30 novembro 2010

Sobre a boçalidade

Há modos variados de se apresentar a notícia, como há modos de se discutir a boa literatura, e como também há modos de se posicionar politicamente. Nos três casos em questão, conta a maneira de se abordar o tema, qual o objeto de análise, qual o discurso utilizado, qual o objetivo a ser alcançado.

Nem sempre as respostas nessa metodologia da informação são claras. Começo pelo primeiro caso, explorando um tema que me foi caro porque o vivi em tempo real, com o privilégio de dispor de pontos de vista distintos. Falo do golpe em Honduras. Como já escrevi anteriormente neste blogue, cheguei dois dias antes do seu desfecho em Caracas, e ali acompanhei atentamente a ampla cobertura do que seriam as eleições do dia 28 de junho, sintonizando tanto a CNN quanto a Telesur.
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Com as recentes revelações do Wikileaks, ficou mais do que evidente que a cobertura (e consequentemente a versão da CNN) foi um mero jogo de cena político, que descartou desde o princípio a ideia de golpe de estado. No caminho oposto, a Telesur procurou tratar o caso como uma ruptura constitucional, investigando os passos do golpe e o exílio truculento do presidente Zelaya em San José, na Costa Rica.

Sem esforço, o jogo de cena foi assumido pelos veículos midiáticos hegemônicos (destaquemos a rede Globo, grupo Clarín, Globovisión), que insistiram em apresentar o evento como uma transição forçada de poder. Recordo-me de ouvir pelo menos um caso fatídico de justificativa do golpe, proferido por Raúl Jungman em uma entrevista, sugerindo que o gesto brutal encontrava amparo na constituição hondurenha...

Vemos agora, nos transbordos trazidos a lume do Wikileaks, mensagens diplomáticas do governo estadunidense admitindo o golpe. "Sejam quais sejam os méritos de um caso contra Zelaya, sua remoção forçada pelos militares foi claramente ilegal e a elevação ao poder de Micheletti como 'presidente interino' foi totalmente ilegítima", declarou o então embaixador estadunidense em Honduras, Hugo Llorens. Ou então: "Não há dúvidas de que os militares, a corte suprema e o congresso conspiraram em 28 de junho no que se constituiu em um golpe inconstitucional e ilegal"...

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Passemos para o segundo caso, e aqui desejo me referir de modo especial a um comentarista histrião que persiste em fazer suas análises ricas em charlatanice nos jornais globais, com reprodução na CBN. Em essência, os comentários tornam-se achincalhes ao governo Lula, apresentados em um discurso que pretende ser engraçado, e que não mais são do que leituras farsescas de uma realidade complexa...

Pois esse poço de sabedoria e arrogância, em recente entrevista à revista da Cultura, dentre uma série de comentários mal humorados, sai-se com essa pérola sobre Fernando Pessoa: "Sempre li muita poesia, como a do João Cabral de Mello Neto, um cara genial que ensina a gente a escrever. Mas tem uns poetas que odeio... e vão me esculhambar por causa disso. Fernando Pessoa. Acho chato, insuportável, uma bicha lamentosa reclamando o tempo todo da inexplicabilidade da vida (...).

O mais patético disso é que esse bobo da corte (pelo esforço de ser engraçado em suas análises políticas) a serviço de uma aristocracia perdida, tem tempo e completa abertura para externar comentários como esse, eivado de rancor e preconceito contra um dos maiores poetas da língua portuguesa. Lembra-me um lamentável analista da Veja, da mesma estirpe e que se escafedeu para a Itália, um Mainardi que certa vez resolveu arengar contra Carlos Drummond de Andrade ("Chega de Drummond. Pelos próximos dez ou quinze anos, é melhor ficar longe dele"...)...

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Por fim, chego à xenofobia que, por um momento, expandiu-se pelas redes sociais, logo após o resultado das eleições. Um processo que imagino ter se alimentado com a desinformação dos meios hegemônicos, todas as interpretações do discurso dominante eram induzidas para a demonização de uma candidatura. Em outras palavras, abriu-se a possibilidade da crítica descontextualizada, cujo objetivo único era alcançar um fim, a vitória do candidato sem brilho, sem discurso. A alucinação do processo alcançou os comentaristas histriônicos, avançando pelas mídias sociais.
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Ao fim e ao cabo, com a proclamação da vitória retumbante de Dilma, abriu-se um vazio nos canais da intolerância, logo ocupados pelo mais vil preconceito. Foi necessário achar um bode expiatório para a derrota, como se ela não estivesse explícita deste o início, e daí à multiplicação das ideias vulgares, atacando os nordestinos, foi um passo, simbolizado nas palavras da estudante de direito Mayara Petruso, "Nordestisto não é gente, faça um favor a SP, mate um nordestino afogado"...


