31 janeiro 2010

Perda de tempo...


Seria um filminho de sessão da tarde, não fossem os dois momentos surpreendentes, para uma produção comercial hollywoodiana: 1) a exposição do trabalho profissional do personagem central, contratado por grandes empresas para encaminhar o processo de demissão de empregados, função desempenhada com competência (o capitalismo pós-moderno sempre a avançar notavelmente em suas descobertas pútridas, sempre em desfavor da massa de trabalhadores, quando não dos consumidores...); e 2) no final, quando o personagem principal se decide por uma vida sossegada, recolhendo-se ao convívio apaixonado com quem imaginava conhecer bem e tem desagradável surpresa... Na verdade, uma consequência possível para quem se vê enredado na falácia de uma vida sem projetos...

Ele, o personagem central, até que tinha um, patético, que confirmava sua miserável atuação dentro do sistema, colaborando a torná-lo mais eficiente... ou seja, nada mais do que juntar um milhão de milhas aéreas! Para quê? Uma pergunta que nem mesmo ele soube responder. Realizava-se na poltrona de um avião, dentro de um quarto de hotel, diante dos empregados que teria de demitir.

A brutalidade sutil desse gesto é que surpreende no filme, o que o faz indigesto para uma sessão da tarde. As reações dos empregados são mostradas, e esse processo de limpeza do capitalismo é normalmente ocultado do público, em nome dos frutos sedutores que o empreendedorismo fornece. Qualquer desses manuais de auto ajuda mercadológica sinaliza, a felicidade chega quando você transforma paixão em desempenho... ... O sentimento canalizado para a disputa, onde não cabem fraquezas... e não há retorno: uma vez adestrado no clima de competição, alça-se voos intrépidos, até a queda fragorosa!

Não há retorno, não há compaixão nesse universo pautado por gráficos, cifras e velocidade. Uma parada para outra caminhada, mais regulada nas necessidades humanas, torna-se um recuo desprezível... Acompanhamos um certo esforço desse personagem em tomar a sério uma relação apaixonada, em um outro paradigma de vida, e eis que a surpresa é dolorosa... Por um instante, em sua vida esvaziada, ele se esqueceu que sobrenadava num ambiente em que todos à sua volta expressam ardilosa desenvoltura, ocultando o mundo real (e pessoal) ao qual pertencem, reconfigurando gráficos, cifras e velocidade... O mundo real (e pessoal) não pode desvelar-se ao longo da corrida desenfreada pelo big think, sob o risco de revelar a parcela humana no jogo... Bem, e no final das contas o filminho fecha com o personagem principal de volta ao que sabe fazer, voar e anunciar demissões, preso em sua gaiola de ouro, condenado a viver indefinidamente nela.

Nada do que escrevi tem a ver, até aqui, com o título e com a imagem do post. Vamos lá: em meus tempos imemoriais no funcionalismo público, recordo-me das reuniões motivacionais que nos varria o senso crítico e numa delas, uma pergunta foi direcionada ao grupo: o que vocês desejam fazer agora? Éramos uns trinta, um por um começou a falar, quero um café, quero uma cervejinha, quero brincar com meu cachorro, quero ir pra casa e dar uma bicota na patroa, quero tirar os sapatos e relaxar, quero... a lavagem cerebral dos dias anteriores os condicionara a assimilar regras, não a sonhar, e chegou minha vez, olhei para todos, para o que comandava a atividade, perguntei se podia desejar qualquer coisa, Sim, qualquer coisa, então falei mansamente, Quero minhas férias e uma viagem a Paris...

.

30 janeiro 2010

Regresso




O retorno é menos difícil do que parece. Retomo aos bocados a continuidade cotidiana, tão familiar. Como escrevi em algum lugar, revejo primeiro o zelador, os espanhóis do empório, o amigo da banca de jornais, embora não compre mais jornais, o velho sapateiro, os atendentes do meu café predileto, onde costumo tomar meu desjejum matinal, tudo isso na região mais movimentada da cidade. São as pessoas mais simples, que precedem os encontros mais emotivos.

Em seguida, me dedico à gente comum que circula pelas calçadas, nas manhãs cálidas e luminosas de verão. Ainda comovido pela viagem recém concluida, levo meu caderno e esboço algumas anotações. Desejo que seja assim, doravante, escrever a mão, sentir o momento em seu fluir natural, descrevendo-o na medida do possível, na maneira do possível, sem correções sucessivas. O que vejo, como vejo, desvelando aos bocados a graça do instante captado, as expressões que brotam e se apagam, a dor que persiste, o gracejo inesperado, o ruído que rasga o silêncio acalentado... e evitar que a atenção seletiva, panorâmica, conduzida pelo marasmo da repetição diária, alicie meu comportamento.

Em viagem, a atenção é generosa, em primeiro plano. Tudo chama atenção, pelo ineditismo, pelo inusual, e saboreio as apreensões. A neve do lado de fora, o café fumegante diante de uma janela, a mulher na mesa ao lado, a cafeteria e a sutileza de sua decoração... Não tenho pressa, o cotidiano não dispõe de metas, de compromissos rígidos, divago e dialogo com o possível, que desponta ao calor do movimento, sempre aleatório, para lá, não... para cá... um museu, ou um café mais simpático, ou a rua enevoada, o bonde que passa... As descobertas se sucedem, o olhar que se projeta para gestos comuns em uma paisagem sempre convidativa. A mãe com o filho em sua bicicleta, sob a neve. Na cesta da frente, os pães e os bolos para a ceia do natal. E ela passa e desaparece em meio à névoa, para nunca mais. Mas naquele instante, penso em sua ceia de natal, nas pequenas surpresas, no ambiente familiar, na breve alegria diante da mesa, o calor do afago, a consagração de cada vida em uma só...

