30 janeiro 2013

Juan Carlos Onetti



Y el pan nuestro

Sólo conozco de ti
la sonrisa gioconda
com labios separados
El misterio
Mi terca obsesión
de desvelarlo
y avanzar porfiado
y sorprendido
tanteando tu pasado.
Sólo conozco
la dulce leche de tus dientes
la leche plácida y burlona
que me separa
y para siempre
del paraíso imaginado
del imposible mañana
de paz y dicha silenciosa
de abrigo y pan compartido
de algun objeto cotidiano
que yo pudiera llamar
nuestro.



21 janeiro 2013

Tiergarten





 Absorta, em sua quietude,
Plácida, envolta pela brancura sem fim
O tempo como eles, à espera.

Foi quando voltou-lhe a face
Havia uma profunda bondade,
Inscrita em seus olhos.



20 janeiro 2013

José Enrique Rodó



“(...) Pode-se falar do utilitarismo como o verbo do espírito inglês, e os Estados Unidos como a encarnação do verbo utilitário. O Evangelho deste verbo se difunde por toda parte a favor dos milagres materiais do triunfo. A América hispânica já não é inteiramente qualificável, com relação a ele, de terra de gentis. A poderosa federação vai realizando entre nós uma espécie de conquista moral. A admiração por sua grandeza e por sua força é um sentimento que avança a grandes passos no espírito de nossos homens dirigentes, e talvez ainda mais no das multidões, fascinadas pela impressão da vitória. E da admiração há uma transição facílima para a imitação. A admiração e a crença são modos passivos de imitação para o psicólogo. A tendência imitativa de nossa natureza moral - dizia Bagehot - tem lugar naquela parte da alma em que reside a credibilidade. O sentido e a experiência vulgares seriam suficientes para estabelecer por si essa relação simples. Imita-se a aquele em cuja superioridade ou cujo prestígio se crê. É assim como a visão de uma América deslatinizada por sua própria vontade, sem a extorsão da Conquista, e logo regenerada à imagem e semelhança do arquétipo do Norte, paira sobre os sonhos de muitos sinceros interessados por nosso futuro, inspira a fruição com que eles formulam a cada passo os mais sugestivos paralelos, e se manifesta por constantes propósitos de inovação e de reforma. Temos nossa nordomania*. Torna-se necessário lhe opor os limites que a razão e o sentimento representam conjuntamente. (...)”

* Nordomania, neologismo proposto por Baudelaire; Martí utiliza a expressão yanquimania.


(Tradução realizada a partir de Ariel, Catedra Letras Hispánicas, Madrid, 2000).



19 janeiro 2013

Presença de Walmor

Walmor Chagas como Carlos, em São Paulo S/A

Há pelo menos quinze anos associo a imagem de Walmor Chagas com sua personagem quiçá mais portentosa, Carlos, do filme São Paulo S/A. Quando saí daquela sessão de cinema do então Espaço Banco Nacional, aqui pertinho, estava inapelavelmente impregnado pela voz à deriva pela cidade, clamando para si mesma a urgência do recomeçar. Uma atuação elaborada, em diálogo (ao menos, do meu ponto de vista) com as linhas do pensamento existencial de Jean-Paul Sartre. O filme de Person tornava-se meu objeto de pesquisa, a narrativa cinematográfica tendo como fundo o cenário real que tanto amava, a cidade de São Paulo.
...

Ainda hoje me deparo com a limitação dos resultados obtidos, sempre desejoso de recomeçar, de pensar uma complementação para esse projeto mal acabado, sem no entanto saber como. Um desejo diluído pela incerteza.  É como se a paralisia de Carlos - essa representação tão bem delineada por Walmor - me capturasse, fazendo-me alimentar dos ecos de suas idas e vindas, incertas, incoerentes, e arrastando-me para os labirintos indecifráveis de uma cidade igualmente transida, na inflexão de um novo momento histórico.
...

