15 dezembro 2023

Antônio Maria




Sempre gostei de ler crônicas de autores brasileiros, principalmente. Mas alguns específicos, como Carlos Heitor Cony, que conheci na página 2 da Folha de São Paulo, nos anos 1980 e 1990, cuja variedade de temas e elegância narrativa me conquistaram, mesmo quando não estava de acordo com seu argumento. Era notável como conseguia esgrimir suas ideias em um pedaço mínimo de página. Mais tarde, conheci seu corajoso O Ato e o Fato, coletânea de crônicas escritas no Correio da Manhã do Rio de Janeiro, onde ironizava com grande competência o recém-instalado regime militar. Sem dúvida seu estilo me influenciou profundamente, seja na maneira vigorosa em tratar de um tema, como no cuidado da elaboração do texto, sempre com um final em aberto, como se convidasse o leitor a completar sua narrativa.

Com menos frequência, mas com muita intensidade, as crônicas de Nelson Rodrigues me inspiraram a subverter a natureza escorreita da crônica. Não foi fácil compreendê-lo como um escritor conservador, que até certo ponto apoiou o regime militar, e ao mesmo tempo admirar a energia de sua escrita. Claro, fui conhecê-lo melhor depois de sua morte, nas compilações feitas por Ruy Castro e publicadas nos anos 1990 pela Companhia das Letras. Falava de política, de vida cotidiana, de futebol com a mesma galhardia, com a mesma capacidade em levantar um tema e conclui-lo com a habilidade dos exímios escritores, quer eu concordasse ou não com suas palavras. 

Outros também foram importantes, em menor escala: Otto Lara Resende, Ruy Castro, Lima Barreto, Raquel de Queiróz, Ignácio de Loyola Brandão, Rubem Braga, e certamente estou esquecendo alguns outros marcantes, que lia de maneira bissexta, ou que eram bissextos na produção de crônicas. E ontem, adquiri um grosso volume, Vento Vadio, antologia das crônicas de Antônio Maria. O pouco que digeri do livro até aqui confirmou a expectativa que tinha dele, e que vinha da leitura de crônicas esparsas reproduzidas em jornais, e que tinham deixado inúmeras reticências para serem exploradas. Pouco se fala de Antônio Maria hoje, e não me lembro de ter lido artigos recordatórios - na imprensa ou em trabalhos acadêmicos - de sua obra, e a publicação de Vento Vadio vem suprir o vazio dessa injustiça. Antônio Maria se consagrou simultaneamente como escritor e compositor. Lembro especialmente de uma canção, Ninguém me Ama, na voz de Nat King Cole, Ninguém me ama/ ninguém me quer/ ninguém me chama/ de um amor/ a vida passa/ e eu sem ninguém/ e quem me abraça/ não me quer bem...

Segundo a introdução de Guilherme Tauil, frequentou todos os espaços novos que se formavam (nos anos 1950, no Rio) e conviveu com todo tipo de gente nos cafés, nas boates (...). Particularmente gosto dos escritores desgarrados e em vivência etnográfica com as pessoas as mais diferentes, porque é desse caldo que sobrevém o olhar arguto para a construção das narrativas. E passa por Balzac, por Dickens, por João do Rio, por Mano Brown, por todos esses observadores da riqueza e da miséria social, que estão lado a lado sem compaixão, sem se desvincular uma da outra. Sobre Vento Vadio, complementa Tauil, Enfim na praça, 59 anos depois de ser cogitada, esta antologia coloca Antônio Maria, para espanto do próprio, ao lado dos nossos maiores cronistas.


09 dezembro 2023

Entre o Café Bohemia e o engodo político


O massacre em Gaza continua

 

Dois dias corrigindo um conto, Café Bohemia, que integra o meu próximo livro, Cenas que se diluem com o tempo. Texto rápido, que se sustenta em uma apresentação do Jazz Messengers, de Art Blakey. No ambiente aparentemente normal do café, surge um ruído que atravessa a gravação, um casal que se manifesta um pouco acima do tom moderado e suas falas são parcialmente capturadas. O problema todo resumiu-se no tratamento desse episódio, que corre paralelo com a execução da música Alone Together, e ao saxofone de Hank Mobley. O limite era o espaço da lauda, como se fosse um exercício de criação resumido em trinta linhas. E ocorreram hipóteses de desdobramento: e se o diálogo ríspido se expandisse para a caracterização mais detalhada do casal, o mal-estar propiciado por dado motivo que, sendo revelado aos poucos, trariam mais luz à vida deles. Logo me pareceu um tema excitante, mas que demandaria pesquisa e algum tempo para esboçar a personalidade e o mundo do homem e da mulher. Um conto de pelo menos dez laudas, cujo desfecho ficaria em aberto. A narrativa manteve-se restrita a uma efêmera lauda, realçando os gestos, a sonoridade, cada frase, cada linha. Vejo o quão difícil é insinuar uma situação, em vez de descrevê-la em suas minúcias. O que, no início, elaborava-se como descrição de uma boa crônica situada no Café Bohemia, culminou em uma graça ligeira, de duvidosa qualidade.

