque sua análise é premonitória: fala da economia monetária, do turbilhão da metrópole, das demandas crescentes, da prevalência do tempo do relógio, da fragilidade humana exposta pelo comportamento blasé, e sua conclusão sutil, a perda da vida subjetiva em nome da vida objetiva. Tudo muito didático, exposto como disse, há mais de cem anos (1903). Não é à toa que Bauman se utilizará de seus conceitos para erigir sua visão líquido-moderna, baseada nos temores pelas diferenças sociais insuperáveis (a segregação urbana desenhada em nome da segurança - ou da ausência dela).

Na última semana, dediquei-me a ampliar esse mal-estar social, discutindo um outro autor, Richard Sennett, menos influente que os dois anteriores, mas com interessante perspicácia em suas análises do comportamento. Em A corrosão do caráter, ele faz uma abordagem do nosso tempo, tomando como ponto de partida as nossas carências, geradas e aprofundadas pelo capitalismo de curto prazo. Dirá que a velocidade das mudanças eliminará o longo prazo na planificação das corporações, estimulando a força dos laços fracos, nada mais do que as formas passageiras de associação e, acrescento, frágeis e indiferentes (a terceirização dos serviços seria um bom exemplo, essa impessoalidade simmeliana que privilegia a produção), afetando diretamente a vida do indivíduo.

Pois nas palavras de Sennett, o capitalismo de curto prazo corrói o caráter... as qualidades que ligam os seres humanos uns aos outros... Não há como ser diferente nessa selva metropolitana, regida pelo relógio e pelas demandas crescentes. A vida objetiva desse ritmo sufocante nos aponta para sucessivas contradições, como a sustentabilidade em oposição à ganância; o sonho do lazer em oposição ao esgarçamento do horário de trabalho; a ética em oposição ao sucesso a qualquer preço... 

Mas a contradição mais contundente seria o contraponto entre os modos de ser que regem nossas vidas. Para Sennett, o comportamento que indica o sucesso no trabalho está em completa contradição com o modelo da vida familiar. Ou, em outras palavras, não é possível produzir uma educação consistente, utilizando-se das normas apregoadas pelo mercado; um filho demandará todas os cuidados (a longo prazo) que não estão contemplados na dinâmica acelerada de resultados do capitalismo.

A resultante disso: os valores da vida familiar (eu estenderia para a comunal) organizam-se em regras fixas, enquanto o mercado gira em torno de decisões alimentadas nas incertezas das circunstâncias. Dessa maneira, o comportamento ético está definitivamente excluído, acarretando a corrosão do caráter e, como consequência, a deriva do indivíduo, adernado, fragmentado, sem qualquer compaixão.

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E é certo que iríamos para além da corrosão do caráter, ao falarmos sobre a banalidade discursiva do oligopólio midiático deste país, que perdeu completamente a credibilidade para informar. Estou convencido (em grande parte, graças ao exemplar trabalho de informação das redes sociais) de que estas eleições sepultarão a maneira arrogante e oportunista desse jornalismo descomprometido com a verdade.

Nada mais vil e degradante, tudo em nome da candidatura Serra, que só faz naufragar, vertiginosamente. Candidatura que, já há um bom tempo, não se preocupa em expressar as propostas de sua plataforma política para a sociedade civil.


05 setembro 2010

Então vociferam!...



