30 outubro 2009

Maria


Quando me mudei para cá, Maria já era uma anciã frágil, solitária, de caminhar vagaroso. Porém, possuía um encanto que fazia de nossos breves encontros no elevador um momento cintilante, reproduzido por seu olhar. Nada que se comparasse aos olhares dos encontros fortuitos, ao contrário, fulgurava em sua elegância de ser, em sua mansa intencionalidade. Maria apenas olhava-me, de lá de seu metro e cinqüenta, e sua expressão se iluminava, recendendo uma satisfação passível de se compartilhar. Restava então o comentário fortuito sobre alguma situação, breve, conciso, pois como morava no quarto andar, tínhamos pouco tempo.

Poucas vezes a vi, ao longo desses anos. Pensando bem, não mais do que uma dúzia de vezes, praticamente uma para cada ano de convivência no mesmo prédio. Convivência, parece-me exagero usar esse termo nesta situação... De todo modo, ao retomar esse tempo e nossos escassos encontros, vejo o quanto Maria se degradou, a exemplo de nosso prédio, de nosso bairro. Maria é a última dos moradores pioneiros, está aqui há longos 53 anos! Veio jovem, recém-casada, com duas filhas, com um futuro por se fazer... penso que mesmo as suas reminiscências se perdem nas brumas do tempo, como hálito ao vento.

Ontem a revi no vestíbulo, o que seria o nosso décimo-terceiro encontro. Estava acompanhada por uma governanta à esquerda e por uma bengala à mão direita. Seus olhinhos azuis me fixaram com dificuldades e o esforço por sorrir não alterou a expressão baça, de um cansaço irrecuperável. Um belo dia de verão iluminava os espíritos, perguntei-lhe se o passeio havia sido agradável. Maria não teve tempo para elaborar sua resposta, o elevador logo chegou ao quarto andar.


28 outubro 2009

Sobre a intolerância


Uma notícia que não deverá repercutir na mídia hegemônica brasileira: hoje, na Assembleia Geral da ONU, 187 países aprovaram resolução que - mais uma vez - solicita o fim do bloqueio econômico, comercial e financeiro imposto a Cuba pelos Estados Unidos.

Três países votaram contra: Palau, Israel (o 51. estado estadunidense, como diz Noam Chomsky) e os próprios Estados Unidos.

Persistem duas questões, a saber:

1) a quem interessa este bloqueio?
2) até quando a intolerância diplomática?



25 outubro 2009

Spassky


Era moleque de calças curtas quando acompanhei meu primeiro ídolo fracassar. Isso aconteceu no famoso 'match do século', decisão do campeonato mundial de xadrez, Robert Fischer versus Boris Spassky, em Reykjavik. Como estávamos em plena ditadura militar (Médici), os jornais tinham espaço de sobra para divulgarem eventos como esse, com sobras de detalhes. As partidas eram transcritas lance por lance, com comentários de nossos enxadristas, e permitia a reprodução dos 'combates' no calor da refrega.

Os soviéticos se sucediam como campeões havia 24 anos e o último estadunidense 'campeão' do mundo fora Paul Morphy, cem anos antes. Nessa época - meados do século XIX - ainda não havia campeonatos do mundo e nem campeões consagrados (a FIDE seria fundada muitos anos mais tarde), mas Morphy era tido, mesmo por seus mais soberbos adversários, como o gênio a ser batido.
Fischer seguia os passos de seu compatriota e era considerado um gênio rebelde. Abandonara torneios na metade, exigia cachês elevados e a própria realização do match de Reykjavik esteve ameaçada até o último instante. Era considerado, pela alcatéia de jogadores soviéticos, como o único rival a ameaçar sua hegemonia.