Amanhã, toma posse Javier 'Motosserra' Milei, um desses tantos políticos medíocres de direita, que surgiram para prometer o fim da casta política, o fim do banco central, o fim da moeda argentina - e a consequente dolarização da economia, o fim do Estado como provedor de políticas públicas, e que, ao final das contas, preserva quase tudo e sinaliza o tamanho imenso da incógnita que vem pela frente. O ajuste econômico será forte, não se sabe ainda o alcance dos cortes, da eliminação dos subsídios. Não se sabe por onde deverá se orientar seu governo - até aqui, mostra-se pateticamente atrelado a figuras nefastas como Macri e Bulrich, preenchendo os cargos de acordo com nomes conhecidos e pouco alentadores, como o ministro da defesa, Luis Petri, ou o diretor do banco Central, Santiago Bausili, amigo de Toto Caputo, o futuro ministro da economia que já havia ocupado o mesmo cargo na gestão Macri. Bausili respondia um processo na justiça (já cancelado), por delito de "negociações incompatíveis com o exercício da função pública". Ou seja, continuidade das políticas de favorecimento das corporações, e nenhuma grande expectativa a não ser ajustes tarifários e arrochos salariais para a grande massa. Se ela desejava mudanças radicais ao votar em Milei, terá mais do mesmo, e da pior qualidade. 

***

Chegamos à postagem 800 deste blog, em pouco mais de 15 anos de atividade ininterrupta! Sem dúvida, uma agradável surpresa e uma enorme alegria! Mas principalmente uma conquista, com um trabalho contínuo, cuidadoso, que nos anima a prosseguir em frente, com o maior carinho e dedicação.


 

05 dezembro 2023

Diálogos - Selo PPGCOM UFMG

 



Nesta quinta-feira, 07 de dezembro, participo de uma agradável conversa ao vivo, promovida pelo Selo PPGCOM da Universidade Federal de Minas Gerais, juntamente com a pesquisadora Ana Karina, da UFMG. 

A live será realizada pela plataforma StreamYard a partir das 17h e exibida ao vivo pelo canal do YouTube do PPGCOM/ UFMG (https://www.youtube.com/live/rLQOiKe6_yI?si=9Vd9slGLzLQvHUdje terá duração total prevista de 1 (uma) hora. 

A live será composta pelos convidados Ana Karina (O aparecimento público de pixadores) e Marco Antonio Bin (As redes de escrituras nas periferias de São Paulo), e mediada por Bruno Martins. 

A proposta é uma fala de até 15 minutos para cada obra escolhida e seus respectivos autores/organizadores. O objetivo é colocar em discussão o tema Cidade a partir das obras. 

Em seguida será realizado um debate com perguntas da mediação e da participação do público espectador.

Você está convidado a participar!



30 novembro 2023

Thiago de Mello - uma poesia

 

Thiago de Mello

O pão de cada dia


Que o pão encontre na boca

o abraço de uma canção

construída no trabalho.

Não a fome fatigada

de um suor que corre em vão.


Que o pão do dia não chegue

sabendo a travo de luta

e a troféu de humilhação.

Que seja a benção da flor

festivamente colhida

por quem deu ajuda ao chão.


Mais do que flor, seja fruto

que maduro se oferece,

sempre ao alcance da mão.

Da minha e da tua mão.


                                               (Valparaíso, janeiro de 63) 




23 novembro 2023

Histórias que o povo conta



Foi quando, inopinadamente para o público do Leblon e adjacências, se materializou a descida dos morros para o asfalto, a ponta de lança vinda do Vidigal. A princípio poucos podiam dizer de onde vinham aqueles desgarrados, organizados sim, pela maneira como distribuíam seu ódio pelo silêncio com que haviam sido guardados até então. Depois de disparar nos estabelecimentos de comércio elegante, nos bancos, nos edifícios luxuosos, recolheram mais de duzentos reféns e retornaram ao seu território. O público, ou mais precisamente, a audiência global, se escandalizou com o fato daqueles famélicos despossuídos, gente feia e ignorante, tivesse ousado descer de seu confinamento para mostrar a cara de sua patética existência. O que desejavam, por que essa ação intempestiva, marcada por uma violência inexplicável? Aos poucos, as lideranças da cidade passaram a ocupar os espaços midiáticos, e do estupor inicial, consideraram a ação como algo inaceitável para o cidadão de bem, e que as medidas repressivas não tardariam. As forças de segurança se incumbiram rapidamente de formular um plano de invasão, O inimigo pagará um preço que nunca conheceu, afirmou nas redes digitais o governador, descartando qualquer possibilidade de negociação política. O secretário de segurança, incumbido de distribuir suas forças, dividiu o Vidigal em três partes, e juntamente com o comando militar, elaborou um plano de ataque. A parte fronteiriça ao Leblon teria de ser evacuada em 24 horas, e apenas um posto de controle para a saída de civis foi montado, enquanto os helicópteros voavam metralhando os setores que a inteligência militar havia identificado como locais de presença dos bandidos. O problema era o que fazer para poupar os reféns, mas os mais duros do estado maior insistiam que não poderiam hesitar. O ataque foi brutal e, o que as narrativas preservadas registram, o público acompanhou em tempo real a devastação do Vidigal, com milhares de crianças assassinadas, casas destruídas, toda uma comunidade arrasada, ainda que os discursos oficiais relativizassem a destruição. Em mais de um mês de operações militares, o morro ficou com uma aparência lunar, sem qualquer barraco de pé, mais arruinado que Belo Monte após a quarta expedição, conforme atestam as imagens feitas pelos moradores da própria comunidade, que terminou ocupada pelo exército. Nas palavras de um analista da época, "Na verdade, o Sertão nada difere do Afeganistão ou de Gaza, a ordem hegemônica e seus direitos invioláveis não podem ser questionados. Quando o medo alcançou o auge, a combalida comunidade foi paulatinamente exterminada, para a satisfação de interesses personalistas e imediatos". 


18 novembro 2023

Como se nada acontecesse

 

acontece em Nápoles...

