31 janeiro 2023

Beauvoir


Simone Beauvoir e Sylvie Le Bon

"Meu destino, durante esse período (anos 1930), assemelhava-se ao da maioria das pessoas: também trabalhava para reproduzir minha vida. Minha existência, como a delas, era repetitiva, coisa que às vezes me pesava. Mas eu era privilegiada. A maioria não espera escapar a essa rotina até o momento desejado, e temido, da aposentadoria. A única novidade para elas é a que proporcionam o nascimento e o desenvolvimento de seus filhos: ela se perde no dia a dia, na monotonia do cotidiano. Eu tinha muita disponibilidade: lia, fazia amizades, viajava, continuava a fazer descobertas. Minha atenção para com o mundo permanecia desperta. Minha relação com Sartre continuava viva; não estava escravizada a um lar; não me sentia acorrentada a meu passado. E tinha os olhos fixos num futuro promissor: tornar-me escritora. Era na aprendizagem de escrever que essencialmente minha liberdade estava engajada. (...)"

Simone de Beauvoir, Balanço Final (1972)



20 janeiro 2023

Sobre a caravana e os cães




Sabem, tenho a impressão de que iremos conviver com fantasmas por um longo tempo, enquanto colocamos a casa em ordem. Não sei se a democracia veio para ficar em definitivo, mas enquanto ela estiver por aqui, teremos de nos desdobrar para a sua manutenção eficiente, enquanto convivemos com pesadelos golpistas. Ao que tudo indica, o remédio para essa primeira onda, que veio em 8 de janeiro, está na medida certa: investigações e ações judiciais que identificam os transgressores, fichamento, abertura de inquérito, detenção preventiva. É um trabalho meticuloso levado a cabo pela polícia federal, que vai aos poucos capturando os mandantes, patrocinadores e os arruaceiros. Em suma, vivemos a reinstalação do convívio em um estado democrático de direito, com responsabilidades e obrigações claramente definidas, onde qualquer ruptura é sancionada pelas leis vigentes. 

Sinto-me seguro nesse estado de coisas, sabedor de que a ordem jurídica foi plenamente restabelecida, sem suspeições autoritárias, e consciente de que os valores culturais recuperam os cuidados indispensáveis para sua continuidade. Há um conforto ruidoso, se é que podemos falar assim, onde acompanhamos a caravana passar com cães ladrando, cada vez com menos força e propriedade. Aos poucos se evidencia a canalhice moral de quem se prestou a bagunçar o coreto. Nada mais saudável do que contribuirmos para que os músicos retornem e voltem ao coreto, a tocar as inúmeras variações da sinfonia da democracia. É o que temos por enquanto.



19 janeiro 2023

Buenos Aires, 2023


Celta Bar

Estivemos, eu e Mônica, pela primeira vez desfrutando, juntos, um tempo livre na bela Buenos Aires. Foram seis dias, alguns lugares inéditos para mim, que frequento a cidade há mais de 35 anos. Da Recoleta ao Caminito, do Congresso aos estúdios da rádio AM750, que costumo ouvir diariamente, foram bares, livrarias, praças, avenidas, museus, centros culturais. O clima quente e nublado, com alguma chuva nos primeiros dias, tornou-se tórrido nos dois últimos, sem que isso impedisse que circulássemos pelos espaços portenhos. Foram longas caminhadas, saborosas conversas, deslocamentos por subte, táxi e predominantemente por colectivos, aproveitando a tarjeta de passe que havíamos guardado desde a última visita à cidade. A inflação dos preços não foi impeditivo para o passeio, tampouco o processo político complexo que vive a sociedade argentina e as transformações da paisagem urbana - mais pedintes nas calles, mais pobreza visível. Ao contrário, estas situações nos estimularam a conversar com os atores sociais, garçons, vendedores, atendentes, profissionais liberais, gente como a gente, para que, ao final, pudéssemos consolidar mais precisas impressões do dia a dia portenho. 

Abaixo, algumas imagens de nossos percursos pela terra de Lugones, de Silvina e Victoria Ocampo, de Roberto Arlt.























































10 janeiro 2023

A força das coisas

 

Chegaram, foram escorraçados e agora detidos

Quando o ex-capitão assumiu a presidência do país, há quatro anos, em meio a suas bravatas e grosserias políticas, lembro que considerei neste blog a dificuldade que seria extirpar esse cancro que penetrou a epiderme de nossa sociedade, e sua derrota só poderia ocorrer como algo proporcional a uma destruição completa, semelhante ao que ocorreu aos governos fascistas em 1945. Descartei uma guerra mundial, por sua absoluta inconveniência, nos dias de hoje. Restava imaginar algo de grandioso, que estava completamente fora de qualquer vislumbre nas análises políticas da esquerda. Acreditava que Bolsonaro podia ser derrotado, mas a um custo imenso, a ser considerado. Como se não bastasse a sistemática destruição das instituições e do sistema político do país, levada a cabo ao longo de quatro anos, havia uma abjeta construção destrutiva que prometia um futuro distópico, pautado na mentira, na violência, no preconceito, na prevaricação. O ser consolidado pela má-fé por excelência. 

Com a vitória de Lula nos dois turnos, em outubro, sobreveio uma tensa expectativa, em que os novos tempos democráticos que se anunciavam não viriam sem algum tipo de cobrança. Sabemos o que foram os 60 dias de transição, por um lado os esforços insanos para se garantir um orçamento mínimo para a continuidade dos programas sociais, o teto de gastos com um bonus aprovado pelo Congresso, de 145 bilhões. Isso por um lado. Por outro, o silêncio abissal do derrotado, que não se manifestava a não ser para algumas nomeações políticas. Por fim, fugiu para Miami, o que parecia ser coisa boa, tendo em vista a linda cerimônia de posse de Lula, no primeiro dia do ano. E bastou uma semana para que os piores pesadelos se abatessem sobre Brasília, sob a marca de uma invasão de gafanhotos verde-amarelos, que destroçaram o Planalto, o Congresso e o STF. Foi essa destruição simbólica que me remeteu ao custo que teríamos de pagar para esconjurar, de modo completo, esse mal que nos acometeu.

A invasão anunciada há tempos se confirmou, nos moldes da invasão do Capitólio, dois anos antes. O rastro do arrasamento foi o canto do cisne desse radicalismo desprezível, sem pautas reivindicatórias, sem projeto de nação a não ser o brado de intervenção militar. Demoliram os símbolos de três edifícios, e colheram uma dura derrota quando cantavam vitória, na ação enérgica e imediata dos atores das instituições atacadas, Lula, os congressistas e os juízes do STF, com medidas punitivas que deverão prosseguir por um bom tempo, com a captura de todos os golpistas, dos arruaceiros aos financiadores. Não sem razão, sinto-me mais confiante em nossa democracia e no governo Lula agora, depois da tempestade. Com a retirada forçada dos acampamentos golpistas, não sobra pedra sobre pedra das intensões desses grupos desvairados, alinhados ao que há de pior do bolsonarismo.