Do outro lado, Spassky era um perfeito cavalheiro. Arrebatara o título três anos antes, contra o armênio Tigran Petrossian, em Moscou, e chegava com todas as credenciais para manter-se no topo. Tinha 36 anos - Fischer, 29 - e estava no auge da carreira. Abriu 2 a 0 nas duas primeiras partidas (Fischer perdeu a segunda por não comparecência, reclamando do ruído das câmaras de tevê na sala de jogo) e acreditava-se que o campeonato estava decidido.

Em dez partidas, porém, Fischer já abria três pontos de vantagem, numa reação espetacular. Ganharia o campeonato quem atingisse 12,5 (estavam previstas 24 partidas). Parecia difícil que o russo virasse a contenda e foi aí que aprofundei minha torcida para Spassky, tornando-o meu primeiro ídolo.

Chegaram à partida 21, que resultou adiada no 40. lance. Antes de recomeçar, na manhã seguinte, Spassky ligou para o árbitro Lothar Smith abandonando o match. Por muito tempo pensei o que teria ocorrido nessa derradeira noite, com ele e seus inúmeros 'segundos', analisando as variantes insuficientes para impedir a derrota. A União Soviética abdicava do longo mandato de 24 anos no xadrez.

O texto abaixo chega tardiamente, como uma tentativa de acalentar o meu desconsolo da época, que talvez tenha sido maior do que o vivido por Spassky. Posso dizer que hoje, é o estilo do jogo e a fulgurosa trajetória enxadrística de Bobby Fischer que me fascinam.
-o-

A noite transcorreu entre pesadelos entrecortados pelo vaivém no interior do chalé. Nenhuma idéia fixa, apenas as imagens distorcidas do tabuleiro, peças gigantes surgindo e desaparecendo, as brancas devorando as negras. Geller, seu segundo mais próximo, visitou-o pouco depois da partida ser adiada, no início da noite anterior, apenas para perguntar-lhe qual havia sido o lance secreto. Ao saber, sua expressão inquieta traiu a tentativa de manifestar um comportamento otimista. ‘Calma, Boris, acharemos uma variante... descanse e deixe o trabalho para nós’. A equipe de analistas passaria a noite em claro, no chalé vizinho, tentando encontrar uma saída que Boris já prenunciava inexistente.

O tempo esgotava-se aos bocados, fluindo em parcelas desiguais onde se preservava sucessivamente esperança e consternação. O sofá tornou-se o receptáculo derradeiro para um corpo exaurido, as lembranças se sobrepunham sem coerência, Na vigésima partida perdi aquela vitória simples...; O melhor lance secreto era rei na terceira casa da torre... a torre rodando-lhe na mente, em dimensões distintas, indo, voltando, falando-lhe... a situação começava a encetar-lhe uma perseguição tenebrosa pela madrugada... o olhar vagando na escuridão do cômodo, em busca de soluções mágicas, trechos de Scriabin, a Sinfonia número 1, terceiro movimento, Lento, tensão e languidez diáfanas... disputas pelos pensamentos fragmentários, circulares, que só reverberaram o drama da derrota... as notas repetidas mentalmente, entremeadas com os lances reais e os descartados... Quadragésimo lance, bispo na sexta casa do rei... Fischer respondendo peão na quarta casa da torre, o peão livre... Sinfonia número 2... quarto movimento, Tempestuoso, conflito, agitação... retalhos que não desapareceram... que não o acudiram na amargura, o bispo na sétima casa da dama, que de ora em vez lhe anunciava sorrateiro, ao pé do ouvido, ‘Mas que péssima jogada, Boris’...
Ia se acostumando com a responsabilidade de mais uma derrota, a última pelo campeonato, a que lhe arrebataria o título mundial. Seus analistas certamente logo chegariam à mesma conclusão... inclusive Robert Fischer. Visualizou instantaneamente a comemoração do norte americano, sem lamentá-la; apenas remoeu a angústia que qualquer derrota decisiva acarreta... Mais algumas horas e suas turbulências noturnas se condensariam num desfecho lógico, num comunicado lacônico, breve, ‘Senhor Lothar Smith, ligo para anunciar o meu abandono da vigésima primeira partida’...
Sentiu um impulso repentino para abandonar não só o match, mas tudo, sumir, deixando um bilhete de desistência sobre a mesa, os cumprimentos a Fischer, as desculpas para o seu povo... o desejo de tomar um avião ainda na calada da madrugada, rompendo com normas, prioridades, confinamentos, abandonando por uns tempos, ou para sempre, o xadrez... Os analistas-perdigueiros logo chegariam, ‘Boris, encontramos uma variante!... Quantas vezes ouvira esta frase, ao longo de sua carreira de enxadrista, exprimindo verdades e mentiras?... Em Reykjavik, vez ou outra apenas um se dignava a procurar-lhe antes de cada derrota, geralmente Geller, com o olhar grave de quem prescrevia uma tragédia, Boris, não encontramos uma variante... A maneira lacônica de entrar, de tirar o cigarro da carteira, de ajeitar-se na poltrona, eram indicadores que a partida adiada estava condenada e que nem mesmo os bons camaradas podiam fazer algo... Sim, havia tempo para desaparecer antes de Geller bater à porta do chalé... Esquecer Moscou, perder-se no mundo, nos cafés de Paris... essa facticidade das vitórias e das derrotas deixando de fazer parte do cotidiano! Em meio a essa turbulência, foi aos poucos sublimando os fantasmas melancólicos, permanecendo envolto nas ambiguidades que o revés lhe oferecia.
Por fim, o cansaço assomou-lhe a mente esgotada. Refletiu sobre algo como ‘minha derrota encerra uma era, sem se preocupar com as certezas da assertiva. Ao contrário, não demorou em perceber o alcance da sua inutilidade.


