22 abril 2024

Pétalo Nauseabundo, crônicas


O novo livro de crônicas

E eis que já se encontra em pré-venda, junto à Ópera Editorial, e com 20% de desconto, meu segundo volume de crônicas, Pétalo Nauseabundo, no endereço https://operaeditorial.com.br/produto/petalo-nauseabundo/.

Este livro compõe o segundo volume de crônicas, que dá continuidade a O que aparentemente nos resta (Kotter, 2022). Os relatos aqui presentes abordam o período 2020-2021, e a imagem de capa, de meu arquivo pessoal, remete a uma cena urbana de Puerto Vallarta, em minhas andanças pelo México, em 1997. 

No total, são 36 crônicas, com uma apresentação e um posfácio, que sinalizam um período sinistro e devastador para a população brasileira. Tal como descrito em uma delas, "Passamos por um momento tenebroso e muito triste (...) com as políticas de aniquilamento das redes de proteção social, dos direitos trabalhistas, da educação pública". Foi o tempo em que a Covid-19 avançou e ceifou quase 700 mil vidas, sob o olhar condescendente de um desgoverno hipócrita, "que em sua irresponsabilidade cognitiva condenou uma nação ao opróbrio". 

Mas nem sempre prevaleceu o horror: ao longo do livro, desvela-se aqui e ali um olhar mais auspicioso, presente em reflexões sobre o cinema, sobre a literatura, sobre a educação, enfim, sobre a esperança da vida, tal como ela pode e deve ser.

Abaixo, destaco um fragmento de uma crônica:

A noite se faz mais escura que de costume, pois a vejo diante de mim, absoluta, quebrada por um punhado de luzinhas tremeluzentes ao longe. O silêncio da cidade desconhecida não me assusta, não estou cansado ou mesmo deslocado. Não me sinto no meu lugar, e não me esforço em torná-lo, após a superação do estranhamento, simpático. Na verdade, não sei o que faço aqui. Nas inúmeras viagens que realizei por tantas partes, o momento mais ingrato sempre foi a chegada, e o mais triste, a partida, e assim foi em todos os lugares, pequenos, grandes, confusos, atraentes, feios, bonitos. É difícil superar o inesperado na chegada e a amargura da partida. Desta feita, o estranhamento não se desfaz e prolonga-se já como amargura. Sentimentos muito sutis, que vão e veem, sem se incomodar comigo. (...) Há uma brisa que se esgueira pelo quarto, deixando-me serenamente acolhido, absorto em meus pensamentos, isso é um bom sinal. Foi muito fácil chegar até aqui, mas será muito complicado sair, haverá um tempo de espera que parecerá eterno, sem ser ameaçador ou ingrato, como um passeio em torno de uma ratoeira de mentira, que simboliza, despreocupada, o fim de qualquer ilusão, o que também pode ser uma mentira. O lusco-fusco da tarde se acentua, há uma chance de que se possa compreender esse tempo nebuloso e seguir adiante. É isso, estar aqui não me confirma a realidade nem a ficção, não é possível fazer mais do que acreditar, para saber se o que vai acontecer será bom ou meramente desnecessário...



03 abril 2024

Eduardo Galeano, Las palabras andantes

 

Serigrafia, J.Borges


Janela sobre a cidade (I)


Sob os portais da praça, um faquir tragou umas tantas colheres e está engulindo uma mangueira de regar jardins, enquanto suas mulheres tocam flautas e pandeiros e algumas pessoas atira moedas.

Perdido em um canto, alguém move os dedos no ar. Os dedos dançam, como se tocassem a trombeta. Da trombeta invisivel nasce uma música triste.

Uma velha envolta em farrapos anuncia sua poção mágica contra a pobreza, o melhor presente de Natal, a cem, a cem, o frasquinho, quem comprou se salvou, quem duvidou se ferrou. Ninguém a escuta. A mil, a mil, anuncia um profeta a iminente visita do Messias, e a multidão clama:

- Je-sus!

Junto ao profeta, um leão ruge. Cada vez que ele move o rabo, ruge. A mil, a mil, oferece o profeta, vão passando, senhores, os eleitos o verão, o escutarão, a mil, vão passando.

- Forte aplauso que já vem! Já está baixando! Já está chegando!

- Je-sus! Je-sus! vocifera a praça, e os rugidos do leão acompanham os gritos e os aplausos da gente que bate palmas com os pescoços virados para o céu.

O céu, mascarado pelos gases dos motores, não pode ver a multidão que o vê.


(do original Ventana sobre la ciudad (I), em Las Palabras Andantes, de Eduardo Galeano, Siglo Veintiuno, Buenos Aires, 1993)



14 março 2024

Was ist Metaphysik?