Como se tudo estivesse às mil maravilhas. O grande capital que movimenta a indústria do entretenimento organiza seus espetáculos de massa como se cada um fosse uma reunião de Nuremberg, onde prevalece a grandiosidade estética de cada evento. Não há preocupação com os possíveis pequenos problemas, que afete algumas pessoas durante o espetáculo, ou todas antes e após sua ocorrência. Não há qualquer adaptação ao momento climático por que passamos nesta semana, ou seja, uma onda de calor que tem elevado as temperaturas para mais de 35.C em São Paulo, em plena primavera. Os grandes eventos cobram de seus consumidores preços exorbitantes, que são pagos sem questionamento. Os fãs, no caso dos shows artísticos, ou os torcedores, nos encontros esportivos, aceitam enfrentar filas enormes, e a exclusividade (cara) dos produtos vendidos no interior desses espaços, explorados por empresas que também pagam para estar lá. Não há conforto na chegada, nem preocupação com isso. Repito, tudo pensado em termos massificados, o público se dirige para este ou aquele setor, parcelas da massa que são orientadas em seu conjunto. O mal-estar de um ou de outro, ou a possível morte de um fã - como ocorreu ontem no show de Taylor Swift - fazem parte de uma estatística desprezível e cujo transtorno é logo superado com uma declaração de pesar dos organizadores. E a grande mídia morde a isca e se satisfaz em ser pescada pelos grandes lobbies do entretenimento. Um grande foda-se. 

O fim do espetáculo é pior, é um salve-se quem puder, do modo que for possível. Todos de automóvel, nada de transporte de massas, já que está nas massas o interesse pela mais-valia do investimento. Caos. E o calor. E eventualmente os espetáculos que se entrechocam, como uma grande peça de teatro e uma partida de futebol, separados por algumas quadras. Para esses organizadores, fútil é pensar no inconveniente dessas saídas conjuntas. Fútil é pensar nas filas homéricas para a compra de ingressos, ainda que em parte seja feita pelas redes sociais. Fúteis são as baixas, os poucos casos de insolação ou falta de ar, porque tudo é pensado na grandiosidade das massas reunidas, no sucesso visível do evento, mostrado pelas câmeras de televisão, pela replicação das imagens dos celulares. Fúteis são as entrevistas que destacam das massas, dos amantes do espetáculo, e fazem circular nas redes como algo espetacular. O lucro estrondoso de todos passa por cima da alegria momentânea dos fãs, e cala a todos como se tudo estivesse funcionando perfeitamente, como se nada de desagradável acontecesse.

A Faixa de Gaza continua sob intenso ataque das FDI, Forças de Defesa Israelense, uma metáfora mais do que adequada para um exército invasor que não se preocupa com as baixas que provoca, nem com a destruição que realiza com suas bombas inteligentes. O cenário desse território é desolador, e sob circunstâncias normais, atingiria o bom-senso dos governantes do mundo, a começar pelos que patrocinam essa chacina, os de Israel e dos EUA. Mas não se trata de circunstâncias normais, há um desejo insano por guerra, e as consequências que venham depois. Uma crueldade poucas vezes assistida ao vivo pelo mundo. Ainda que milhares de pessoas se insinuem contra esse massacre desatado, com massivas passeatas nas principais capitais da Europa e dos Estados Unidos, é como se nada acontecesse. Um silêncio por demais incômodo. As vozes que se levantam em defesa da Palestina são fortemente reprimidas, como o caso de Roger Waters, que teve suas reservas hoteleiras canceladas em Montevidéu e Buenos Aires, ou Lula, muito cobrado quando se indignou com o terrorismo de estado praticado pelo exército de Israel. 

Disse Netanyahu, "Estamos tentando fazer, o mínimo de vítimas civis, mas infelizmente não temos sucesso". E ponto, fica por isso mesmo. Netanyahu segue sendo o bom vilão, a serviço do bem. Isso não parece que irá acabar proximamente, e nada se pode dizer sobre como ficará o território palestino, se livre e ajudado pelo mundo em sua reconstrução, ou se abandonado às forças de ocupação, mantendo os escombros como um alerta para que os palestinos jamais se insurjam contra a ocupação. Seja como for, um mundo distópico e violento, um mundo de poucas oportunidades e hipócrita quanto ao sentido da democracia. Um brutal silêncio cemiterial nos perpassa, cujos interesses coletivos se resumem ao juntar-se, como massa despossuída, para reunir-se em um espetáculo. Como se nada de mais acontecesse. 


 

14 novembro 2023

Desandar



Por muitas razões, esse conto de construção singela e ao mesmo tempo tão intenso, escrito por uma autora espanhola desconhecida, me chamou a atenção desde o li pela primeira vez, o que me levou a traduzi-lo e publicá-lo neste blog. Não há muito mais o que dizer, o texto fala por si. 
Espero que desfrutem, com a mesma alegria que me animou.
 

Desandar

Por Maria Sergia Martín Gonzalez

 

Foi mamãe quem assegurou ter escutado três golpes no caixão, justo no instante em que se derramou a primeira pá de terra. Ainda que algumas vizinhas tenham tratado em tranquilizá-la, porque entendia sua dor, ela gritou aos coveiros que abrissem de imediato o ataúde. A contragosto aceitaram, enquanto se fazia silêncio no cemitério. Dentro, papai, vestido com o melhor de seus trajes, recebia o ar fresco com um amplo sorriso e um pouco de rouquidão. Em vida, sempre havia sido um homem cordial e afável e, quando chegava o outono, sua garganta se acostumava a ressentir-se. Bem-vindo, de novo, maldito outono!, foi a primeira coisa que disse. Ajudamos com que se juntasse entre mamãe, don Anselmo, o velho pároco, e eu, enquanto sacudíamos de sua roupa a areia e as pétalas de rosa que tínhamos depositado no interior do caixão. Mamãe, que tinha os olhos empapados de lágrimas por voltar a ouvi-lo, disse bem incomodada que, se aquilo fosse outra de suas brincadeiras, tinha muita pouca graça, pois tinham vindo todos os vizinhos, os amigos das partidas das tardes, suas amigas de trabalhos manuais, e até Paquita Peña, a que – segundo se dizia no bairro – era uma filha secreta de mamãe.