24 outubro 2009

José Manuel Zelaya


(Latuff)


"A pocos días está la restitución del presidente que eligió el pueblo hondureño, a pocos días está nuestro triunfo para Honduras y para que vuelva la paz y la tranquilidad" (...)

"No queremos presos ni perseguidos políticos, queremos elecciones con el presidente que escogió el pueblo en la silla presidencial, no queremos elecciones con censura en los medios de comunicación" (...)

"Estamos claros que no aceptamos perder nuestra democracia, perder nuestra paz. Aquí en Honduras, lo hemos dicho a los cuatro vientos, los presidentes los escoge el pueblo en las urnas, no un grupo de elite" (...)

"Están preparando un gran fraude en contra del pueblo hondureño, a nosotros nos asiste la razón, por eso todas las naciones del mundo desconocen a este Gobierno, condenan el golpe y apoyan la resistencia contra el golpe en Honduras".

(por TeleSUR)

-o- 

Este blog apóia desde o princípio o presidente constitucionalmente eleito de Honduras, José Manuel Zelaya Rosales. Não é porque gosto do bigode ou do seu chapéu de texano, mas simplesmente porque ele é o presidente eleito, que foi sacado do poder de modo truculento, na calada da madrugada de um domingo.

Este blog reconhece desde o princípio que houve um golpe de estado, que se instalou um governo de facto presidido por Roberto Micheletti. E reconhece e apóia a luta da resistência hondurenha, que de alguma forma está ativa nas ruas, malgrado todos os esforços de repressão promovidos pela ditadura em vigência. Falo, assim, da existência de uma ditadura, com todas as letras, porque se trata de um regime nascido da violência e que gera violência, para benefício de uma parcela privilegiada da população. 

Um regime de exceção que, como outros regimes de exceção, não tolera a liberdade de manifestação popular e implementa o toque de recolher. E como em qualquer outro regime de exceção, seu ditador vagueia pelos corredores do palácio, assustado com a própria sombra. Ouvi essa descrição numa emissão radiofônica, a voz frágil, porém contundente, de uma mulher que ainda trabalhava no palácio, e que teve a coragem de descrever os passos que ecoavam pelo silêncio...