A mercadoria como protagonista


O texto abaixo tem pelo menos quinze anos, foi escrito quando ainda atuava como professor de Comunicação Comunitária na FAAP, no curso de Comunicação Social, na época um dos mais concorridos entre os jovens pertencentes à nata da sociedade burguesa paulistana, e bem por essa razão, um dos mais caros da cidade. A reflexão sobre o liberalismo na pós-modernidade, já bastante em voga nos meios acadêmicos, aqui formulado em seu processo de diluição - e não de constituição - do indivíduo livre e bem-sucedido, me parece muito atual. 

Provavelmente em função da fatalidade neoliberal ao longo do processo histórico, cuja essência se manifesta na ambição pelo lucro desavergonhado, lamento as perdas desse tempo: o saudável curso de Comunitária, no qual tive o prazer de contribuir por mais de 11 anos; a decadência da pujança da instituição, que se perdeu em meio às fúteis escolhas administrativas; e a falência do local em que ocorre o encontro com meu aluno, a então magnífica livraria Cultura.

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A livraria estava no caminho do mercado, iria comprar umas frutas para o desjejum da manhã, e vi que ocorria um lançamento, um autor desconhecido de uma literatura que não me interessava. Mas ainda assim achei por bem entrar por uns minutos, ver os títulos recém-chegados, sentir o movimento, o frisson na fila de autógrafos, nada além do que esses pobres desejos. 

Diante da estante de filosofia, folheava uma pequena biografia de Heidegger quando alguém me tocou nas costas. Ao virar-me, deparei com o garçom sustentando uma bandeja em uma das mãos e com a outra enchendo uma taça com um vinho vagabundo. Sorriu-me e proferiu a frase do dia, "Como vai, professor?". Não estava a fim de pensar em nada àquela altura da noite, o cansaço envolvia meus sentidos e a desolação começou a invadir-me. "Lembra-se de mim?", questionou-me, com seu semblante vivaz. Olhei bem nos olhos do jovem garçom que acabava de encher minha taça. Dei uma risadinha sem graça e perguntei como estava. Ele estendeu-me o copo de maneira polida e sem perder a compostura facial, disse que ia tocando a vida. "Consegui este trabalho faz dois meses... com o tempo, consigo uma função na administração...", e me falou de sua conquista sem perder o sorriso prestimoso. Peguei a taça de vinho vagabundo e suas obrigações como garçom aliadas ao meu torpor colocaram um ponto final ao encontro. "Até mais, professor, foi um prazer vê-lo...", e logo se afastou para o próximo cliente.

Pouco depois saí da livraria apertando o passo para encontrar o mercado ainda aberto. Refletir sobre o ocorrido foi uma consequência inescapável. Se foi meu aluno, devia ter se formado em comunicação, e a razão de não me recordar de sua fisionomia confirmava sua discrição como aluno. Bem, não ter passado de um aluno mediano não era razão suficiente para distribuir taças de vinho em um lançamento de livro. Está bem, vamos começar de novo: o fato de ter se formado numa das melhores faculdades de comunicação de São Paulo deveria lhe apresentar possibilidades de voos mais ousados na área. Perguntei-me o que faria com os conhecimentos adquiridos. Nossas conversações sobre a consciência da realidade social, sobre a importância do outro, as discussões sobre os filmes vistos, documentários de Eduardo Coutinho, o Irã de Makhmalbaff e Kiarostami... As leituras feitas sobre a cordialidade em Sérgio Buarque, os debates com Darcy Ribeiro e o povo brasileiro... Tudo parecia se resumir ao sorriso enervante de boa serventia, como se servir um copo de vinho fosse o complemento de todo um ciclo de aprendizado.

Enquanto escolhia laranjas, maçãs, bananas, reconheci o que me havia molestado de modo especialmente cruel naquele encontro: a assepsia, o excesso de zelo, sem lugar para o gesto autêntico do entusiasmo ou da decepção. Ao contrário, o sorriso que permeou nossa conversação foi uma necessidade imposta pelo nosso admirável mundo insosso. Da parte dele, indicou a gentileza do bom atendimento, condimentada por uma conversa acessória, bastante contida sobre o passado recente. E da minha parte, o sorriso evidenciou a satisfação pelo serviço prestado, condimentado pelo breve deleite de ser lembrado por um ex-aluno. Nossas almas não foram recompensadas. Sonhos e emoções diluídos como água na água.

O que me convence da funcionalidade pós-moderna, ainda uma vez, é a engrenagem que se alimenta de frivolidades sedutoras. Não deseja se sustentar por sua força intrínseca, mas por uma eficiente concorrência que se dissimula como essência de nossas ações. Após ouvir a cantilena de que deus é pai, agora me preparo para compreender que a verdade do mundo é ilusão, ou melhor dito, conforme as palavras de Hamsum, citadas por Heidegger, "(o nada) instala-se entre seus ouvidos e escuta o vazio verdadeiro. De todo curioso, uma alucinação (...) Aqui, porém, o Nada sobre nada. Não há nada, nem sequer um buraco. Só se pode balançar resignadamente a cabeça".     