Já não me recordo como, mas há poucos anos consegui o telefone do último endereço de Walmor, nas montanhas. Seria minha derradeira chance de formular minhas dúvidas e compreender o desvario de seu personagem, mas nunca arrisquei uma chamada. Tolo desperdício! Penso hoje que talvez me fosse penoso retomar um trabalho que novamente me prostraria pela entrega emocional, considerando a hesitação em lidar com a memória de uma espacialidade marcada por dolorosas transformações. 
...

Quando a morte de Walmor me alcançou, nesta tarde-noite de sexta-feira, curiosamente me entretinha com uma leitura que dialoga com enunciados sartreanos, o contundente Pele Negra, Máscaras Brancas, de Frantz Fanon. Diante da fatídica notícia, repassei mentalmente as frustrações de Carlos, exercício que aprendi a desenvolver com alguma naturalidade, enquanto o imaginei vagando por uma São Paulo com sobrados e ruas de paralelepípedos. Também me deixei levar pelas incongruências da vida e da morte, por suas sorrateiras formas de nos surpreender.


18 janeiro 2013

Fragmento amoroso



"(...) Suas sombras, sinuosas, projetadas pelo sol imberbe do dia, avançava sob os passos contidos superando os pequenos obstáculos, o solo pedregoso, os tufos de gramíneas mais crescidos, os muros formados pelas pequenas sebes ou quando não, a encosta livre e acentuada que esticava e deformava as sombras ambulantes, estendendo-as no ritmo da marcha até a beirada do rio. Por vezes, eram obnubiladas de modo irregular pelos abrigos das copas de mutambos, de paineiras, para ressurgir um pouco adiante, livres, desenhadas em pleno trajeto. O sol banhava os corpos de lado, ainda em seu frescor matinal, e além de marcar as sombras dos dois caminhantes, espelhava o sorriso frontal dela, quando deixava de observar o chão à sua frente, para mirar os gestos do companheiro, a face em suave penumbra, a porção visível de sua boca, que se movia entre as poucas falas e o silêncio inundado pela manhã. Por vezes, o que captava era o sussurro discreto, e se confundia entre o que imaginava e o que apreendia, os sons invisíveis que ressoavam em conjunção com o voo dos pássaros e com o marulho distante da rebentação.

Podia entregar-se ao prazer de imaginar a fala dele e confirmar sua interpretação a partir do sorriso conivente que recebia, junto com as palavras finais que insistiam em se manter caladas. Por vezes não era o sol da manhã, mas os passeios sob a brisa do crepúsculo, a conversa na varanda, imersa na garoa soturna da noite, o despertar sob as luzes amenas e difusas da aurora. Quantas vezes os toques a acentuar as palavras gentis, as esperas que sucediam os árduos argumentos, percorriam as memórias de uma vida marcada por referências comuns, intensamente comungadas. E deixava-se levar pelo emaranhado dos sabores, das tentações, das recusas de um tempo largamente generoso, sem discernir o que fora mais adorável compartilhar.

De volta ao presente, sabia que enveredava por caminhos que não deixavam de revelar desejos, que a alma leve emanava e simultaneamente abrigava. O percurso pedregoso não era mais do que uma sugestiva metáfora de um encontro inquieto, e a casinha na praia, o doce tecer do destino. O cheiro da água lhe aprofundava as reminiscências vividas e ainda por viver, e transpunha-se para a janela da cabana, a deslizar com o pequeno barco, nas ondulações de um horizonte indiscernível entre o céu e o mar, marcado pelo luar incógnito, encoberto por nuvens revoltas, de bordas douradas. Dedilhava suavemente a franja de sua manta, envolta no pescoço, enquanto deixava-se lamber pelo vento noturno, e logo, pelos braços que surgiam do escuro do quarto e a acolhiam em movimentos delicados, e uma vez no leito, recoberta pelos lábios devotos, em beijos lhe narravam poesias de amor. (...)"


17 janeiro 2013

Fragmento noir



Donaldo retirou o dinheiro do caixa eletrônico e sorriu, um sorriso nervoso, de quem tem um plano estabelecido para aquela quantia sacada. Passou pelos seguranças da agência e, do lado de fora, por dois componentes da guarda civil, que conversavam animadamente. Passou tão próximo que seu coração disparou, e pode distinguir que falavam sobre futebol. A informalidade e a distração dos guardas o recompuseram, permitindo que caminhasse até o ponto de ônibus sem despertar suspeita.