Acompanho de perto desde o início (28 de junho deste ano) as marchas e contramarchas deste golpe: por uma coincidência, desde o dia anterior estava em Caracas, Venezuela (país onde o oligopólio midiático de nosso país enfatiza que não existe liberdade de expressão...), e ao longo de uma semana colhi informações, em tempo real, seja da TeleSur (com cobertura direta de Tegucigalpa), seja da CNN. Os boletins eram frequentes, e quem quisesse conseguia as informações necessárias, da coloração que desejasse. A TeleSur, como a VTV, a Vive, informavam em cadeia sobre o golpe; a CNN e a Globovisión informavam sobre a substituição forçada do governo.

Os organismos multilaterais de todo o mundo (como a Unasul, Alba, Mercosul na América do Sul, a OEA nas Américas e Comunidade Européia e ONU) condenaram o golpe e isolaram o regime de facto, que sem qualquer sustentação (exceto de parte da bancada republicana estadunidense) provoca um impasse político sem qualquer benefício ao país, postergando o acerto de contas com a população hondurenha e com a história. 

Este blog, portanto, prossegue no aguardo da restituição constitucional, única possibilidade para que as eleições marcadas para o próximo mês reflitam o resultado autêntico da expressão popular, sem casuísmos ou manipulações.



21 outubro 2009

Desfaçatez



El primer ministro israelí, Benjamín Netanyahu, manifestó este miércoles que las denuncias realizadas por la Organización de Naciones Unidas (ONU) a través de un informe emitido el pasado viernes son "mentira", cuando la ONU acusó a Israel de cometer crímenes en la Franja de Gaza.

TeleSUR (Hace: 02 horas)




Aos fatos:

A operação Chumbo Fundido, desencadeada pelo exército de Israel na Faixa de Gaza em dezembro e janeiro últimos, resultou em 1.400 palestinos mortos, sendo que 42% mulheres e crianças;

Morreram 13 israelenses;

Foram utilizadas armas de última geração, de modo indiscriminado, em zonas altamente habitadas;

Acabaram destruídas fontes de água, hospitais e depósitos de mantimentos;

A população palestina (cerca de um milhão e meio de pessoas) permanece bloqueada em seu território, por mar, terra e ar;

Segundo o ex presidente estadunidense Jimmy Carter, em visita à Faixa de Gaza, 'Os palestinos estão sendo tratados como animais'.

Dois anos antes (2007), Hernán Zin havia escrito em seu Chove sobre Gaza:

"(...) Os territórios ocupados da Cisjordânia e Gaza contam com três milhões e setecentos mil habitantes. Nas três últimas décadas, 650.000 passaram por cárceres israelenses, sendo cinco mil menores de idade. No total, 20% da população. Hoje, há quase 10.000 palestinos detidos. Se estima que 450 são mulheres e crianças (...).

As histórias de ações contra os palestinos vão se sucedendo, com maior ou menor intensidade, na mesma proporção que são conduzidas ao esquecimento. Do ataque aos acampamentos em Sabra e Chatila (1982) à operação Chumbo Fundido, se contabiliza uma sucessão de arbitrariedades, dentre as quais, o infame muro que atravessa a Cisjordânia e sobre o qual já comentei aqui neste blog.

Incomoda-me o silêncio que encobre tanta violência desproporcional. E incomoda ainda mais aos que acompanham os fatos ao vivo, como demonstra o jornalista do Haaretz, Gideon Levy, no livro de Zin:

"Quando você vê o que sucede, um milhão e quatrocentas mil pessoas vivendo em condições terríveis, você diz para si, bom, isso não pode continuar assim, em qualquer momento a situação vai explodir. Mas, o que vai explodir? Que podem (os palestinos) fazer? Podem lançar uma bomba nuclear contra Israel? Não há nada que os palestinos possam fazer (para mudar esse quadro). O mais provável é que a situação siga assim durante muito tempo. Gaza não interessa ao mundo, Estados Unidos e a União Européia têm dado mostras disso. (...)"



