19 fevereiro 2013

Passagens




No dia em que remanejamos o tempo, retornando em uma hora o relógio para finalizar o horário de verão, notamos a diferença ao despertar, pela manhã. A faina cotidiana e seus prazos ganharam o que parecia um novo fôlego, permitindo-nos o deleite mais gracioso dos momentos ordinários.

Ao longo da semana, a expansão da disponibilidade parecia se haver alargado de tal modo, que tomávamos o chá das tardes observando longamente o horizonte alaranjado, decorado por suaves granulações de cirrus, enquanto uma infinidade de pensamentos vinha e desaparecia, mansamente contemplados.

Mais um mês e se diluiu por completo a urgência, como se a realidade incorporasse os traços do esboço, o risco de um ensaio livre, sem os desígnios da pretensão. Ao sobrevir a fadiga, bastava recostarmos nossas cabeças, para que os sonhos brincassem com suas formas e conteúdos, recompondo um imaginário de ternas apreensões, um mundo demarcado pela placidez extemporânea. 



17 fevereiro 2013

Benedetti em dois tempos



Vivir Adrede foi um dos últimos livros de Mario Benedetti, publicado em 2007, dois anos antes de sua morte. Nesta obra, composta por 32 breves reflexões poéticas, e 83 cachivaches, pensamentos vagos, soltos, 'descartáveis', fala-nos das efêmeras percepções do mundo ao redor, dos detalhes perdidos na memória, dos sofrimentos e das alegrias humanas. 

Sempre me tocou a obra de Benedetti pela elegância de seu estilo, que a meu ver se robustece ao incorporar paixão dúvida. Paixão por entregar-se com ardor aos seus temas, e dúvida ao reconhecer os limites humanos, a começar pelos seus. Daí a poesia plena, os escritos cortantes e sutis, o estilo que expõe com igual maestria o sensível e o concreto.  

Nesta coletânea, sobrevém a serenidade dos anos, o olhar ainda mais cuidadoso e ainda mais incisivo, mas sempre cadenciado pela ternura humana, inextinguível mesmo nos momentos mais delicados. Sabedor do limite da existência, descreve aleatoriamente o que pode e deseja descrever, o passado, o crepúsculo, o tempo, a piedade, a globalização. Degusta cada palavra, imergindo-nos na serenidade que apenas os longos anos de paixão e dúvida podem brindar.


O SILÊNCIO

"No princípio foi o silêncio. Sombrio, inextinguível, poderoso. Que esplêndida laguna é o silêncio. O ouvido científico e ateu ainda não descobriu qual foi o primeiro som que enfrentou essa calma nem qual foi o ser vivente que proferiu o alarido inaugural.
Nessa questão da origem do humano, os crentes se apoiam no Gênesis e ali se dão conta da aparição de Adão, de Eva e da serpente celestina (também criação de Deus) que organizou os primeiros amores incestuosos. Depois a coisa se fez trágica e os primeiros cainitas acabaram com os primeiros abelitas.
Enquanto isso, o silêncio era um vigia contemplativo, porém imóvel, e assim seguiu de século em século, esquadrinhando guerras de soslaio e esmigalhando pazes, tão breves como transitórias.
A partir daí, o silêncio se apoderou dos insones e também dos sonhos, onde os piores pesadelos convertiam o adormecido em cego e surdo. Assim pois, quando os amantes se abraçam em silêncio não escutam o pulsar de seus comovidos corações. E quando os suicidas ingressam no fim, talvez compreendam que a morte é o silêncio. De sua parte, o silêncio do mar, que escuta sempre, é mais concentrado que o de um cântaro, mais implacável que duas gotas.
Alguns veteranos narram que em sua desgastada sombra apenas o grilo rompia o silêncio, mas quando emudecia a serenata, a escuridão era de novo silenciosa e azul.
Assim posto, para que negá-lo (tal como escrevi há trinta anos), existem poucas coisas tão ensurdecedoras como o silêncio". 


PERSONAGENS

"Lemos e relemos. Quando lemos muito, costumamos esquecer os títulos, porém não dos personagens. Estes perduram mais que a trama romanceada ou o ritmo dos poemas. Em certas ocasiões, o nome do personagem nem sempre fica na memória, todavia seu sopro vital sim, penetra na alma do leitor.
Existem personagens literários em que se oferece um abraço carregado de adjetivos e também existem atraentes bocas femininas em que se recebe um beijo de papel.
Os personagens vibram, avançam, se detêm, voam, submergem, se deixam escolher, e os acomodamos no arquivo das recordações. Alguns são como espelhos e outros são como aliados ou acusadores.
Existem personagens jubilosos e outros com um poço de tristezas. São tão melancólicos que nos contagiam sua melancolia; tão promissores que os aplaudimos nos sonhos. Tão santos que os encaramos com ceticismo, e tão demoníacos que nos espantam o coração.
Existem personagens cegos que nos miram com as mãos e outros delirantes que nos envenenam os hábitos. Existem personagens transparentes e outros irremediavelmente opacos. Há os que cavilam em verso e os que se lavam na chuva. Os que mendigam e os que desperdiçam.
Existem personagens viúvos que choram sem lágrimas e quando terminam com sua liturgia impressa, se evadem do papel e a celebram com seu cônjuge de carne e osso, ao sabor de um beaujolais.
Finalmente existem personagens que quase quase somos nós mesmos. E os queremos, apesar de tudo".

(Textos extraídos e traduzidos da obra Vivir AdredeSantillana Ediciones, 2009).



