16 março 2023

Silvina Ocampo, um conto


Silvina Ocampo


Ele para outra

Esperava vê-lo, mas não imediatamente, porque havia sido excessiva minha perturbação. Sempre postergava nosso encontro, por algum motivo que ele entendia ou não. Um simples pretexto para não vê-lo ou para vê-lo outro dia. E assim passaram os anos, sem que o tempo se fizesse sentir, salvo na pele da cara, nas condições dos joelhos, do pescoço, do queixo, das pernas, na inflexão da voz, no modo de caminhar, de escutar, de colocar uma mão na bochecha, de repetir uma frase, na ênfase, na impaciência, no que ninguém observa, no calcanhar que aumenta de volume, nos cantos dos lábios, na íris dos olhos, nas pupilas, nos braços, na orelha escondida atrás dos cabelos, nos cabelos, nas unhas, no cotovelo, ai, no cotovelo!, na maneira de dizer que tal? ou realmente o que pode ser a que horas? ou não o conheço. Não, Brahms não, Beethoven, bom, alguns livros. O silêncio, que era mais importante que a presença, tecia suas intrigas. Nenhum encontro, que não fosse totalmente absurdo, se produzia: um monte de caixas me cobria e ele, comendo pão e empunhando uma garrafa de vinho e uma coca-cola, pretendía apertar a mão. Invariavelmente alguém tropeçava e o adeus resultava anterior a que tal? O telefone chamava, equivocado sempre, porém a respiração de alguém correspondia exatamente a sua respiração, e então surgiam, na obscuridade do quarto, os olhos dele, na cor aparecia o timbre daquela voz sem fundo, uma voz que a comunicava com o deserto ou com algumas ramificações de um rio que corre entre as pedras sem chegar jamais a sua desembocadura, um rio cujo nascimento, nas mais altas montanhas, atraía aos pumas ou aos fotógrafos que vinham de muito longe a ver essas maravilhas. Me agradava ver pessoas parecidas com ele. Algumas que tinham o olhar quase idêntico, se entrecerravam os olhos; ou um modo de fechar totalmente as pálpebras, como se algo doesse. Me agradava também conversar com pessoas que costumavam falar com ele ou que o conheciam muito ou que iriam vê-lo nesses dias. Mas o tempo já corria, como um trem que tem que chegar ao destino, quando o guarda golpeia a porta do passageiro que está dormindo ou anuncia a estação próxima, o término da viagem. Teríamos que nos encontrar.

Estávamos tão acostumados a não nos ver, que acabamos não nos vendo. Ainda que não estou segura de não tê-lo visto, sequer pela janela. Naquela luz tenebrosa da tarde, senti que algo me faltava. Passei em frente a um espelho e me busquei. Não vi dentro do espelho senão o armário do quarto e a estátua de uma Diana caçadora que jamais havia visto nesse lugar. Era um espelho que fingia ser um espelho, como eu inutilmente fingia ser eu mesma.

Então sentiu medo de que abrisse a porta e que ele aparecesse a qualquer momento e que termissassem as postergações que mantinham vivo seu amor. Se lançou ao solo sobre a rosa de um tapete e esperou, esperou que deixasse de tocar a campainha da porta da rua, esperou, esperou e esperou. Esperou que se fosse a última luz do dia, então abriu a porta e entrou o que não esperava. Tomaram as mãos. Se lançaram sobre a rosa do tapete, rodaram como uma roda, unidos por outro desejo, por outros braços, por outros olhos, por outros suspiros. Foi nesse momento quando o tapete começou a voar silenciosamente sobre a cidade, de rua em rua, de bairro em bairro, de praça em praça, até que chegou aos confins do horizonte, onde começava o rio, em um praia árida, onde cresciam as taboas e voavam as cegonhas. Amanheceu lentamente, tão lentamente que não se deram conta do dia, nem a falta da noite, nem a falta de amor, nem a falta de tudo pelo que haviam vivido esperando esse momento. Se perderam na imaginação de um olvido - ele para outra, para outro ela - e se reconciliaram.