Retomo a sonoridade, os aromas, o calor humano de meu lugar, sem estranhamentos, sem solenidades. O gostoso da volta é saber onde estamos, e por que estamos. A inércia saudosa que me atinge nos primeiros dias não é suficiente para desejar a volta aos ambientes transitórios por que passei. Sei que lá sempre serei um estrangeiro, e respeitado enquanto tiver grana para gastar. Ah, sim, os meus amigos que ficaram! Esses fazem parte de um sentimento carinhoso que se cala em mim, delicadamente, até um novo encontro. Regresso ao meu lugar, onde vivo, ao qual pertenço, e onde promovo meus embates. É aqui que, bem ou mal, dou prosseguimento à minha história, pessoal e coletiva. É aqui, no meu lugar, que aprendo e apreendo a evolução mágica da vida. É aqui que forjo meu caráter, junto aos meus, junto à minha cultura.

Recupero, pois, a realidade da minha vida cotidiana, da qual não tenho como me furtar. Se não for aqui, será em alguma parte, então que prossiga aqui, junto ao que - e a quem - aprendi a valorizar e a amar. Sobram-me as abundantes lembranças de outras partes, que aos poucos se desvanecerão em sua intensidade. Restarão os momentos sublimes, que permanecerão aqui ou acolá, hoje ou no futuro, a seduzir-me de maneira persistente. Sei onde é meu espaço, e por tudo o que foi visto e sentido, também sei que o mais importante de uma viagem é a consciência do regresso.



29 janeiro 2010

Belerofonte no Tártaro


(...)
Tenho me sentido distante deste mundo que me absorve aos bocados, onde há muito os sonhos não invadem minhas noites, inundando a alma de seduções e desejos. Ao contrário, os fantasmas não deixam de rondar meu catre, pronunciando palavras toscas, indiciando-me em um tribunal imaginário e sem fim. Desperto nas manhãs ensolaradas com as esperanças brutalmente comprometidas, e nas manhãs escuras sem disposição sequer de pensar. Seja como for, me preparo para as jornadas diárias com a expectativa de romper com as amarras, de quem sabe recuperar o cavalo alado e com ele empreender alguma desvairada conquista, mas o confronto de cada dia, de cada hora, se dá no âmago das opções inúteis, vivendo no tormento estéril do remorso.
Uma vez no escritório, sento-me diante do computador em busca de clientes, no afã de vender coisas, produtos industriais que temos em profusão e que os outros necessitam. Minha filha necessita de minha presença, é essa imagem que se constrói na tela, seu olhar de desconsolo diante de minha inoperância como pai. De quando em vez fecho um negócio, enquanto penso em outras pessoas queridas, esquecidas ao longo de minha trajetória. Acolho lembranças, seja com a família, seja com amigos, e me questiono sobre as opções. Meu percurso desapegado, quase como um indigente, voltando-me apenas para as oportunidades de ocasião. Vitórias que me soaram gloriosas, nada mais do que conquistas efêmeras que se dissiparam com o tempo (...)
À hora do almoço, retiro-me a um canto para minhas palavras cruzadas, enquanto aguardo o momento de recomeçar. Recomeçar, sempre esta palavra, mil vezes recomeçar. Se no início meus instintos cobravam-me ações resolutas, agora me acomodo na avaliação de suas conseqüências. E assim arrasto-me, sem pressa porque não há onde chegar. Em uma dessas tardes de caça virtual a clientes, encontrei um velho amigo que a princípio me pareceu um bom augúrio. Mas logo após as primeiras palavras, lançou sobre mim uma carga de despautérios que mostravam seu rancor adormecido. Fora eu a causa de tanto desgosto? Como se eu tivesse usufruído da exaltação quimérica para envenenar as relações, sobressaindo perversamente aos olhos das mulheres, dos amigos, dos companheiros de luta, como se o bem maior fosse a conquista do Olimpo... Não sei, o certo é que aproveitou a ocasião para jogar-me as acusações na cara, como nunca havia feito. Voltei para casa ainda mais inseguro, sem dizer que não fiz nenhuma venda naquela tarde sem fim (...)
Velho, alquebrado, sobra-me o regresso para casa, que em qualquer circunstância deveria ser um fato agradável. Neste momento de lusco-fusco, em que a luz do dia abre lugar para as trevas da noite, sou paulatinamente açodado por meus medos e incertezas, que reverberam com essa esgarçadura generalizada das relações cotidianas, reforçando justamente a falta de comprometimento. Os vínculos desaparecem e com eles, a grata sensação de fazer parte. Vejo ao redor cada vez mais sofrimento e desilusão, sendo envolvido pelo desalento que é meu e também do mundo. É então que, ao refletir sobre as coisas, me deparo com certa inutilidade nas escolhas feitas e principalmente nas que estão por vir. Por que, para que, valeu a pena?, são as questões que rondam minha alma. Mesmo aventurar-me na poesia me parece um fardo desnecessário (...)
Curiosamente, não me entrego, mas tenho a convicção de que me debater à deriva é a pior das opções. Como agora, por exemplo: percebo que falar sobre minha vida não significa nada em termos de construção de um caminho, e mesmo na ponderação dos fatos (...) É meu desafio absorver a tristeza na compreensão do mundo, transformar-me em alguém a partir dessa dor muito pessoal, em vez de vagar envergonhado, a esconder-me das pessoas...
.