17 abril 2019

Informes sobre o Estado totalitário

Juan Carlos Distéfano, El Mudo II, 1973
  

Em meu último curso sobre Ciência Política, ano passado, estruturei o plano de aulas com apoio do excelente livro de Fábio Comparato, Ética. O tema de encerramento foi Totalitarismos do século XX e para a preparação da aula, realizei um conjunto de anotações que me pareciam sugestivas para subsidiar um texto sobre o governo Temer, marcado por derrotas nos direitos sociais e trabalhistas, além da violência institucional redobrada. Minha pergunta: fazia algum sentido comparar o pavoroso recuo do Estado democrático de direito com os fundamentos de um Estado totalitário?

Para isso fiz as anotações que reproduzo abaixo, chamando atenção para alguns tópicos que se mostram muito próximos com o desenvolvimento institucional do Estado golpista que gradativamente foi se instalando em nosso país. Vale lembrar que o texto se refere aos principais governos totalitários do início do século XX, onde o líder ou condutor encarnava o destino ideológico com mão de ferro. Essa figura absolutista foi substituída por um aparelhamento ideológico discreto, concentrado e eficiente, encarnado por um político estafeta, cumpridor dos interesses do capital financeiro.

Fiquem à vontade para estabelecer as relações que considerarem oportunas. Fica mais interessante estender a comparação ao presente (des)governo do capitão Bolsonaro. Em itálico, minhas observações.

Tópicos

- Totalitarismo corporativo
o "Estado totalitário suprime a liberdade individual ou grupal em todos os campos (pois) desaparece a separação entre Estado e sociedade civil" (p. 366).

- oposição não mais entre o tirano e seus inimigos, mas entre o Estado burocrático e a totalidade do povo (p. 368).

- o ambiente paranóico do Estado totalitário (p. 369).
política de radical isolamento do indivíduo
estímulo à delação sistemática.

- no lugar da onipresença do chefe, a onipresença do dinheiro ("descomunal máquina burocrática").

- duplicação de aparelhos policiais, forças militares, quadros funcionais fiscalizando uns aos outros - e o partido único.

- o Estado totalitário conquista a adesão das classes trabalhadoras e classe média pela sedução ideológica do consumo - produzidos com base na posse e circulação do dinheiro.
o papel do neopentecostalismo
adesão voluntária dos governados

- propaganda massificante (p. 371)

- inexistência de uma ordem ética estruturada - deformação e extrapolação arbitrárias (p. 372).

- povo reduzido a uma massa amorfa de indivíduos indiferençados.
máquinas de despersonalização de seres humanos
"o prisioneiro não se reconhece como ser autônomo (razão e sentimento) - suas energias se concentram na luta contra a fome, a dor e a exaustão" (Primo Levi)

- opção chinesa - "reforma pelo trabalho" (p. 373).

- no Estado totalitário a esfera da vida privada e da vida íntima desaparece.
(Contrapor a inversão no Estado totalitário do dinheiro: a valorização do espaço familiar, ainda que sem retomá-lo como espaço de oposição ao Estado)

- multidão de refugiados e apátridas: condenados a perambular de fronteira em fronteira - "pessoas deslocadas".

- na Antiguidade, jamais se cogitou destruir os costumes dos antepassados.

- causas geradoras do totalitarismo: o anti-semitismo e o imperialismo da 2a. metade do século XIX (p. 375).
(o ódio às classes menos favorecidas, ao negro, ao indígena).

- "na preparação da experiência totalitária, um papel não desprezível deve ser atribuído às ideias de reconstrução total da sociedade".
na direita - um difuso sentimento de pavor ou angústia, no confronto com a realidade racial ou cultural dos povos dominados.
irrupção da plebe na vida econômica.

- "a massa é o aglomerado de partes idênticas umas às outras" (p.385)
(retomar Elias Canetti, Massa e Poder).


01 abril 2019

Instrumentos da diluição social

Ipuã, 1983

Continuarei batendo na mesma tecla, nosso infortúnio foi cavado pela grande parcela da população com conhecimento restrito de nossa formação histórica, alimentada por uma crônica e longeva desinformação midiática dos acontecimentos cotidianos. Cada vez mais habituada ao desinteresse das questões estratégicas da vida social, privilegia-se com crescente interesse a luta pela sobrevivência, como sendo a única razão para a obtenção de sucesso. O indivíduo engalfinha-se, assim, em uma luta sem fim, reproduzindo os interesses de uma casta social que controla os meios de produção privados e especula no mercado financeiro, turbinando seus lucros. O que se trava agora é uma luta difícil para a sociedade civil, a manutenção dos direitos previdenciários, sem os quais a barbárie estará convenientemente instalada.

Como disse, somos responsáveis por esse estado de coisas pela ignorância, pela absoluta comodidade em não questionar, nem sequer apurar de maneira crítica a crescente diluição do Estado democrático de direito. Não fazemos a menor ideia do perigo que representam os novos donos do poder e esse drama parece também diluir-se em meio aos nossos afazeres diários, dolorosos e inconsequentes por não apresentar, no futuro, qualquer possibilidade de redenção. Deixamos paulatinamente a angústia que o conhecimento proporciona, para nos abandonarmos às delícias oferecidas pelo consumo de bens tecnológicos. Somos pautados pelo desejo de possuir um IPod Touch 6[i], materialidade sedutora, e pelas janelas de entretenimento que ele proporciona, sejam os games sofisticados, os vídeos encantados, os entretenimentos esportivos.

Podemos também montar nossas páginas no Instagram ou no Facebook, compartilhar as fotos de nossos entornos familiares e as imagens de nossas férias. Podemos, por fim, e não que seja o limite das possibilidades, criar e replicar memes e com uma mensagem despudoradamente racista e transmitir acreditando que seja uma mensagem edificante, calcada nos verdadeiros princípios da tradição cristã. Sem qualquer preocupação, somos transformados em instrumentos da diluição social, em sintonia com uma nova ordem obscura, que nos faz penetrar fundo na escuridão de uma caverna fria e desconhecida. 

À medida que adentramos a caverna nos distanciamos de nosso mundo real, submetidos à percepção de um mundo feito de ilusões. Tudo está por se refazer, com base em uma verdade reconstruída diariamente, em função das necessidades individuais de cada um. Quem nos alimenta com verdades é esse Grande Irmão ideológico que já conhecíamos desde Orwell, hoje multiplicado pelo fascínio irresistível das tecnologias de informação.   




[i] Há sempre o risco de ficarmos defasados.