22 maio 2014

Degenerescência

o patético esforço para criar em cima dos fatos


Com a aproximação das eleições de 2014, a mídia corporativa brasileira retoma uma característica que lhe é peculiar desde o final das eleições de 2002, ou seja, o de desbocar sobre os fatos a ponto de oferecer uma versão, e não a leitura isenta. Com a versão, assume criteriosamente um posicionamento, que distorce a análise imparcial. É o caso em que a interpretação substitui o acontecimento em si, desdobrando-se em hipóteses surpreendentes, dentro do espírito do espetáculo em que se transformou a notícia tratada pela mídia corporativa. 

A isenção se perdeu nos descaminhos do negócio e já não se encontra com facilidade, contaminada que foi pela leviandade despropositada do discurso. Tal leviandade muitas vezes observada e criticada nas análises atentas que repercutem nas redes sociais, seja por meio do jornalismo independente, seja por meio dos novos sujeitos protagonistas, também interessados em analisar e opinar. Vejo nesse protagonismo participativo o saudável contraponto ao espírito desvairado e paulatinamente superado da velha mídia, ou em outras palavras, a renovação do espírito crítico disseminado em rede pelas múltiplas plataformas tecnológicas no lugar da leitura passiva, muitas vezes editada pelos interesses oligopólicos. 

Há um sentimento de fluidez, de liberdade, onde por diversos caminhos é possível recompor uma verdade razoável dos acontecimentos, ainda que para isso seja necessário 'driblar' armadilhas levianas que também despontam na rede. Preferível a livre abundância de análises do que o controle pela escassez! Não pretendo neste momento aprofundar meu ponto de vista, deixarei esta tarefa para mais tarde. Apenas dou vazão a uma impressão pessoal que me leva a refletir. A decadência pode parecer mais amarga do que parece e no caso da velha mídia corporativa, a interpretação que se distancia da realidade se alimenta de um ódio que não convence como argumento.  



01 maio 2014

Primeiro de Maio

Passeata do Partido Obrero, BsAs 2009


(em uma bela noite lá estavam, avançavam pela avenida de Mayo saídos das mais diversas villas aqueles homens, mulheres, crianças desejosos por representar a si mesmos em suas mazelas do cotidiano, em um manifesto que os tornava mais sonhadores que renegados. 
Um primeiro de maio fora de época, como deve ser, a avenida marcada pela performance dos trabalhadores. O fluxo avermelhado demarca os pequenos gestos da invisibilidade e ressalta a portentosa procissão. 
Meus sentimentos da cena, hoje, se aproximam mais do poema de Cesar Vallejo, que transcrevo abaixo, do que da epifania trotskista proposta naquele instante)

    
Traspié entre dos estrellas

!Hay gentes tan desgraciadas, que ni siquiera
tienen cuerpo (...)
parecen salir del aire, sumar suspiros mentalmente, oír
claros azotes en sus paladares!

Vanse de su piel, rascándose el sarcófago en que nacen
y suben por su muerte de hora en hora
y caen, a lo largo de su alfabeto gélido, hasta el suelo.

(...)

!Amado sea aquel que tiene chinches,
el que lleva zapato roto bajo la lluvia,
el que vela el cadáver de un pan con dos cerillas,
el que se coge un dedo en una puerta,
el que no tiene cumpleaños,
el que perdió su sombra en un incendio,
el animal, el que parece un loro,
el que parece un hombre, el pobre rico,
el puro miserable, el pobre pobre!

!Amado sea
el que tiene hambre o sed, pero no tiene
hambre con qué saciar toda su sed,
ni sed con qué saciar todas sus hambres!

!Amado sea el que trabaja al día, al mes, a la hora,
el que suda de pena o de vergüenza,
aquel que va, por orden de sus manos, al cinema,
el que paga con lo que le falta,
el que duerme de espaldas,
el que ya no recuerda su niñez; amado sea
el calvo sin sombrero,
el justo sin espinas,
el ladrón sin rosas,
el que lleva reloj y ha visto a Dios,
el que tiene un honor y no fallece!

!Amado sea el niño, que cae y aún llora
y el hombre que ha caído y ya no llora!

Ay de tánto! !Ay de tan poco! !Ay de ellos!


(Trechos do poema Traspié entre dos estrellas, de César Vallejo, Alianza Editorial, 2013)