28 novembro 2010

Sobre a dignidade




Foi duro, muito duro... considerando as circunstâncias, o brutal embate de cada dia, a esperança de vencermos uma eleição acompanhando a má vontade do discurso hegemônico, desejoso em investir no candidato sem projeto e sem ideias... E assim, passamos - todos os que enfrentaram o bom combate - à espreita das surpresas de cada dia, as manchetes de primeira página, as capas de revistas, as distorções editadas nos jornais globais, para então reagirmos em nossos atos solitários e solidários... Processo de profundo desgaste essa expectativa infinda, de contestar a farsa, o cinismo, a dissimulação, procurando sempre responder trazendo a discussão ao contexto dos acontecimentos.

Foi, como disse, um processo de profundo desgaste, ao qual, confesso, me recupero aos bocados. A felicidade não foi devidamente comemorada com os bons amigos, ainda porque estamos enfronhados na labuta das jornadas diárias. Mas logo me reunirei com uns poucos abnegados, companheiros de todos os dias, para festejarmos a vitória que certamente dará continuidade ao elenco de transformações sociais neste país.

Não posso esquecer o papel fundamental das redes sociais, dos amigos devotados, do jornalismo independente que na figura de destemidos cidadãos, utilizaram da melhor maneira o suporte digital para levar a informação necessária, aquela que nos alimentou para difundir o esforço boca a boca dos argumentos decisivos. Esses bravos lutadores que não se renderam, e que de maneira digna sobrepujaram as dificuldades das circunstâncias, souberam prover com coragem e determinação uma ampla conectividade na rede virtual, decidida a propagar a verdade dos fatos.

De modo que foi com indisfarçável satisfação que acompanhei o encontro dos blogueiros com o presidente Lula, um significativo desfecho para todo o episódio eleitoral. Um encontro que celebrou a sagração, dentre outras coisas, do respeito ao próximo.

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Em conversa com meu pai (e para mim é sempre muito bom ouvi-lo), soube de um episódio que conhecia vagamente, e que ocorreu há muitos anos. Foi quando a sua vida ainda não estava consolidada, os filhos ainda pequenos, as prestações pesadas, um desses infindáveis dedos acusadores resolveu difamá-lo, junto às pessoas próximas.

Discretamente então, dirigiu-se à diretoria da empresa e pediu demissão. Não criou nenhum alarde, e posso imaginar que se expressou com o surpreso diretor no mesmo tom sereno com que elucidou os fatos para mim. Um mísero dedo acusador, do qual nada mais se soube...

Meu pai preservou a altivez, pediu demissão. A sua explicação: não tinha como prosseguir em uma empresa onde existisse um mínimo de desconfiança sobre meu caráter.



20 novembro 2010

Encontros



Recordo que em minha infância era comum passarmos um tempo em Congonhas, vendo os aviões decolando e aterrisando. Era um programa natural, familiar, nos finais de tarde dos domingos após a missa. As pessoas se acomodavam em uma longa sacada e contemplavam o movimento das aeronaves, os Constelations com quatro hélices, os passageiros embarcando ou desembarcando na pista, o cheiro de querosene, o ronco quádruplo ampliando ou se afastando, de acordo com as manobras, enfim, aquilo parecia um mundo distante do nosso alcance, por isso talvez gostássemos de apreciar. Depois, descíamos a imponente escadaria rumo ao saguão central e encontrávamos um movimento mais denso, que misturava visitantes com viajantes.

Em uma dessas ocasiões, lembro-me de um fuzuê mais acentuado que de costume. Diante do elevador, o time que encantava o mundo, a delegação do Santos Futebol Clube, que chegava ou partia para uma de suas infindáveis excursões. Também me lembro que, sem grande esforço, avançamos por entre as pessoas até alcançarmos o jogador mais procurado, Pelé. Frente a frente, aquele instante que costuma congelar a passagem do tempo. Com um belo sorriso, ele me estendeu a mão e pude cumprimentá-lo, sem ter noção exata da dimensão do acontecimento.

Sempre que rememoro esse momento, deixo-me levar por uma satisfação muito pessoal, que se renova desde aquela longinqua perspectiva juvenil...

Muitos anos mais tarde, subo a rua Augusta, sob uma leve brisa primaveril envolvendo o início da noite. Vislumbro lá no alto, mais acima do espigão da Paulista, o brilho sedoso da lua cheia, como a saudar uma jornada rica em adoráveis momentos, a aula animada e a energia contagiante dos alunos, pela manhã; a conversa doce com a mulher dos sonhos, à tarde; a leitura e o café, seguidos pelo caminhar imerso em suaves impressões, no começo da noite. Um senhor passa e me pede as horas, jovens que sorriem, avançando pelo cruzamento, outra lufada fresca de vento, uma sensação de pleno bem-estar...

