26 outubro 2014

Coração Valente




Tomo meu café e vejo, a média distância, três atendentes conversando animadamente com o entregador de doces e salgados da empresa. Tentam convencê-lo sobre as vantagens de, na opinião delas, se votar em Aécio. Ele resiste, trazendo argumentos do desgoverno em Minas, da inapetência do partido dele, mas logo se vê acuado, contra a geladeira de bolos. Sua expressão animada se opõe aos trajes desgarrados e puídos que veste; tenho a representação da invisibilidade não apenas social, mas ali, física mesmo. Quando ele se posiciona do lado de fora do balcão, os passantes o ignoram. Atroz diferença com a realidade das sociedades socialmente mais equânimes, é inevitável a memória de uma cena semelhante que presenciei há tempos, em uma cidade alemã. Nela, o coletor de lixo entra na cafeteria para cumprir com seu trabalho e é recebido de modo respeitável pelos presentes. Portava um uniforme asseado e digno, fruto certamente do respeito com que seus empregadores proporcionavam não só à imagem da empresa, mas ao bem-estar de seus empregados, enquanto cumpriam suas tarefas. O homem foi convidado a tomar um café, e ao final saiu com os containers, sendo cumprimentado por todos.

Retomo a cena presente, o entregador prepara para se retirar com seu imenso carrinho no exato instante que um burguês de bermudas e mocassins marrons se aproxima, coberto de adesivos da campanha de Aécio. É efusivamente recebido pelas meninas, que ignorando o amigo entregador, se voltam saltitantes para o sujeito, que num gesto influente, se gaba dos signos que enuncia e pede o café. Um encontro que não dura quinze segundos, o suficiente para que o sentido de classe seja completamente anulado pela subserviência atávica, onde a distinção se faz prevalecer, os mais vulneráveis se entregam aos caprichos do mais poderoso, sem que isso ofereça mais do que a preservação do abismo social. De um lado, o olhar de admiração para quem supostamente é um vencedor respeitável, o espelho ideal de uma sociedade capitalista competitiva, cuja imagem é dia-a-dia cultuada. E de outro, o ideal corporificado, a representação do sucesso relativo que ainda se alimenta da distinção.

Uma cena que é a moderna transcrição da sociedade escravocrata que ainda não superamos. A presença social dominante em seu silêncio, capaz de quebrantar o espírito de classe e estabelecendo seus valores às camadas menos favorecidas. Um poder que não pretende compartilhar, mas subordinar e desse modo se perpetuar. Não à toa esta discussão surge aqui, em um dia de eleições presidenciais, onde dois projetos claros e distintos se apresentam. Um que deseja promover avanços sociais, a partir de programas de afirmação e de distribuição de renda, com vistas a uma sociedade menos desigual, que possa usufruir as benesses do consumo material e intelectual. De outro, o prolongamento de um liberalismo pautado pelos ganhos financeiros e pelos interesses corporativos, onde o ser humano raramente aparece como a razão dos investimentos. 

Por tudo isso, a imagem que ilustra esta postagem, outra cena, desta feita diante do TUCA, aqui na PUC de São Paulo. Uma noite festiva, onde o manifesto de apoio à candidatura Dilma ultrapassou o espaço físico do teatro e se esparramou deliciosamente pela rua Monte Alegre, embandeirada e avermelhada. Pessoas mais adultas, com a experiência de longas e tormentosas lutas políticas ao longo da vida, confraternizando com jovens que vão tomando o gostinho da vivência política como base para as transformações sociais. Por horas, esse convívio no espaço público, em um momento da campanha que havia incertezas sobre o resultado do pleito. Hoje, todos os índices de pesquisa apontam, tomara, vitória de Dilma e de um projeto político de governo fundamental para a construção de uma cidadania para todos.

                                                                                                                                 para M.R.



13 outubro 2014

Desdobramentos



Após uma semana do primeiro turno, a sensação eleitoral me parece outra diante daquela que se verificou no domingo e mesmo nos primeiros dias subsequentes. Havia um clima de debilidade, impalpável, sem qualquer explicação racional, apenas a impressão dispersa nas ruas e canalizada nas mídias corporativas de que Aécio não só havia conseguido uma estrondosa recuperação, como já se posicionava em vantagem. Pesquisa de um instituto desconhecido do Paraná apontava vantagem de Aécio de oito pontos (49 a 41 por cento), o que depois se verificou infundado. 

A mídia eletrônica mais a impressa entrou rápido em ação e expôs em detalhes o depoimento de um ex-diretor da Petrobrás, que para amenizar sua prisão concordou com a delação premiada. Sem se provar nada, ou dar tempo para a defesa dos partidos acusados, o rolo compressor mídia + oposição trombeteou o fato de modo irresponsável, numa clara tentativa de interferir no processo eleitoral. Nestes últimos dias o caso refluiu das manchetes, não só pela reação do governo, como pela forte mobilização nas redes sociais.

Aliás é aqui, nas múltiplas plataformas digitais, que se deve decidir as eleições deste ano! Ambas as campanhas se organizam para ocupar esse espaço, com vídeos e mensagens que alcançam o cidadão comum com grande eficiência. Da parte do candidato oposicionista, vejo uma tentativa de aproximação corpo a corpo, com mensagens diretas produzidas por ele próprio e endereçadas aos milhões pelo what's aap, além de jogos eletrônicos em que o personagem não é Mario Bros mas o próprio Aécio, a vencer uma série de etapas. Se o processo dialoga diretamente com o eleitor, sobretudo com o mais jovem, ele não esclarece as plataformas políticas nem suas propostas mais genéricas. 

Ao contrário, a campanha de Dilma ao menos no facebook é rica em informações e densa em dados, que comparam o que foi o último governo tucano no Brasil e os anos de Lula e Dilma. Começam a surgir pequenos vídeos, não só com apoios, mas que discorrem sobre projetos de governo, o que me parece acertado, pois cria um diferencial de valor nas propostas de um e de outro candidato.

Hoje surgiu a primeira pesquisa Vox Populi, que coloca Dilma com 51% dos votos válidos, pouco ainda, mas que pode indicar uma tendência, e oxalá ela se confirme. Ainda é cedo, faltam 13 longos dias, e todo cuidado é pouco, pois o cerco midiático-empresarial está feito. Hoje mesmo um jornalista (Xico Sá) se demitiu da Folha por desejar expressar seu apoio a Dilma em sua coluna. O jornal argumenta que essa prática é interdita nas colunas, mas permitida na página adequada (de debates). O problema é que existem outros colunistas, como Azevedo, Constantino ou o tal do Pondé, aos quais tudo é permitido, sem qualquer cerimônia.

Penso nesse jornalismo arcaico, que parece provir das páginas amarelecidas da Primeira República, onde as elites não perdiam a voz e tampouco seus plenos direitos de expressão. E mais além, é como se os cronistas de hoje, reproduzindo os padrões burgueses de antão, impusessem à sociedade seus pontos de vista e esperando vassalagem moral. Como se os argumentos da aristocracia devessem mais uma vez prevalecer como referências para o bom devir dos valores sociais e culturais da nação. 

Há cem anos, era o ideário da Casa Grande, hoje, nada além do que um fortuito interesse de gabinete refrigerado, em conluio com os mercados corporativos. É como posso sintetizar a manutenção tresloucada de um jornalismo classista, aliado a qualquer coisa que lhe mantenha as vantagens, em um mundo hipoteticamente capitalista e competitivo.