15 outubro 2009

O amigo Gino



Você deixa o saguão central, atravessa bancos e mais bancos de gente ainda não atendida, alcança a porta e o sol escaldante o atinge ao final da marquise e de sua sombra benfazeja. Caminha uns passos ainda titubeantes, resultantes dos efeitos da anestesia e começa a subir os degraus que conduzem à saída.

Ultrapassa a portaria, vira à esquerda e reconhece o longo percurso até a avenida. Pensa no amigo Gino que encontrará mais tarde, no refeitório coletivo, e pensar nas boas conversas que se seguirão é um modo de entreter sua caminhada, sem remoer a longa espera da madrugada passada. As conversas no saguão central foram, como sempre, deprimentes; os semblantes desgostosos e entorpecidos pela esperança resultaram em uma triste composição de imagens que pretende esquecer. O amigo Gino é a sua esperança, a única que consente, daí seu sorriso inesperado, que se forma discretamente nos lábios. Um belo dia você dele ouviu, “(...) agora finalmente estou preparado para o que der e vier... e sabe por que? Porque estou disposto a correr riscos... Pode ser um pouco tarde, mas agora é que me sinto bem para os desafios...”

A voz quase sem forças de Gino ainda ressoa em seus ouvidos, e você se prepara para encontrá-lo. Você relembra enquanto perambula pelas cercanias opressoras de seu bairro, desmobilizado, sem conseguir organizar os pensamentos. Doloroso caminhar, o calor o detém sob a copa da última árvore. Ainda resta uma trajetória considerável em acentuado aclive, não haverá mais nenhuma sombra fresca. Gotas de suor escorrem por sob o chapéu, umedecendo a cabeça branca. O mal estar aprofunda a angústia, as palavras titubeantes de Gino o alcançam mais uma vez, passo a passo com o apoio da bengala, até recostar-se, por fim, ao tronco de uma árvore, sem forças para outra decisão. Sabe que está morrendo, ainda que segundo o doutor o considere saudável. Uma mentira que lhe parece falta de consideração, ou o que poderia ser pior, falta de comiseração...

Em meio ao estertor, pensa no amigo Gino. O alento por mais um suspiro, um copo de vinho, umas boas palavras e um caloroso abraço e mais nada.

13 outubro 2009

Um mundo de ganâncias


O Brasil é o terceiro mercado de produtos de beleza do mundo. Muitas meninas pré-adolescentes vão à escola com sapato de salto, usando sombra, blush, maquiadas e cabelos hidratados por influência direta dos personagens vistos nos programas infantis. Aprendem a desfilar, não a correr e se exercitar. O Brasil é o país em que as crianças mais veem TV, não é exagero dizer que as brincadeiras e os jogos coletivos perdem espaço para a individualização e sedentarização promovidas pelas horas diante da televisão, e agora também da internet. 

Quando brincam, estão rodeadas por brinquedos exaustivamente anunciados entre os intervalos da programação infantil. Ou seja, ter uma boneca Barbie ou um boneco Jaspion significa ter um produto de consumo igual ao que o/a coleguinha possui, de alta rotatividade consumista. O nosso mercado de brinquedo mobiliza 130 bilhões de reais por ano, sendo intensamente explorado nas frestas de nossa legislação publicitária, como também na ausência de um perfil ético no meio publicitário. Para vender, se tolera qualquer artimanha sedutora, sem qualquer limite.


Entre as crianças se desperta o desejo de consumo adulto: pelos referenciais publicitários, uma criança não almeja simplesmente uma roupa de criança, mas uma calça (no caso da menina) que valorize seu corpo de oito ou dez anos! Há nessa faixa de idade uma rotatividade crescente de celulares, que tem na propaganda a motivação para a constante atualização dos modelos. Se tomamos como exemplo as publicidades de cerveja, temos o papel da mulher como alguém que serve aos machos sedentos, e que desperta o desejo sexual a partir da silhueta lasciva. 