Papai pediu perdão a todos ali reunidos pelo transtorno de ter que devolver as dúzias de buquês e coroas que tinham enviado para a despedida. Se desculpou com afeto de seus companheiros de cartas por não poder acabar o torneio e deu uma piscada a Paquita Peña. Dizem que o ouviram dizer que cuidou de sua verdadeira mãe e que não fizesse caso das fofocas sem sentido. Logo beijou mamãe nos lábios e explicou que tinha esquecido algo muito importante. Que não sabia muito bem o que era, mas que necessitava recuperá-lo, antes de encomendar o sono eterno. Não teve maneira de fazê-lo recuperar a razão, nem sequer quando dissemos que tia Margarita estava sendo trasladada ao hospital, depois de desmaiar ao vê-lo sair do caixão. Um enfarte, creio que afirmou um dos profissionais de saúde. Grande susto levou a pobre mulher. Depois de velar durante a noite e fartar-se de chorar com mamãe enquanto o cuidava da mortalha, parece que seu machucado e desidratado coração não pôde resistir a novas emoções.

Já em pé, papai tomou mamãe pelo braço e a mim estendeu a mão como costumava fazer sempre que me levava ao parque. Perguntou se queríamos acompanhá-lo a desandar parte de seu caminho. Eu o olhei assim como se olha a um homem mágico, capaz de conseguir que os pássaros do céu voassem para trás, ou que a chuva, no lugar de cair e se espalhar, subisse até as nuvens e deixasse seco o solo. Confesso que, apesar de não entender muito bem o que queria dizer, assenti entusiasmado só em poder passar mais tempo com ele. Mamãe o apertou contra seu peito e os três começamos a desandar juntos. Desandar, disse, é como desfazer um caminho feito com anterioridade. No começo, resultou complicado isso de colocar um pé detrás do outro e retroceder sem tropeçar, sobretudo mamãe, mas quando descaminhamos os primeiros passos, parecia que tínhamos feito a vida toda. 

Mamãe protestou um pouco, mas a mim foi divertido isso de voltar atrás. E assim, descaminhando, regressamos à funerária. Ainda perguntamos se alguém havia encontrado algo, mas ele disse que não estava ali o que buscava. Continuamos desandando até os últimos meses de hospital, até o caminho que levava aos balanços do parque, a suas partidas de cartas pela tarde, a nossa casa... Logo que entramos, comecei a chorar porque me sentia cansado e tinha fome. Mamãe me tomou nos braços, me deu a teta e me deixou dormindo no berço. Papai buscou e rebuscou em caixotes e armários, mas tampouco o encontrou. Quando saíram, senti como um desvanecimento que me fez converter em uma pequena partícula cósmica e me elevar por cima das nuvens. Eu os vi retroceder até a igreja onde ambos prometeram amor eterno. Que bonita estava mamãe, vestida de branco e ele, que elegante e jovial.

No mesmo altar, se despediu de mamãe e continuou descaminhando sozinho até a fábrica onde trabalhou toda sua vida, à estação de ônibus que o trouxe à cidade, ao lugarejo que tanto adorava, a sua festa de comunhão, aos jogos de rua... Na praça, em frente a um casarão branco de telhas azuis, o mesmo que durante anos nos havia desenhado com palavras, crianças brincavam de amarelinha. O menor o convidou a se aproximar. Papai negou com a cabeça, disse que não podia, que antes devia recuperar algo muito importante para ele e empurrou o portão com decisão. Dentro, uma mulher jovem e bonita preparava o almoço. Correu a abraçá-la pelos joelhos com seus pequenos braços.

- Mãe!

- Apronte-se, querido, ou você se atrasará para o primeiro dia de aula.


(traduzido do original em espanhol Desandar, https://www.zendalibros.com/ganadora-y-finalistas-del-concurso-de-relatos-surrealismopuro/)



Cristina Peri Rossi




Historia de un amor

Para que yo pudiera amarte

los españoles tuvieron que conquistar América

y mis abuelos

huir de Génova en un barco de carga.

 

Para que yo pudiera amarte

Marx tuvo que escribir El Capital

y Neruda, la Oda a Leningrado.

 

Para que yo pudiera amarte

en España hubo una guerra civil

y Lorca murió asesinado

después de haber viajado a Nueva York.

 

Para que yo pudiera amarte

Virgínia Wolf tuvo que escribir Orlando

Y Charles Darwin viajar al río de la Plata

 

Para que yo pudiera amarte

Catulo se enamoró de Lesbia

y Romeo, de Julieta

Ingrid Bergman filmó Stromboli

y Pasolini, los Cien Días de Saló.

 

Para que yo pudiera amarte,

Lluís Llach tuvo que cantar Els Segadors

y Milva, los poemas de Bertolt Brecht.

 

Para que yo pudiera amarte

alguien tuvo que plantar un cerezo

en la tapia de tu casa

y Garibaldi pelear en Montevideo.

 

Para que yo pudiera amarte

las crisálidas se hicieron mariposas

y los generales tomaron el poder.