16 fevereiro 2013




Fui, enfim, ver "NO" e, como em tudo o que diz respeito à política latino-americana, e em especial a chilena, deixei o cinema com a memória recuperando os bastidores dos fatos históricos, que em certa medida, vivenciei à distância. Há uma veracidade elogiável, que começa na forma da apresentação, o diretor Pablo Larraín utilizou-se de tecnologia da época para aprofundar as semelhanças estéticas ao drama narrado, pontuado por clipes publicitários criados na ocasião da campanha. Podemos sentir o pulsar do enfrentamento político a partir dos vídeos que expunham as mensagens do 'si' e do 'no'.

Seis meses antes deste plebiscito estive no Chile, destino de uma longa road trip, que começou em Montevidéu e atravessou a Argentina. Trouxe de Santiago uma impressão amarga, marcada por fantasmas da ditadura e carregada de tensões psicológicas, tendo mesmo passado por duas situações constrangedoras, uma delas diante do palácio de La Moneda, e a outra, a mais difícil, o entrevero com um militar reformado, no ônibus que me conduzia a Viña del Mar, e que relato em alguma parte, aqui, no Chá das Montanhas.

Ainda preservo a agenda de 1988, e lá posso rever minha comemoração pela vitória do NO a Pinochet, o verdugo, que até um determinado momento parecia impossível. Ao final do filme, não revolvi as tristezas alimentadas em outras narrativas, registros das atribulações de nossa história contemporânea. Ao contrário, fui tomado por uma estranha lassidão que se incorporou à memória dos fatos, certamente envolvido pela sequência final, quando, após um formidável painel feito de ideias e criatividade, a publicidade esboça os primeiros passos de seu alienado caráter neoliberal. 

De outra parte, é inegável destacar a importância do relato histórico, afinal de contas, NO é sobretudo um filme que reabilita uma vitória, imensa em seu sentido simbólico.



13 fevereiro 2013

Intermitência



A morte ronda sempre o riso...
há risco, arrisco... e não sei nadar...
só a flutuação branca e serena,
à espera daquela bolha d’água enorme
tão leve
salgando o corpo quando podia...
derrubada,
solta,
presa ao chão de areia fina e cinza e clara
como as unhas...
tocando o botão do térreo...
onde é mesmo o térreo?


por
Mônica Rebecca Ferrari Nunes



04 fevereiro 2013

Elegia Lírica


Vinícius me acompanha desde sempre, ou serei eu quem o persegue a partir de suas marcas... No início, apenas vagamente, como compositor, ainda jovem não conseguia distinguir o grande poeta. E com a maturidade dos anos, adentrei seus versos e passei a fazer o que costumeiramente fazemos quando reconhecemos um mestre, me entreguei a sua sabedoria. 

Como muitas apreensões emocionadas em minha vida, a vez da poesia de Vinícius me instigou por uns anos, no final dos 80 e começos dos 90, época de resistências, de recomposições, de espera de um grande amor. Agora, na passagem de seus 100 anos, retorna com vigor, dando-me a chance de apreciar o restante de sua obra. 

São outras circunstâncias, e o retomo com o afã dos que já não deseja desperdiçar a beleza do instante.

Do instante vivido, do sonho sagrado.


-o-

(...)
Tudo é expressão.
Neste momento, não importa o que eu te diga
Voa de mim como uma incontensão de alma ou como um afago.

Minhas tristezas, minhas alegrias
Meus desejos são teus, toma, leva-os contigo!
És branca, muito branca
E eu sou quase eterno para o teu carinho.
Não quero dizer nem que te adoro
Nem que tanto me esqueço de ti
Quero dizer-te em outras palavras todos os votos de meu amor jamais sonhados 
(...)

O maior medo é que não me ouças
Que estejas deitada sonhando comigo
Vendo o vento soprar o avental da tua janela
Ou na aurora boreal de uma igreja escutando se erguer o sol de Deus.
(...)

No fundo o que eu quero é que ninguém me entenda
Para eu poder te amar tragicamente!


03 fevereiro 2013

Literatura Periférica


Talvez seja uma boa designação para todos que buscamos defini-la, Literatura Periférica, essa imensa gama de escrituras, que uma vez pensada e elaborada nos territórios da precariedade, transborda em sua exuberância para os demais espaços da metrópole. 

Há dois meses, acompanhando a equipe da TVT, tive o prazer de reencontrar com o pessoal da Cooperifa, no jardim Guarujá, ou mais precisamente, no Bar do Zé Batidão, lugar onde se saboreia, de entrada, o melhor escondidinho da cidade, e como prato principal, belas performances poéticas.

Foram feitas imagens e algumas entrevistas com participantes e poetas, e pude contribuir com um pequeno depoimento sobre os saraus poéticos. O trabalho editado e concluído com o título Literatura Periférica, as Vozes das Quebradas, foi levado ao ar nesta sexta-feira passada, dia 1, na TV por assinatura, e pode ser visto aqui, dividido em três partes.

Para quem não conhece força da literatura como um instrumento de transformação social, convido a degustar os quase 30 minutos do programa. Você certamente irá se encantar com a qualidade criativa e argumentativa de nossos poetas.

Bom entretenimento!
     

Iemanjá



Água
sem guarida
espalhada
pelo corpo
na cama
no espelho dos olhos
soluça
balbucia um nome
filho
água
que respira
envelhecida
pálida
água viva


por
Mônica Rebecca Ferrari Nunes