Tomou o 174B porque estava menos cheio, podendo fazer a viagem sentado. Olhava a paisagem com total indiferença e não se deu conta de sua transformação, cada vez mais opaca e cinzenta. Pensava em seu plano, questionando-se se encontraria com facilidade o homem acertado. Repassou mentalmente mais uma vez o que faria, tentou sorrir pela segunda vez. Donaldo era um homem sério, conciso, com uma vida melancólica até ali. Esforçou-se por lembrar da última vez que sorrira duas vezes num dia, pensou nos tempos da tenra infância como possibilidade hipotética. Não gostava de recordar, aprendera a desprezar a miséria humana e a sua vida tornara-se um interminável recomeçar. Agora que estava próximo de um novo passo, concentrava-se na voz que combinara por telefone o trabalho e o preço, tentando associá-la ao tipo de perfil físico mais adequado.

Ao descer do ônibus, olhou para um canto mais afastado e percebeu um homem de capa escura a ajeitar o chapéu, sinalizando para os fundos do beco. As nuvens cinzentas se acumulavam nos céus, as lufadas de vento em forma de redemoinho anunciavam a proximidade da tormenta. Cumprimentaram-se calados e Donaldo entregou os dois mil tratados e mais uma foto, pedindo que agisse o mais rápido possível. Até amanhã estará resolvido, foi a resposta do estranho, que desapareceu no meio da multidão. Donaldo obtivera boas referências do profissional, mas o regresso seria estranhamente penoso, sem nenhuma dúvida quanto ao acerto fechado, porém com a solene visão do desfecho a acompanhá-lo em imagens progressivamente dolorosas.


16 janeiro 2013

Pensamentos fugidios



            Uma voz, quase incidental, no meio da noite. Uma voz feminina que se alternava com uma guitarra plangente, foi o que me despertou. A sutil receita para romper a casca que separava meu sono do mundo real, da janela aberta, das paredes do edifício, do lugar onde nascia a melodia. Deixei-me levar pela crença de um sonho, que afinal de contas não durou muito, fazendo-me órfão, munido de uma consciência não muito clara de minha condição. 

Levantei-me...

                                      ... de onde surgira a voz, abruptamente interrompida? Da mulher dos gatos do quarto andar?, de qual espaço, por entre os edifícios?... Três e quarenta da manhã, ainda atarantado por retomar a realidade em meu cubículo, ou seria esse o sonho aflitivo de uma vida abandonada?, sigo até a cozinha, um copo com água, o corpo esgotado pela jornada desestimulante. O silêncio fez-se definitivo, como parecia ser o mais indicado para o horário...

Nada

Nada de vida no edifício em frente, tampouco da rua, ainda mais silente. Nenhum traço do que fora uma sonoridade sublime, tudo como que diluído no espaço morto de uma noite de outono. Uma sensação sonambúlica, em que a única certeza era a possibilidade de haver sentido uma voz lastimosa, sugada pela indiferença do mundo... 

            Movimentei-me pelo apartamento, sem concentração para uma possível leitura, sem disposição para sair pela noite. As notas da melodia que não me abandonaram... os tons, os minutos, as horas... O rosto intangível, esvaecendo-se. Aguardei um sinal, retomar a emoção efêmera... ausência incorporada em cada objeto ao meu alcance. Esforcei-me por subtraí-la com pensamentos fugidios... agora um copo e uma garrafa de vinho, larguei-me no sofá, exangue...

               Foi então que adentrou o rumor da chuva, seu olor suave, refrescando-me o corpo quente e úmido. O fundo negro da noite permitiu acompanhar a infinidade de gotinhas despencando, agrupadas, tombando nas ruas vazias, descartáveis... nada mais além disso...     e de sorver um copo após outro...  na mornidão sem qualquer inspiração...     nada que pudesse aventar...          ou talvez alguma esperança...  
  
o som do trólebus passando...     a pista molhada...      outro   gole...       o silêncio... 

                   vazio.