17 fevereiro 2011

Naima



Lá está ele, o senhor K, girando a colherzinha no café expresso. Sentado no ‘sofá’, as amplas janelas ao lado, a mesa diante de si, e ao redor, os murmúrios do ambiente. Deixa-se levar pela sonoridade vagamente audível, um saxofone persistente, que se desdobra, solitário. Gesto laborioso, frêmito que perdura diante da impossibilidade... e espontâneos, loquazes, o pensamento e a melodia... um e outro, breve ousadia enquanto desmobilizados, o escoar do tempo, a fragilidade em face do destino marcado...

Muitas imagens se acercam do senhor K, ou melhor dizendo, ele se precipita às impressões acumuladas, chorrilho de símbolos... A caneta solta sobre o caderno de anotações, no lugar do copo com uísque, a xícara de café, a esfriar enquanto move sem previsão a colherzinha... Sente-se íntegro como nunca, entorpecido pela alma adormecida. Quanto tempo, um dia, dois dias mais... uma semana, que importa... Alimenta-se do presente, e os resíduos se acumulam e quanto ao vestígio, se dissipa ao desejar tornar-se...

E se deixa levar... em seu presente... em sua escolha profunda... como o jazz que se estende, a intensidade sôfrega do saxofone, altos e baixos em meio aos improvisos... os fraseados prolongados, sequência de notas profusas, ternas, precisas... que avança pela redenção inescapável... o derradeiro sopro e como a melodia, o deleite não mais...

Outro fim de semana, com um horizonte imerso em tempo, as ideias esgarçadas e os propósitos, salutares, como sempre.



15 fevereiro 2011

Recortes urbanos (3)


Dresden, 2010

No último trem, o pinga-pinga me permitiu deparar com a cena cotidiana nada colorida de uma sociedade industrial avançada. O belo de seus cartões postais ficaram para trás, nos espaços consagrados pelo consumo globalizado. A elegância estética, sinônima de conforto e sedução. O trem avançava como podia, em meio à névoa cinzenta, com pontinhos cobertos até o pescoço avançando por caminhos lodosos, onde a neve derretida fundia-se aos poucos, em uma gosma escura, esmagada pela contínua passagem dos trabalhadores.

O trem avançava como podia... parando nas pequenas estações do caminho, que atendiam as demandas das fábricas, das escolas, e o horário me dizia que o turno de trabalho, e de estudos, se encerrava. No meu vagão, trabalhadores brancos, negros, árabes, adolescentes com suas mochilas, idosos, um entra e sai frenético. Situações ásperas, que me atravessavam de modo estranho, por não entender o código social daquela movimentação.

Por trás dos sujeitos que se acomodavam em seus modos taciturnos, a ideologia aprofundando-se nos rituais práticos do cotidiano. Para Althusser, "o que é representado não é o sistema das relações reais que governam a existência dos indivíduos, mas a relação imaginária destes indivíduos com as relações reais em que vivem". Em outras palavras, a dureza da reprodução daquelas condições de trabalho que se fazia, e se faz, em nome de uma expectativa de conquista fluida, amparada em um horizonte no mais das vezes inalcançável, porém estimulada em sua idealização pelos aparelhos de ideologia do estado (AIE).

Com a globalização, os aparelhos de ideologia ganharam uma dimensão mundial, com o estabelecimento de uma ideologia dominante, neoliberal. A aplicação dos AIE a serviço de uma interpretação classista se mantém, com uma burguesia mundial substituindo a burguesia nacional. Assim, a mídia corporativa, para ficar neste exemplo de AIE, tem sua função desdobrada na reprodução de uma compreensão de mundo que esteja alinhada com a ideologia dominante global. Podemos constatar facilmente o pastiche noticioso que amalgama os principais veículos de comunicação do mundo, todos alinhados com uma vertente hegemônica, variando apenas o grau de sutilidade do discurso.

E o trem prosseguiu em seu trajeto, avançando aos bocados, pelos subúrbios do capitalismo. Fixei-me na paisagem dura de um cotidiano oculto por trás dos biombos do mundo-espetáculo, e não me incomodei em perder a conexão em Amsterdã, que faria ainda naquela tarde. Deixei-me levar, meio viajante, meio turista, acompanhando o cansaço, as conversas, os silêncios, gestos e expressões mortiços, raramente exultantes. Perpassou-me o desconsolo da não-pertença, de estar ao lado e de não sentir-me parte. A cultura, o modo de ser local, atravessados por um torpor isolante, práticas reguladas por rituais, agora em sua uniformidade global, definidos pelos aparelhos ideológicos, agora em seu alcance global...

E embora pudesse pensar em Marx ou Althusser, aprofundou-se em mim a sensação de incômodo, a ausência completa de signos que promovessem um vínculo... o estranhamento absoluto, a reprodução da mesmice como componente vital nas relações de produção.



05 fevereiro 2011

Sobre a companhia

Cafeteria do museu de comunicação, Berlim



Fui à Confeitaria, para uma média com espuma. Para interromper um pouco as leituras. A noite urbana, com suas personagens características, desgarradas, ocupadas, adormecidas, poucos carros, um ar límpido, o desejo de colocar as mãos nos bolsos e caminhar indefinidamente...

Escolhi uma mesinha, em meio ao balbucio das personagens da noite, em sua maioria trabalhadores, que estão a pegar ou a largar o serviço. As conversas são mais sussurradas que durante o dia, se movem em outro ritmo, como se as apreensões cotidianas os deixassem por uns minutos, ou o contrário, eles esquecessem por uns minutos as apreensões cotidianas. Não importa, o ritual se conecta de modo harmônico, comem, bebem, sorriem, reclamam, acompanham as imagens das tevês... e naturalmente, o ambiente interno se esparrama para a rua, através da conversa. 