A beleza estética é disseminada para o bem do consumo e não há restrições ao seu poder de sedução. Ocorre que esse padrão estético veiculado pela publicidade distancia-se da realidade, pois as crianças são estimuladas a consumirem alimentos processados industrialmente, em escalas crescentes, abandonando frutas, sucos e verduras. Uma criança que consome uma latinha de refrigerante todos os dias, durante um mês, terá consumido um quilo, cento e quarenta gramas de açúcar. E não falo aqui das doses de açúcar e gorduras contidos nos sanduíches do McDonalds e nos pacotes de Chips e Doritos, produtos com altos índices calóricos e de baixos valores proteicos, tão do agrado da petizada... Caminho aberto à diabetes e à obesidade.


De tudo isso, resta a necessidade de se regulamentar a publicidade na TV, sobretudo quando a grade de programação atende majoritariamente o segmento infantil. Nos países da Europa e América do Norte, isso já ocorre, o que não significa censura ou restrição autoritária, como entende certos publicitários. Na Noruega, por exemplo, é proibida a veiculação de publicidade nos intervalos dos programas infantis. Explorar mercado não é sinônimo de poder qualquer coisa, para se atingir qualificadas metas de vendas. As culturas dominantes se apropriam da inocência infantil para produzirem mercado a partir de seus universos encantados (Disney), demolindo as referências simbólicas de culturas não dominantes. 

Nesta altura vale a pena refletir sobre um ponto crucial: dispor a criança como público alvo (target) de campanhas publicitárias é proporcionar, no mínimo, uma grave interferência em seu processo de formação e desenvolvimento, distorcendo sua maneira de ser no mundo. Temos hoje em dia uma expectativa de vida mais longa, e diminuir o tempo da inocência infantil incutindo de modo precoce a prática exacerbada do consumo, é oferecer à vida adulta mais tempo para reproduzir a destruição do nosso planeta.
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(E.T.: o texto acima foi baseado e inspirado no documentário Criança, a alma do negócio, de Estela Renner, disponível no seguinte endereço:



10 outubro 2009

Uma vitória exemplar



Hoje foi referendada no senado a nova lei que regulamenta os serviços de comunicação audiovisual na Argentina. Um feito notável, que abre caminho para o fim dos oligopólios midiáticos, que define prazo para as licenças de operação no espectro eletromagnético, que estimula a emissão de produtos nacionais, que abre mais espaço para mais vozes da sociedade civil, dentre outras conquistas que certamente mudarão o perfil de radiodifusão sonora e televisiva do país irmão.

Um exemplo notável a seguirmos, quem sabe já a partir da Conferência Nacional de Comunicação, marcada para acontecer em dezembro deste ano.

Mais detalhes sobre la Nueva Ley de Medios da Argentina, acesse:
www.argentina.ar/hablemostodos/noticias/C2396-nueva-ley-de-medios-punto-por-punto.php

(Ahora, me voy a tomar un vaso de vino, por esta conquista sabrosa!... Salud!)


08 outubro 2009

Metamorfose

Foi em um final de tarde de inverno que o senhor Hartman chegou em casa, chamou sua esposa na sala e, em meio a alguns gracejos, disse-lhe de modo grave, com um olhar mais vítreo que o normal, ‘Perde-se o caráter’! Como a senhora Hartman não entendesse o que o marido queria dizer, pensou tratar-se de outra broma característica, voltou para seus afazeres, não sem antes dar-lhe um beijo de boas-vindas, ajudando-o a retirar o pesado casaco, o cachecol, o chapéu, acreditando que ele falasse mais do que queria dizer.