(Traduzido do original em espanhol Él para otra, de Silvina Ocampo. Extraído da página digital El Buen Librero, elbuenlibrero.com)



07 março 2023

Sobre as memórias e o futuro


Um longo dia na vida de Ângelo Domani

Ontem passei por um momento muito especial: dei minha aprovação às provas pré-impressão da capa e do miolo de meu romance. Ele está definitivamente pronto! E o mais gostoso de tudo, ter a publicação. O texto que girou por vinte e cinco anos encontra seu formato e seu conteúdo, que não saberia dizer se é o ideal. Há um lindo prefácio da Profa. Dra. Ana Maria Haddad Baptista, que explora alguns importantes aspectos da obra. Seu primeiro parágrafo me agrada de modo especial: 

"Quando se pensa que tudo está quase perdido ou que os tempos líquidos afogaram, de forma definitiva, as memórias dignas de permanência em termos de literatura... eis que uma voz se levanta e ressoa no impossível vazio de um abismo incomensurável. Eis o que a leitura deste romance nos diz em primeira mão. Ainda existe uma literatura que pode ser chamada como tal. Ainda existe uma literatura que não se rendeu aos apelos de Narciso e seus fiéis seguidores sequiosos e espelhados nas redes das raízes dos nenúfares que enredam, maliciosamente, almas despedaçadas como diria Spinoza." 

Sei que se trata de um resultado bem-sucedido, que me deixa muito satisfeito. Poderia dizer que um longevo objetivo de vida foi alcançado. A alegria que me ilumina é a de ter chegado a um ponto final, a algo que não acreditava que pudesse acontecer da maneira que aconteceu, o texto escolhido ao final de uma seleção de obras, e fazer parte do elenco de escritores de uma jovem editora. Por trás de tudo, o componente afetivo, a ficção calcada nas memórias da juventude, um lugar que esteve muito presente em minha formação e que no texto se apresenta como um cenário vivo, vestígios de realidade e memória, que acolhe o personagem principal e se revela sob um pseudônimo, Buganvília.

Desejo conversar longamente com meu editor e saber como a obra o impressionou. Quando me telefonou comunicando-me da decisão da editora, ele até chegou a descrever o processo, "gostei muitoli o livro em dois dias", mas o cabedal de seus comentários se perdeu em meio aos meus devaneios e preocupações, naquele dia de setembro, com a saúde de meu pai.  

Em suma, para mim, este romance estava fadado a permanecer na gaveta por outros vinte anos, sem que eu chegasse a alguma conclusão sobre a qualidade da obra. Desde meu último livro de crônicas, O que aparentemente nos resta, prometi para mim mesmo que entrava em uma etapa onde não mais pagaria para ter meus livros publicados. Resta alcançar a terceira etapa programada, ter a satisfação de ver a obra circular para além de meu grupo de relacionamento, para outros horizontes.




03 março 2023

De volta ao futuro


Frevo, 1956 (Portinari)


Vejo alguns escritos meus de 2016, 2018, 2021, quanto sofrimento, quanto desperdício. O tempo cronológico passou, e em sua intangibilidade, escorreu, nossa existência envelheceu. Somos os mesmos, menos ágeis, menos atentos e ainda assim seguimos nos desdobrando para encarar os fatos. A vitória eleitoral anuncia o que já intuíamos, a recuperação dos encantos eliminados, a retomada da vida desperdiçada. pela bufonaria instalada neste país, de maneira irresponsável. 

Agora, como tudo não tivesse sido um lamentável equívoco, quem detratou pede suas desculpas, quem agrediu cala-se em seu canto, quem clamou pelo mito ou está preso, ou se faz de desentendido. Esse país segue no seu atávico desígnio de surpreender pelas bobagens ou pela violência - ou por ambos ao mesmo tempo. O ex-capitão não se move em seu doce exílio em Miami, seus filhos e apaniguados submergem em seus comportamentos descartáveis e uma massa de ignorantes políticos sussurra entre os iguais, vez ou outra empunhando uma arma para atirar e matar.