Clientes que conversam na saída com as caixas, com os porteiros, com seguranças, em breve confraternização... Arrastam-se para fora do recinto, transformam-se em cidadãos, sejam trabalhadores, turistas, desempregados, e na caminhada pelos logradouros, cruzam com prostitutas, que conversam com garis, que conversam com os guardadores de carros, que conversam com os mendigos, que continuam abandonados... Fluxo de relações que não se rompe, alimentadas pela informalidade do momento... A cidade não é assim, ganhará outra roupagem pela manhã, mas isso é outra conversa...

Esqueço o dinheiro, o chefe me conhece, pede para que eu não me preocupe, saio para a rua, uns poucos passos, ouço de passagem a conversa de três catadores de entulho diante de uma caçamba, em meio a falas mornas, divertidas, um defendendo a tradição do Corinthians, dois ironizando o argumento... mais adiante, já na esquina com a Augusta, um homem irrompe em minha frente, Um minuto, doutor, só um minuto... Sem que me detenha, ele me estende uma nota de 5 euros, a voz empostada, Só quero saber quanto vale isso?... Digo-lhe o valor aproximado e ele logo se junta ao amigo, comentando sem entusiasmo a informação obtida... Acompanho-os por um tempo, antes de desaparecerem na noite. Embrenham-se pelos desvãos infindáveis de um espaço que os ignora, essa invisibilidade empírica que nos interroga sem cessar, sempre a transcender as respostas praticadas nas reflexões acadêmicas...

Em casa, prossigo por mais um pouco na leitura, antes de ceder ao cansaço. Vem o sono, com ele os sonhos e em um deles, outro encontro: estamos em um colégio e fazemos uma prova com os alunos. Você está com as mãos carregadas de pastas e papéis, me lembra aquela menina com saia do Colégio. Ao final, nos encontramos em uma mesa da cantina. Então, você me diz que dará seu passeio pela orla, e pergunta se desejo acompanhá-la...

Enquanto deixamos a escola, ajudo-a com as pastas, e seguimos a caminho do mar, e penso, em busca da livraria de sua juventude, e de um sorvete de casquinha...




03 fevereiro 2011

Mubarak e Cortázar


Praça Tahir, Cairo


Trinta anos não foram suficientes para o ditador implantar sua política de plena restrição à democracia. Resiste teimosamente, como a prosseguir na construção de sua obra sinistra, expressão monolítica, a absorver a dinâmica espontânea de um povo. Ao longo desse tempo, o Egito subsistiu sem voz para externar seus desígnios de nação soberana, assimilando os interesses dos EUA no quadro geopolítico regional, com seus movimentos tíbios e silenciosos...
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Hosni Mubarak, o responsável por esse mórbido silêncio, permitiu o assassinato de milhares de palestinos, para ficarmos apenas neste exemplo. Mubarak gostou tanto do silêncio, que o transformou na simbologia melíflua de um tempo histórico, marcado pela ausência de vozes dissonantes. Fez o que sempre soube fazer, processar o martírio de milhares de compatriotas, e assim como Macbeth, carregar ao longo dos anos as mãos encharcadas de sangue...
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Mubarak, com seu governo inepto e exemplarmente corrupto, ignorou todos os sinais que indicavam a tragédia. A perfeita metáfora para a situação egípcia se revela em uma narrativa de Cortázar, Conto sem moral, onde o comerciante protagonista do texto surge diante de um ditador para vender suas últimas palavras, a serem proferidas quando chegasse o momento decisivo.
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Diante de sua taça de chá matinal, o verdugo questiona, 'E por que devo comprar as palavras que devo dizer?', ao que o negociante não se fez de rogado, 'O medo... o medo não lhe deixará falar... e quando brotar um gemido suplicando o perdão, já não haverá mais tempo e paciência, e o enforcarão'...
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Como todo tirano, encapsulado pelo terror que os paralisa no ocaso de seus mandatos, ele se convence em comprar suas últimas palavras, desautorizando a seus asseclas, que indignados pelo tratamento recebido, não tardam em fuzilá-lo, impedindo que use as últimas palavras.
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Ato contínuo da opereta, os generais e secretários buscam pela capital o comerciante, que a esse tempo passeava pelo mercado, vendendo pregões a saltimbancos. Ao detê-lo, torturam-no, para descobrir as tais últimas palavras. Sem sucesso, terminam por matá-lo a pontapés...
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As consequências, ora, as consequências, elas estão ao alcance dos nossos olhos, nas imagens vindas da praça Liberdade, que falam por si. Na narrativa de Cortázar, o comerciante, antes de ser detido e morto, oferece os gritos aos vendedores de rua, que multiplicaram os gritos nas esquinas, a senha para que o povo, uma vez contagiado, desencadeasse a revolução, que acabou com os generais e os secretários...
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Sobra-nos a afilada curiosidade: quais palavras e gritos teriam mobilizado tão vigorosamente a população, derrubando uma poderosa tirania? Sobre isso, Cortázar não nos fala, porém dos acontecimentos reais vindos do Egito, apreendemos o contagiante rastilho da indignação reverberada pelas mídias sociais, que desencadeou a ação social... Y se fueron pudriendo todos, el tiranuelo, el hombre y los generales y secretarios, pero los gritos resonaban de cuando en cuando en las esquinas.