31 maio 2011

O velho Santiago



Há tempos que venho ensaiando em escrever sobre este segmento de narrativa, que me acompanha desde a adolescência, no começo do amor pela literatura. Trata-se do velho Santiago, o protagonista do livro de Hemingway, O velho e o mar, em um momento perdido lá no meio da história, quando ele já está em alto-mar, na expectativa da dura luta contra o peixe capturado, e se perde nos fragmentos dos devaneios ocasionais, os jogos de beisebol, DiMaggio, a leitura do tempo, o céu límpido de setembro, e então, a lembrança de uma queda de braço contra um negro de Cienfuegos, que começou em uma manhã de domingo e terminou no alvorecer do dia seguinte, antes que os trabalhadores tivessem de ir às suas fainas.

Por que a reminiscência deste episódio? Talvez o assombro inicial pela imagem dos dois oponentes, imóveis, medindo forças frente a frente, impávidos, tomados pelo desejo do enfrentamento. O velho Santiago em sua juventude, e o negro de Cienfuegos, um atleta encorpado. Davam-lhe cigarros acesos e rum, com o que mantinha-se para derrotar o rival, em meio a uma platéia que acompanhava incrédula ao desafio.

Trocaram-se os juízes, os apostadores iam e vinham, e assim passaram-se as horas. Por um momento, Santiago pareceu fraquejar cedendo alguns centímetros, mas resistiu e a custo, conseguiu equilibrar a contenda. Despontava o novo dia, e quando todos os presentes propunham o empate, Santiago reuniu todas as forças que lhe restavam e forçou a mão do negro para baixo, mais para baixo, até encostá-la na madeira.

Não penso na vitória do velho Santiago, não é o ponto mais relevante, mas sim essa imagem do combate justo, forjado nos olhares que se mediam e se respeitavam. Para um moleque como eu, a representação da taberna, o lampião de querosene e as sombras dançantes, o saboroso ardor do rum e a névoa renovada de fumo, aprofundaram o cenário trágico, de silenciosa fixidez, da metáfora do embate cotidiano. Como se a breve cena preparasse a sofreguidão do embate a seguir, em alto-mar, magnificamente descrito.

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Antes de me causar espanto, a cobertura midiática das eleições presidenciais no Peru me confirmam o horror nauseabundo que vivenciamos aqui, no ano passado. O candidato Ollanta Humala é ignominiosamente conduzido ao sacrifício público, submetido às desventuras de um ataque sem quartel, envolvendo os grandes veículos de comunicação do país.

O brutal dispositivo dos meios hegemônicos sepulta o jornalismo sério e informativo, disseminando uma visão capenga da realidade, eivada de vileza e intolerância. No processo desgastante, o verdadeiro jornalismo é o primeiro a ser sacrificado, vindo a seguir (ou ao mesmo tempo) os receptores das mensagens, toda a população.

Resta saber se ela vai tolerar esse parcialismo desabrido, sem escrúpulos, que nada é capaz de produzir senão desinformação, em nome dos recorrentes interesses corporativos.


25 maio 2011

Histórias Invisíveis



Se me permitem, abordarei um projeto literário recém-concluído, cuja consecução foi muito especial para mim. Há pouco mais de dois anos, eu e a pesquisadora e escritora Mônica Nunes, demos início, muito ao acaso, a um exercício de observação da realidade urbana, e passamos a produzir pequenos blocos de registros, amparados em figuras anônimas, ocultas por detrás de seus movimentos corriqueiros, e vislumbradas no abandono das ruas, no burburinho de um café, ou na intimidade de um pequeno apartamento da grande cidade.

Cada situação tracionada tão somente pelas delicadas variáveis das pequenas escolhas, que ao final das contas, vivificam a alma do cotidiano. Os olhares revelando o amor, o desconsolo, o estranhamento, as palavras ternas, as aflições, as dúvidas, as carícias sutis, mescladas com golpes tormentosos... A cada tema proposto, uma continuidade específica da narrativa e assim por diante, de tal modo que podíamos remontar, ao sabor da pura ficção, o drama social e existencial de cada personagem.

Foi a partir desse processo de intervenção do imaginário, que optamos por criar os percursos das personagens e promover novas derivações para os fatos. Das apreensões do real, esboçamos a ficção possível, e ao longo das histórias os protagonistas e coadjuvantes se acertam em torno do ritmo de suas vidas, marcado pelas minúcias das rotinas diárias.

Elevam-se, assim, as personagens mais comuns, à margem do processo regido pelo espetáculo. Capturamos, em nossa observação da realidade, os atores sociais menos relevantes, e alinhamos nossa pena em torno de seus possíveis, acompanhando seus sonhos, dores, alegrias, impasses, os inúmeros matizes da dimensão humana.

Em um mundo permeado por temas que se imaginavam sepultados no século passado, como racismo, homofobia, preconceitos linguísticos e de classe, procuramos avançar no sentido oposto, referendando a beleza dos pequenos gestos, concebidos longe das câmaras de segurança, ou da mediação sensacionalista. Apenas a sagração da vida convencional, com sua elegância peculiar, que se desvanece com a mesma naturalidade que surge, e com isso, revelando a força da sua presença.

Convidamos o leitor a peregrinar pelas dobras da Paulicéia, e ouvir a polifonia de vozes, sussurradas, pensadas, esboçadas, sufocadas. Confesso, de minha parte, o prazer de interagir livremente a dimensão real com a imaginária, e descobrir que elas se tocam, se misturam, se interpõem ininterruptamente, revelando as contradições que perpassam o cotidiano urbano das pessoas comuns.

Redescobrimos, enfim, ao escrever estas doze crônicas ficcionais da cidade, o quão inspirador é poder perceber e se apaixonar pelo próximo, esse desconhecido bem ao nosso lado.

Histórias Invisíveis, de Mônica Rebecca Ferrari Nunes e Marco Antonio Bin, Editora Horizonte.
Lançamento: dia 11 de junho de 2011, na Livraria da Vila, Alameda Lorena, 1731, 1. andar.

Estão todos convidados!


19 maio 2011

Fuga sem fim




A dor sentida contém os passos, não faço mais do que me arrastar pelas ruas. Já não sinto as pernas, então alcanço o banco na praça. Sou obrigado a parar em um lugar que desconheço completamente. Acomodo-me sob a amplitude da praça, uma tarde opaca e úmida. Meu olhar percorre os cantos, os edifícios soturnos, as árvores eriçadas, com seus galhos escalvados. Um misto de ausência e torpor, por minutos nada acontece, a não ser o vento cortante, em rajadas sucessivas. De repente, duas estampas que emergem da saída do metrô e cruzam a praça deserta, céleres, até desaparecerem do outro lado. Invejo-lhes a destreza do deslocamento, a agilidade que não me é permitida. Penso (e só posso fazê-lo porque estou detido) sobre esse movimento acelerado das pessoas, sobre o inevitável ritmo humano na metrópole, como se todos escapassem, desejosos de proteção do ruído incessante, sob o pretexto de um compromisso. Deslocamo-nos almejando o abrigo da sanidade, fugindo do inconveniente sonoro da modernidade, que atormenta e devora.