O mais difícil de tudo foi esse inesperado retrocesso da sociedade brasileira como um todo, aquela que nos afiançava (sem qualquer garantia) que as ditaduras, a fome e a desigualdade social ficavam para trás. Os acontecimentos dos últimos sete anos demonstram que não só não aprendemos nada, como involuímos políticamente, abrindo uma fenda divisória, expondo a putrefação de nossa sociedade, que não cansa de apunhalar sua história. Somos submissos, xenófobos, intolerantes, e aprendemos a apreciar a imbecilidade como comportamento. 

Tenho um vazio em meu peito, como se aguardasse o mármore frio da indiferença. Em muitas aulas, e mesmo em leituras de meus textos nos muitos congressos da vida, deixava-me levar pela emoção sentida ao descrever a bravura cívica de nosso povo, de suas lideranças, de seus momentos épicos, as revoltas que tentaram ajustar essa expectativa eliminando a realidade opressora. De súbito, nos restam os Moros, Pazuelos e Fantineis, que vieram apenas para voltar de onde vieram, os becos mais imundos.  

Penso em Florestan Fernandes, que tratou de sua doença em um hospital do Estado por se recusar a gastar o dinheiro público. Darcy Ribeiro, que morreu sonhando este país. Manuel Bomfim, Caetano, Gal e Gil. Penso na luta atilada dos negros escravizados que cumpriam suas obrigações, atormentados em seu cotidiano, desejosos em vislumbrar um futuro mais justo e equanime. Penso nos imigrantes e nos migrantes heróicos, dos judeus aos nordestinos. Penso na força das palavras de Graciliano, na poderosa indignação de Paulo Freire, nas cores brasileiras nas telas de Tarsila, na ousadia dos artistas de nossas periferias urbanas, no dia a dia solene e enviesado, que cortou a carne dos trabalhadores. 

Claro que retomamos um ciclo de civilização que nos permitirá punir meia dúzia dessa infinitude de irresponsáveis e abrir novas alamedas para a vida democrática, e nunca será demais nos debruçarmos para apreciar o final de tarde esmaecido em suas cores do crepúsculo. Ou caminhar com os pés descalços nas areias quentes de uma praia, ao lado do nosso amor, fitando o horizonte, sem o peso da canalhice como norma social. Como disse, nossa existência envelheceu, e ainda que não da mesma forma, é possível lutar e acreditar sem rancor.


 

01 março 2023

Alfonsina Storni, uma poesia

 

Alfonsina Storni (1892-1938)

Alfonsina Storni tem sido muito presente nestes dias, em meus momentos de leitura, de reflexão, de descanso. Suas poesias exerciam um apelo mágico, grandioso, e depois de nossa viagem em janeiro a Buenos Aires, sua presença se acentuou em nosso entorno. Mônica trouxe suas prosas completas, e em meu aniversário ganhei Sou uma selva de raízes vivas, uma coletânea de suas poesias organizada por seu tradutor e estudioso, Wilson Bezerra. No volume, um posfácio magnífico que situa a autora em seu tempo, junto às tensões existenciais, de seus enfrentamentos silenciosos em uma sociedade conservadora até a medula, que resistia em reconhecer seu talento como escritora. E ao final, os suicídios de Horacio Quiroga e de Leopoldo Lugones abrem caminho para que também encontre sua maneira de deixar este mundo, já tomada por um câncer. Em nossas despedidas noturnas, declamo a Moniquinha suas poesias, e ontem foi o momento de Monotonía, do livro Languidez (1920).

  

MONOTONIA


Cono dizer este desejo de alma

Um desejo divino me devora,

pretendo falar, porém se rompe e chora

isto que levo dentro e não se acalma


Pretendo falar, porém se rompe e chora

o que morre ao nascer dentro da alma.

Como dizer o mal que me devora,

o mal que me devora e não se acalma?


E assim passam os dias pela alma,

e assim em seu dano obsessionada, chora:

Como dizer o mal que me devora,

o mal que me devora e não se acalma?


(traduzido do original em espanhol Antología Poética, Ediciones Mestas, BsAs, 2000)