 

Para que yo pudiera amarte

tuve que huir en barco de la ciudad donde nací

y tú combatir a Franco.

 

Para que nos amáramos, al fin,

ocurrieron todas las cosas de este mundo


y desde que no nos amamos

sólo existe un gran desorden.

 

(créditos: https://youtu.be/vb-FSZoelrg?si=7gHc7q5DjrvjyA60



06 novembro 2023

Embates, combates


Expulsão dos palestinos, 1948

A segunda-feira começa ensolarada, temperatura em torno de 22º.C. Seguem os ataques israelenses em Gaza, com uma violência inaudita, sem qualquer perspectiva de alguma trégua. Várias agências da ONU, em declaração conjunta, apelaram a um "cessar-fogo humanitário imediato", que por certo serão ignorados pelo Departamento de Estado e pelo governo israelense. O problema parece ser a completa ausência de limites à ofensiva das FDI, ignorando a população civil, ou confundindo-a com os combatentes do Hamas. Segundo o comunicado, Toda uma população está sitiada e sob ataque, sem acesso aos bens essenciais para a sobrevivência, bombardeada nas suas casas, abrigos, hospitais e locais de culto. Isso é inaceitável. A grande questão que ainda nem se esboça no horizonte longínquo: em que condições se dará a reconstrução de Gaza? 

Verifico pessoalmente a penetração da retórica ameaçadora israelense: no sábado, após o ato em apoio à Palestina, encontrei com um casal portando bandeiras palestinas. Perguntei se podiam me dar uma e o rapaz, de maneira solícita, entregou a que levava pendurada no corpo. Tomei o metrô, encontrei Moniquinha, participei de um belo lanche da tarde com sua família e na volta, ela me pediu para não levar a bandeira (dobrada), pois poderia ser perigoso.

Massa e Milei continuam suas campanhas para a presidência da Argentina, e por mais que me informe com os índices das pesquisas, não consigo ter uma informação concludente, pois há diferenças nos resultados. A última, da consultoria Analogías, divulgada pelo jornal Página12, mostra Massa com 42,4% e Milei com 39,7%, com mais de 12% de indecisos. Essa diferença já foi de 8 pontos há dez dias, e certamente se reduziu em função do apoio de Pato Bullrich e de uma parcela de Juntos por el Cambio. Preocupa que o ultraliberal não perca popularidade mesmo com seus atos estúpidos. Ao contrário, seus momentos de choro e de agressividade parecem cair bem na avaliação de uma parte da população. Fora esses momentos bizarros, nada acontece de substancial para uma redução tão acentuada em tão pouco tempo. Nada consegue deter o impulso da imbecilização coletiva. 

Nesse sentido, contribuem atores como Macri, que sobe à ribalta tal como um boneco teleguiado, para proferir suas certezas, atacar o peronismo e cumprir com as ordens da central a que se submete, no mínimo para criar o caos, ou para ajudar a preservar a hegemonia do poder real. Tem desempenhado tais propósitos com esmero. Mesmo que sua fala seja torpe e sem substância, tem garantido o espaço midiático e, sem nunca se alterar, profere os argumentos que, repetidos à exaustão, acabam assimilados, talvez como verdades ineludíveis. 

Por representar a nata do poder econômico e midiático, sua imagem fornece confiabilidade. Sem um filtro crítico considerável, que questione seu governo e seus atos, suas palavras tornam-se palatáveis para uma parcela que deseja mudança - sem compreender que esse não é o caminho de qualquer mudança! Subindo ao proscênio no momento mais delicado da campanha presidencial, guindado sabe-se lá por quantas mãos e cérebros poderosos, para além de ser um homem do mercado, Macri é um homem do sistema, com o mais absoluto apoio das corporações jurídico-midiático-financeiras.



01 novembro 2023

Os espectros liberais e o peronismo



A situação política na Argentina, que se mostrava tensa e complexa há duas semanas, antes do primeiro turno das eleições, modificou-se completamente. O peronismo, ensanduichado entre duas candidaturas de direita e ameaçado não ir para o segundo turno, logrou afastar uma delas, e agora, habilitado à disputa do balotage, reune todas as chances para vencer a que sobrou. Como se deu o milagre?

O principal adversário, o sinistro Javier Milei, surfou na onda do discurso de mudança até onde pôde. Era o favorito, ganhou as primárias com quase dez pontos sobre Sergio Massa, e bem à frente de Patrícia Bullrich, a candidata do Juntos por el Cambio. Enquanto se mostrava uma surpresa, carreou grandes multidões de jovens, principalmente. Suas aparições na mídia eram dramaticamente engraçadas, mas isso enquanto conseguiu sustentar-se em seu blablabla radical. Bastou o tempo passar e ser testado por seus adversários, para sua verdadeira envergadura se mostrar, e desabou por si só, como um castelo de areia. 

Tenta nessa reta final alguma composição com Bullrich e o ardiloso Maurício Macri, que mesmo não tendo reunido cacife para disputar a presidência ou uma vaga no senado, tem seus aficcionados, principalmente na Cidade Autônoma de Buenos Aires, onde seu irmão, Jorge Macri, venceu as eleições. O problema todo é que essa composição, por todos os ataques mútuos anteriores, não se sustenta e não convence. Milei, um leão assustador no primeiro turno, agora não passa mais do que uma triste imagem de um gatinho confuso.