O cinema, a poucos passos, indica algum evento especial, há um adensamento de pessoas que transborda pela calçada. Logo me aproximo e identifico Ricardo Darín, rodeado por três ou quatro fãs, fotos, sorrisos, tudo marcado por gestos generosos e pela completa informalidade, basta se aproximar para abordá-lo. Acompanho o movimento por uns instantes, a tempo de lembrar de suas belas atuações, impulsionadas pela força da narrativa cinematográfica argentina. Despontaram Nueve Reinas, uma aula de como contar uma boa história... o comovente El hijo de la novia, o apaixonante El secreto de tus ojos... Mas lembrei-me de maneira especial do sublime Kamchatka, tão pouco conhecido. Ali, Ricardo Darín teve, em minha opinião, sua mais destacada atuação.

Aproximei-me um pouco mais, estendi a mão, disse-lhe de minha admiração por seu trabalho, simples assim. Ele permaneceu com seu sorriso tão natural, agradecido por minhas palavras, Gracias, muy amable... muy amable...

Completei a jornada com um saboroso café, na cafeteria de costume. Lá, reencontrei os prestativos e carinhosos atendentes de todos os dias...


03 novembro 2010

Impressões de uma jornada feliz




Recebi um email da querida MR, que manifestou, em poucas linhas, o extravasamento de uma grande alegria, que gostaria de compartilhar com todos:

---- Que lindo dia hoje, Marco! (Quando saí fui até o começo (fim) da Paulista, não entrei porque estava bem cheio e tinham crianças no carro que estavam sem cinto... houve uma festinha de Dia das Bruxas por aqui e assim comemoramos, espantando as bruxas que já foram...)
---- estou lendo A Vida Privada, juntei com o Robert Darnton - lembra-se, a Marialva Barbosa falou dele - e vou trocar a informação dos saraus (porque não consigo encontrar referências tão confiáveis) pela questão da leitura - descobri coisas bacanas, entre as classes populares havia um momento do dia, ao fim da tarde, la veillé - em que se reuniam para ouvir-ler - as mulheres costuravam, os homens mexiam em ferramentas...
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vamos ver se não me perco neste embrenhado de coisas bonitas!
beijos
MR
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O que me estimulou a lhe descrever minhas impressões, vivenciadas no mesmo final de jornada:

MR querida, o dia seguinte tem sido de profundo relaxamento... como se todos os temores e fantasmas acumulados deixassem de vez o convívio, permitindo uma brisa suave e generosa... como ontem, a noite fresca, as pessoas felizes, com o sentimento do dever cumprido... porque não tenho dúvidas, MR, que todos que buscamos as ruas, buscamos nossos cúmplices nesta dura luta muitas vezes silenciosa, mas honesta e decidida, feita nos espaços e nos tempos possíveis de nossa vida cotidiana, junto aos outros, esses outros que estão aí, que compõem a sofisticada razão de nossa existência...
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Foi belo, em certo momento, deparar com a avó e seus dois netos, talvez de sete e quatro anos, cada um com a bandeira da Dilma, acompanhando o discurso do carro de som... Cenas discretas, inúmeras como essa, que se diluíram no frescor da noite para demarcarem um novo espaço de luta, esse que se define na satisfação de uma vitória e no comprometimento com um mundo mais feliz e encantado...
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As muitas crianças que encontrei me permitem acreditar nesse encantamento, nesse senso de justiça e desejo de um reencontro com a mais genuina narrativa humana, sensível, rica em suas nuanças, e não a mera reverência ao sucesso a qualquer preço, definido pelos relatos contábeis das corporações e a brutalidade atroz de um ritmo que não é de ninguém, senão do lucro...
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Reencontrei com especial simpatia os olhares detrás do balcão... Para um deles, que reverberou um brilho de incontida felicidade, expus um pouco dos momentos da festa na avenida e minhas expectativas do novo governo...
É tempo de Monteiro Lobato, não de La Fontaine, MR querida, ao menos no que diz respeito à fábula da cigarra e da formiga... esse final que aproxima, que respeita, que acalenta, e que passo a lhe relatar:
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"(...) Aparece uma formiga friorenta, embrulhada num xalinho de paina.
- Que quer? – perguntou, examinando a triste mendiga suja de lama e a tossir.
- Venho em busca de agasalho. O mau tempo não cessa e eu... - A formiga olhou-a de alto a baixo.
- E que fez durante o bom tempo que não construí a sua casa? A pobre cigarra, toda tremendo, respondeu depois dum acesso de tosse.
- Eu cantava, bem sabe...
- Ah!... - exclamou a formiga recordando-se - Era você então que cantava nessa árvore enquanto nós labutávamos para encher as tulhas?
- Isso mesmo, era eu...
- Pois entre, amiguinha! Nunca poderemos esquecer as boas horas que sua cantoria nos proporcionou. Aquele chiado nos distraía e aliviava o trabalho. Dizíamos sempre: que felicidade ter como vizinha tão gentil cantora! Entre, amiga, que aqui terá cama e mesa durante todo o mau tempo. A cigarra entrou, sarou da tosse e voltou a ser a alegre cantora dos dias de sol".
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Não é lindo!...
Beijos...
Marco.

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