Chegamos ao momento decisivo, desses que mereceriam a atenção de Stefan Zweig para uma análise posterior dos acontecimentos. Enquanto, por um lado, temos a consolidação de uma candidatura (Dilma Rousseff), por outro, temos a progressiva diluição de outra (José Serra), é o que nos indicam todos os institutos de pesquisa. E o que seria para se tomar como uma consagração da democracia, a lídima escolha pela maioria de uma presidenta da república, justamente este fato torna-se um graveto atravessado na garganta da mídia hegemônica, ou da mídia dominante, ou do condomínio midiático, ou da velha mídia, como queiram.
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Temos visto a partir da história da quebra do sigilo fiscal, entronizada como a pauta única da política por estes veículos de comunicação ao longo da semana, a propagação de discursos condenatórios, expressando intolerância e desprezo. O que me chama a atenção é o tênue disfarce que oculta os verdadeiros sentimentos, em um jornalismo que não se cansa de produzir argumentos falaciosos. Desdobra-se o ato acusatório (que chamam de notícia) ao sabor das interpretações do momento, veneno inoculado no tecido social em doses contidas, porém contínuas, sem o desejo de matar, mas de disseminar a peste (desinformação).
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O ataque é urdido de modo metódico, diverso, simultâneo (longos blocos nos telejornais, artigos nas revistas semanais, editoriais nos principais jornais, entrevistas nas rádios e programas de tevês a cabo), todos destacando a ilação perversa, o fato e seus responsáveis, o vazamento e a culpa do partido da candidata!... Tema monocórdio, insistente, água em fervura a fogo brando, condenando primeiro para depois promover as devidas investigações. Surge aqui e ali a acusação de que não há debate de ideias... santa hipocrisia!

Prevalece assim o jornalismo insidioso, produzido a mando de seus patrões! Em tempos da proliferação das mídias sociais, que surfa na evolução da tecnologia e proporciona amplos acessos aos diversos ângulos da informação, não é de se estranhar o fenecimento dessa velha mídia, que insiste em atuar como se detivesse por desígnio divino o poder da informação, produzindo a sua visão de mundo, sempre de acordo com seus interesses.

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Surge também, aqui e ali, a insinuação de que há cerceamento da liberdade... a democracia correndo riscos!... Há poucas semanas, a declaração da malfadada SIP (Sociedade interamericana de Imprensa) de que "Lula não pode ser chamado de democrático"... isso, com toda essa mídia corporativa falando e escrevendo o que quer! Não há, pois, cerceamento à liberdade de expressão e tampouco dos direitos do cidadão, como se deseja propagar. Como também não há crise nas instituições do estado. Não há nenhum risco à democracia brasileira, aliás, poucas vezes na história ela esteve tão robusta e promissora!
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Ocorre mais uma vez que a velha burguesia, corroborada em sua visão de mundo pela velha mídia, perde sua influência política, seu poder, e naturalmente, sua competência em aceitar o mundo em sua diversidade. "O povo não está apto a decidir", esgrimem os jornalistas absortos de sua função social, "e se dá por satisfeito com dinheiro no bolso"... O que dizer desse tipo de bobagem elaborada em um programa global?
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Esses avatares da informação descartam, assim, a capacidade de apreensão da realidade por parte das classes menos favorecidas, como se elas não soubessem discernir os acontecimentos, como se elas fossem incompetentes em tudo, exceto para servir! Os sábios da banalidade entendem que, se o povo participa e consome, trata-se de uma circunstância sem importância, que não deveria pesar na decisão política... santa ignorância!
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O neoliberalismo é a faceta mais inescrupulosa desse sistema excludente em que vivemos, e seus prebostes se aplicam em preservar os privilégios adquiridos por seus iguais. Toda a ampliação do bem-estar e da universalização dos direitos sociais serão vistos como uma distorção, e quando não com repulsa. É difícil, para os turistas desse mundo líquido-moderno, conviver com as diferenças, quanto mais, tolerar o exercício dos fundamentos da democracia.

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À burguesia mais privilegiada e autodenominada erudita, resta o direito de vociferar. Enquanto acompanha seu candidato despencar nas intenções de voto, expõe seu desencanto com o mundo, aprofundando seu desprezo pelo povo e por sua opção política. No dia-a-dia, nos colóquios entre iguais, viceja o ódio, que se lhe escapa pelos cantos das bocas macilentas e irradia pelos olhares rubros, inconsolados... Torna-se suscetível, de bom grado, a qualquer mudança abrupta no jogo político... Passa a abraçar silenciosa e covardemente a sugestão de golpismo, a ruptura vil do regime democrático, em nome da manutenção da sua ordem e dos seus privilégios...
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Tal quadro bestial seria, em última instância, o pavoroso sucesso do discurso da velha e condenada mídia (ainda) hegemônica...