Bullrich não agrega, e nem seu discurso agressivo seria um ponto de contato com Milei. Macri, por fora, mais preocupado em agir por conta própria contra o peronismo, não está em seu melhor momento, seja junto ao eleitorado, seja entre os poderes midiáticos de Clarín e La Nacion. Nessa enorme brecha aberta na direita, Massa consegue reunir os cacos da coligação peronista e de modo hábil, restaura sua força junto sua base eleitoral. Como ministro da Economia, avança nas propostas sociais possíveis, o que tem projetado a imagem de um político sério e atento às dificuldades econômicas da população. 

O que poderia ser seu calcanhar de Aquiles, a alta da inflação, não parece ter força suficiente para promover um desgaste letal em sua campanha, e penso, muito em razão da inapetência opositora. Isso confirma uma suspeita minha, desde o golpe em Dilma, e depois com a aparição de Macri, Bolsonaro e agora, Milei: a direita é esse fragmento de falsas promessas com suas bobagens descartáveis, que sozinhas não representam nada como projetos transformadores, como novas ideias (como disse Pedro Aznar, promesas falsas, ideas a medio cocinar, falacias mal vestidas de tecnicismos...), a não ser o empenho aos interesses dos grupos dominantes dessa mesma nação. E quando há um curto-circuito nessas relações perigosas e vaidosas, ou seja, quando os canalhas não se entendem na partilha do botim, renasce a força dos projetos mais abrangentes, mais populares, como aconteceu ano passado com a vitória de Lula, e agora, com a possível vitória de Massa. 

Milei e sua trupe dá mostras de afundar na areia movediça que a própria frente política criou, sem forças para se erguer e restabelecer, nesses próximos 20 dias, certamente vítima de suas infindáveis diatribes, que se ergueram como retóricas atraentes, culminaram como fundamentos vazios e quase sempre indigestos. Demonstra a cada dia o que não é. Ao contrário de seu movimento desequilibrado, aliado às declarações bombásticas e de pouca substância de Bullrich (Ojala que la economia explote antes del 19...), e à futilidade política de Macri, remonta o peronismo kirchnerista, nem tanto de Massa, mas de Cristina, de Kicillof, e tal como diz a letra do começo da marcha, Los muchachos peronistas/ todos unidos triunfaremos/ Y como siempre daremos/ Un grito de corazón: Viva Perón, Viva Perón!     

(atualizado em 01.11.2023, às 10h).



22 outubro 2023

Argentina: os próximos passos

 

A esperança de que nosso Norte continue sendo o Sul

Uma inquietude nos atravessa a todos: o risco de colhermos uma amarga derrota amanhã, nas eleições argentinas. Como tem sido corriqueiro nos pleitos dos últimos anos, na América Latina, o espantalho assustador da direita ressurge de suas fundas trevas, mais ameaçadora, mais ignóbil, mais empolada, propondo suas soluções esdrúxulas, política e economicamente irrealizáveis, e que estão mais de acordo com as normas do pacto com a violência, sem qualquer apego ao diálogo, em que a sociedade, manipulada pela retórica grosseira, entrega seu destino às vozes que a desejam destruir. No contexto da crise política e da inflação galopante, as vagas promessas de solução, de uma nova era, sem corrupção, sem Estado, sem subsídios, consegue capturar corações e mentes, principalmente - e isso me impressiona - de jovens. 

Na quinta-feira, assisti a uma palestra da socióloga Verónica Gago, que nos mostrou de um lado o processo de mobilização feminista no enfrentamento da crise e de outro, o tamanho do buraco criado pela financeirização do capital, aprofundando o endividamento das famílias. O crédito sem a mediação salarial tornou-se uma alternativa desesperada para as famílias ao menos subsistirem, "envididarse para vivir". O quadro atual não indica uma solução a curto prazo para a inflação, hoje em torno de 120% ao ano. As perspectivas de estabilidade econômica, e o consequente apaziguamento social e político, serão mais satisfatórios quanto mais sério for o cronograma da governabilidade, abrangendo a grande parcela da população, menos favorecida, recompondo os programas sociais, a preservação do poder de compra dos trabalhadores e aposentados, os direitos trabalhistas, de moradia etc. 

Em outras palavras, a opção mais sensata no momento seria a vitória de Sergio Massa, da coalizão Unión por la Patria. Ainda que seja ministro da economia de um governo que falhou ou se omitiu em muitos aspectos, é o candidato que reúne mais serenidade, e talvez capacidade, para desenvolver um projeto de contemple algum tipo de pacificação nacional e que possa gerar desenvolvimento econômico sem graves rupturas. Torço muito para que a Argentina encontre o espírito de sua seleção de futebol, unida e determinada a jogar do modo mais eficiente para vencer. Como na poesia de Benedetti, cantamos porque llueve sobre el surco/ y somos militantes de la vida/ y porque no podemos ni queremos/ dejar que la canción se haga ceniza.



19 outubro 2023

As ternas memórias de Julio Escobar



Uma boa notícia em um mês conturbado: entrou em edição final meu livro de contos, As Ternas Memórias de Julio Escobar e outras rememorações, pela editora Mondru. Segundo o editor Jeferson Barbosa, o livro estará presente na Flip, em novembro, e outras feiras e eventos que a editora participará ainda neste ano. Em seguida, segue a divulgação pelos apoiadores da pré-venda a partir de dezembro, quando devo receber meus exemplares. 

Segundo o editor, há sobreposto à capa alguns padrões, que tentam ampliar a ideia de fragmentos da memória e até de caminhos e reconstrução da memória por meio da escrita. Trata-se do sombreamento losangular que recobre a capa. A escolha foi feita entre sete opções, e penso que é a imagem que melhor retrata o tema do conto-título. O tom azulado foi uma opção pessoal ao eleger as cores, os tipos gráficos, a estética das capas. 