O casal prosseguiu em sua vida difícil e não menos honrada, cumprindo com as obrigações diárias, mergulhado nos afazeres diários, mantendo as dívidas em dia e alimentando-se de prazer nas escassas horas disponíveis aos finais de semana. Os filhos crescidos iam à escola e se saíam bem nas tarefas, animando os pais orgulhosos. A vida prosseguiria em seus trilhos aparentemente normais, e numa opaca tarde de outono, o senhor Hartman estancou na soleira da porta, um tanto perturbado, ‘Ainda menos caráter!...’, pronunciou com o olhar ainda mais rijo. Desta feita, não só a esposa como os filhos estavam presentes. Observaram a tensão do esposo e pai, que se conteve na frase desdita, olhando assustado para os lados. Ato contínuo, retirou os sapatos, a blusa e as calças e dirigiu-se à cozinha, procurando algo para comer. Abriu a geladeira, retirando um pedaço de queijo, suco de laranja, um pote de doce de leite, sacou da cestinha sobre a mesa dois pãezinhos frescos e ao dar cabo com certa avidez dos alimentos, pôs-se a devorar os biscoitos caseiros, preparados pela senhora Hartman para o desjejum do dia seguinte.

Ninguém conseguiu entender a atitude do senhor Hartman, e o pior, não houve qualquer explicação. Apenas acompanharam o que mais tarde definiram como uma inusitada transformação progressivamente conturbada, que se notava em gestos ansiosos e por algumas vezes inconsequentes. De algum modo todos perceberam também a sutil mudança na coloração da pele, cada vez mais cinzenta, os pelos mais alongados sob o nariz, a cabeça mais afilada, as falas menos consequentes. E também a voracidade em se alimentar nos horários menos comuns, independente de estar ou não acompanhado pela família. Foi perdendo o asseio e o interesse pelos assuntos domésticos.

As coisas passavam nessa toada intrigante, em meio às preocupações naturais da família, quando no início do verão, Hartman surgiu com uma aparência desolada, prescindiu de qualquer carinho, atirou a valise no sofá, despiu-se por completo e teve forças para um breve comentário, mais guinchado do que falado, ‘Sem caráter e muita ambição’. Tomou a direção da cozinha e todos puderam ver o corpo ainda mais cinzento, um rabo longilíneo, as mãos mais parecidas com patinhas afiladas, preocupado em esvaziar a despensa para saciar o que mais lhe premia, a fome. Foi então que mulher e filhos perceberam que Hartman havia se transformado em um rato.

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06 outubro 2009

Pasteurização da notícia




Como era de se prever, o ditador de Honduras e seus acólitos começam a deixar o poder que usurparam. E como também era de se esperar, o mundo reconhece a correta conduta do Itamarati. As exceções, além dos redutos conservadores, ficam por conta do jornalismo blasé da CNN e do megalômano oligopólio midiático deste país. Nos dois casos, a notícia distanciou-se de tal modo da realidade que se tornou matéria de ficção, uma ficção descartável, e o público, mais uma vez um campo de testes dessa ficção (o que não significa de acordo com um comportamento passivo e tolerante nessa estrutura impositiva).

Para essa classe de mídia, que encontra ressonância em uma parcela social, ainda hegemônica e ainda dominante, os fatos ocorridos em Honduras nada mais foram do que uma 'transição forçada de poder', que teria se desdobrado em 'um imbróglio entre as partes conflitantes'. Simples assim. Ou seja, além de transformar as relações complexas da situação em um painel insosso, que se ridiculariza por si mesmo, esses meios fazem tábula rasa do que foi uma brutal ação golpista, que baniu um presidente constitucional, reprimiu vozes sociais e empastelou vozes midiáticas.

Mas não quero me estender nesse assunto; o ditador e seus acólitos estão de saída, derrotados, como não poderia deixar de ser. E para o oligopólio midiático que acreditou na boa vontade do ditador, uma sugestão: que tal contratá-lo como cronista ou analista político? E com o tempo, encomendar as memórias do golpe por quem comandou o golpe, ou no caso, a 'transição forçada de poder'. Com a crescente mercantilização da informação, tem-se aí mais um bom negócio.