O esforço agora é possibilitar o lançamento ainda neste ano. Houve algum atraso em relação ao cronograma original, que indicava que o livro estaria pronto por volta de agosto. Seja como for, ele seguirá seu curso, vamos aguardar a divulgação e a pré-venda, para então tomarmos uma decisão sobre um lançamento presencial. 

O mais importante é que, por parte da editora, houve muito cuidado na edição, o que acreditava que ocorreria pela relação profissional mantida, sempre com muito respeito ao autor. No que diz respeito ao texto final da obra, também houve, de minha parte, uma atenção inédita, quando decidi submetê-lo a uma revisão profissional, que me pareceu bem feita. Isso, aliado ao conjunto de contos que compõe o livro, desenvolvido sob uma temática principal - a memória, a rememoração - me permite dizer que se trata de um trabalho maduro e criteriosamente bem-sucedido. 

Mesmo os contos mais antigos, e ali estão presentes dois - escritos há mais de trinta anos - não desafinam na montagem orgânica da obra. Alguns outros passaram por profundas reescrituras, visando dar mais consistência às narrativas e valorizar a relação com o tema principal. Foi o caso, por exemplo, de Formas de contemplar o espaçoCoriolano Salvatore, Rodolfo evoca. Ficará a cargo dos leitores se aprovam o resultado final.



08 outubro 2023

Por que não haverá solução



Creio que a parcela mais crítica e atenta dos cidadãos do mundo já desconfiam aonde este novo enfrentamento entre palestinos e israelenses vai levar: a lugar nenhum, ou, a nenhum aprendizado. O mundo com suas lideranças bochornosas de hoje, riscou da agenda a palavra negociação. O que deve prevalecer é a palavra ameaçadora e o ato belicoso, vindo por trás um orçamento bilionário de contratos com armamentos. É o que acontece na Ucrânia, onde a UE prefere torrar mais de 130 bilhões de euros ao longo de um ano e meio, em armas enviadas ao Zelenski, com resultados bastante incertos, do que procurar uma negociação direta com a Rússia e cessar com a sangria desatada. Para que o descalabro não seja tão assustador ao pobre cidadão comum, é necessária uma contínua cobertura acrítica das mídias sobre o que se passa por lá. 

No caso do Oriente Médio, o ataque do Hamas suscitou uma enérgica reação conjunta desses mesmos governos entorpecidos contra o ataque terrorista, desta feita executado em minúcias e em grande escala. Quando as mortes ocorrem aos borbotões pela ação policial lá no morro, trata-se da consequência de uma ação cirúrgica e necessária para conter a criminalidade. Para o bem dos bairros classe-média do entorno. Ninguém quer saber quantos morreram ou o nível da violência policial para aquietar as almas criminosas. Mas quando há uma ação oposta, uma invasão "do morro ao asfalto", o pânico exige que o Estado Policial reaja à altura, acabando com a violência dos marginais. É mais ou menos o que ocorre em Gaza. 

Enquanto os ataques cirúrgicos de Israel têm a função de eliminar bases terroristas, sem a contagem precisa de vítimas, isso pouco importa e conta com a absoluta complacência da comunidade internacional. Mas quando surge um ataque maciço palestino, que deveria provocar ao menos um questionamento incômodo, o mundo, esse mundo de lideranças frívolas, reage em uníssono, como se o que ocorre naquela parte do planeta fosse uma novidade. Não é. A violência conta-gotas da ocupação israelense é uma narrativa censurada.

O que vai ocorrer é que o ataque do Hamas será contido e a montanha de cadáveres resultante será varrida para baixo do tapete, com a conta apresentada unicamente para o grupo político palestino. Não haverá aprendizado, nem negociação. Não convém, afinal, para quê mexer nesse vespeiro e trabalhar diplomaticamente pelo estabelecimento de dois Estados soberanos e livres? O problema da solução armada é uma opção que a cada confronto foge ao controle. Os falcões do Pentágono, ou da Otan, ou vamos lá, da ONU, têm dificuldades em aceitar que novos jogadores, com muito cacife diplomático, sentem-se à mesa e mostrem como aprenderam a jogar o jogo da guerra. Esses insignes falcões desaprenderam a arte do blefe, e mesmo assim querem impor que a banca vença o jogo, com a truculência do passado, mas produzindo a ignorância do futuro. 

A ladainha é repetida, não negociamos com terroristas, como se uma fração de terrorismo também não estivesse entranhada em suas ações. Sentimentos se misturam, hipocrisia, arrogância, prepotência, desprezo... O inimigo pagará um preço como nunca conheceu antes... Nesse quadro, o Hamas é o menor dos problemas. A imposição de subserviência se estabelece; pronto, não haverá negociação, não existe espaço para o diálogo, para as narrativas com versões da mesma história, e o mundo morboso deverá se orgulhar da força da Verdade e replicar em suas redes digitais a vitória, ou o impasse provocado pelos "terroristas". Lamentáveis serão os desfechos. Não fazem ideia do que semeiam, mas parece que não se preocupam com isso, nem com a fome, com a destruição, com o aquecimento global, com nada.


05 outubro 2023

15 anos!


Há quinze anos, no embalo da febre dos blogs, lancei o Chá nas Montanhas, sem muita pretensão, a não ser dispor de um canal em que pudesse publicar minhas impressões políticas e culturais, além, claro, de divulgar meus textos literários - crônicas e pequenos contos. Um pouco antes, havia passado por uma primeira experiência que durou um ano e meio, o Caminhos da Liberdade. Por alguma razão, considerei aquele blog insuficiente, e ao encerrá-lo, fiquei seis meses preparando o lançamento deste Chá nas Montanhas.
 
Com o passar dos anos, ao contrário do desgaste que costuma pressionar os blogueiros, sinto-me estimulado a publicar meus textos aqui, com uma regularidade que se mantém desde o início. Nunca o blog ficou três semanas sem uma postagem. Postagens sempre criadas, textos produzidos e não copiados, e em grande parte delas, ilustradas com imagens de meu acervo pessoal. Desse modo, o leitor de visitas indica mais de 91 mil visualizações, 788 postagens em 5.475 dias, que propiciaram um livro de crônicas publicado, O que aparentemente nos resta, e outro inédito, para vir a lume em breve, Pétalo nauseabundo. 

Creio que, por meu entusiasmo e quase necessidade de escrever aqui, o blog deverá continuar por um longo tempo, quem sabe por mais 15 anos! Logo, serão 100 mil visualizações e 800 postagens, o que me dá grande satisfação. A comemoração da data inclui todo esse imenso número de leitores silenciosos, os quais agradeço de coração.

Viva o Chá nas Montanhas!

 

29 setembro 2023

No pasó


Salvador Allende não existiu


O texto abaixo foi publicado pouco antes de se completar 50 anos do golpe cívico-militar no Chile, na revista digital chilena, Anfibia. Foi escrito por Alvaro Bisama e divulgado por um querido amigo chileno em sua rede social. Trata-se de um relato que retoma o universo paralelo criado pelo negacionismo, que rechaça, dentre outros absurdos, que houve golpe contra as instituições e contra os cidadãos chilenos. A sucessão de negações, longe de nos convencer da existência de uma outra realidade, apenas confirma os fatos históricos e, consequentemente, evidencia a tragédia que se abateu no Chile. 

O espírito negacionista dessa gente, antes calada, viceja animadamente pelo espaço público, arrogando verdades e exigindo desculpas. Por certo não irá se abalar com esse discurso comunista. Mas uma coisa ficará colada em suas testas, o ridículo de assumirem o que assumem, e de proclamarem a burrice como um estilo de vida e um modo de pensar. E não resta outra alternativa senão prosseguirmos na denúncia desse ridículo e dessa burrice, que como sabemos, são as marca do caráter abjeto.

O texto original é por demais longo, tem duas laudas e meia em espaço simples. Tomei a liberdade de traduzir uma parcela importante, o início, parte do miolo e o fim, retirando trechos específicos sobre a realidade chilena. Desse modo, consigo publicar a versão em português ainda no mês de setembro, mas depois do aniversário da morte de Neruda, referência do meu propósito inicial para concluir a tradução, que ocorreu em 23 de setembro. Ao final, transcrevo o endereço da revista para quem quiser conhecer o artigo completo. 


NÃO ACONTECEU
por Alvaro Bisama

Não aconteceu. Não ocorreu. Foi uma invenção. Não houve golpe de estado. A Armada não se sublevou. O Exército não foi golpista ou traidor. Menos Carabineiros. Não houve Dina, nem CNI. Não teve presos políticos, nem ataques, nem militares posicionados na esquina. Não mataram a Victor Jara. Não o torturaram. O que se passou com ele foi uma mentira a mais, os inimigos do Chile nunca se detêm. Ninguém bombardeou La Moneda. Caiu sozinha. Os aviões apenas faziam acrobacias sobre Santiago. Os tanques não rodearam nenhum edifício. Ninguém disparou nem encheu de balaços os muros do centro. Não mataram a Orlando Letelier, nem a Carlos Prats. Um invento. (...) Ninguém morreu na tortura. Ninguém agonizou nos calabouços. Ninguém usou corvos. Nenhum corpo foi quebrado, mutilado, cortado. São contos, farsas, inventos. Ninguém proscreveu os partidos políticos. Ninguém perseguiu aos socialistas, aos comunistas, o MIR e o MAPU. Não houve exilados. (...) Ninguém revisou e censurou os textos escolares e as bibliotecas. Não se queimaram livros. Os militares não disseram que faziam fogo com eles para aquecer as mãos. Ninguém inundou os colégios e escolas com álbuns de figurinhas da Guerra do Pacífico, com ilustrações de sangue da batalha de Concepción, das façanhas de nossos valentes soldados. Não houve civis que colaboraram. Não houve sapos ou delatores. Ninguém ficou feliz ao denunciar o vizinho ou ao colega. (...) Ninguém teve que ver como o acento sibilino de Pinochet era celebrado como uma épica nacional, nem aguentar seu tom que encobria o desprezo, toda essa brutalidade disfarçada. Ninguém identificou esse acento com o terror. (...)

Nada aconteceu. No Chile coisa alguma ocorre. A história muda por puro desejo ou vontade. O passado não é um feito senão uma ficção criada por capricho, uma calúnia que se repete até que se torne verdade, um pensamento mágico que reescreve a realidade. Aí, o golpe de 1973 foi uma mentira, não existiu, é algo que impede que o pobre povo chileno se una. Recordar o golpe é uma baixeza, uma podridão, um ato de violência e uma celebração do falso, uma demonstração do ódio antes que da justiça ou da memória. No calendário esse dia deve ser apagado. Os chilenos não foram exterminados como ratos. As vítimas deveriam pedir perdão aos algozes. Os torturados, a seus torturadores. Os fantasmas dos corpos insepultos, a seus assassinos. Toda a história do Chile não é mais que uma lenda urbana. Não houve ditadura. Não foi uma ditadura. Não durou 17 anos. Nunca aconteceu nada.

Artigo publicado originalmente em espanhol, pela revista digital Anfíbia, e encontrado no endereço: https://www.revistaanfibia.cl/no-