12 março 2024

Sobre a vertigem do imediatismo


A leveza dos mestres


Não existem atalhos para o sucesso, ou mesmo para se estabelecer na competência. Já faz tempo que afastei de mim o cálice das facilidades imediatas que prometem mundos e fundos, no curso dessa contemporaneidade bestificada, falsamente glamourosa, que se pauta no liberalismo tresloucado de mercado. São tentadores os fariseus que prometem mundos e fundos em apenas sete passos. A foto acima é bem sugestiva, os mestres que aprenderam com outros mestres, em uma lenta lapidação de suas vivências como seres lançados no mundo. Lembro-me de uma entrevista de Vargas Llosa com Julio Cortázar, nos anos 1960, quando lhe pergunta o que faria se um jovem de 15 anos quisesse aconselhar-se para se tornar um escritor, Ao modo dos mestres Zen, quebraria uma cadeira em sua cabeça, respondeu Cortázar, e completou, Se apesar de tudo minha resposta não fosse clara, eu lhe diria que só o fato de buscar conselhos alheios sobre a produção literária, confirmaria sua falta de verdadeira vocação

Há duas coisas importantes, a meu ver, nessa resposta simples e contundente do grande Cortázar: como disse no começo, não existem atalhos para a satisfação egoísta de um desejo; e que a vocação não é algo que se mede (ou se acrescenta) com conselhos, ainda que da melhor qualidade. No lugar da ansiedade egóica, a humildade do trabalho perene, o esforço de aprendizagem sem data de validade, com os mestres que nos inspiram. E isso não significa um curso pago de capacitação, mas a capacidade natural de agregar conhecimento à vocação. Claro, há que se ter uma vocação, do contrário, não há como desenvolver a virtude inata. Me chama a atenção a profusão de pretensos cursos para fazer de um bom redator um escritor bem-sucedido, tomando-se como base a criação narrativa de escritores consagrados e... exercícios, com trocas coletivas de escritura. Não espere que o milagre venha dos céus, pois não vem. 

Em um de seus cursos de cinema proferidos no Colégio São Luiz, em certo momento Luiz Sérgio Person comentou, provavelmente no limite de sua paciência, que naquela sala não tinha ninguém que se daria bem como diretor, a não ser aquele barbudo ali do canto. Referia-se ao jovem Carlos Reichenbach. E é fato, nada mais se soube dos outros trinta ou quarenta estudantes, se é que estavam ali para almejar alguma coisa com cinema, além de conhecimento. Porque as coisas são assim mesmo, não brotam mestres ao acaso, após uma roçada feita com esmero, ou após se cumprir os malditos sete passos da sabedoria. Em um mundo voraz, impaciente e cada vez mais ganancioso, convém mais do que nunca lapidar a vocação com paciência, e que a inspiração seja a matéria resultante de leitura dos mestres, uma leitura desinteressada e contínua. Que a caravana passe, os cães continuarão ladrando. A beleza toda está nesses pequenos movimentos de prazer.

    

06 março 2024

Terra Devastada no Al Janiah


Um delicioso lançamento!


Demorou um pouquinho, mas por fim publico palavras e imagens do que foi o lançamento de Terra Devastada, no mezanino do simpático e acolhedor Al Janiah, coroado com a sensível leitura dramática do Coletivo Parêntesis de Teatro. Uma bela confraternização, para além do que podia imaginar. Foram muitas as pessoas presentes: queridos amigos de longa data; novos amigos que conheci ali no evento; meu irmão Júlio representando a família; minha editora Caravana, na pessoa do grande Claudio Gonçalves (que realizou belas imagens); minha amada Moniquinha, com seu sorriso contagiante; a juventude entusiasta de Ulisses e Gabriel. Em suma, uma noite completa, colorida, palestina, inesquecível. 

Abaixo, alguns registros da noitada.































20 fevereiro 2024

À flor da pele


Diego Rivera, A noite dos pobres

Antes que me esqueça dos pequenos gestos, escrevo. No convívio com meu tio Hoffman, por estes dias, a expressão de um homem firme e desgastado pelo tempo. Foram dois dias no hospital, somente eu e ele. Noites que passaram silenciosas, que escorreram como córregos condenados. Sua mão segurava a minha com força, nas limpezas e trocas de lençóis. O olhar sereno não se despregava de uma hipotética visão débil, que lhe sorria com compaixão. Quando permanecemos a sós, continuei segurando sua mão, dizendo-lhe que contaria histórias. Ele aprovou, e ao longo da narrativa, o mesmo olhar incerto, um delicado sorriso por talvez reconhecer-se como protagonista da narrativa. E depois, o mergulho no mesmo sono das horas indefinidas.

Já em casa, em uma das noites, outra vez as mãos que se agarram, sinto a textura forte da pele e da carne de seus dedos, de sua palma, é uma mão que não difere de outras tantas. Pergunto se está tudo bem, ele me responde com clareza, ‘maravilhoso’. Permaneço um pouco mais, seus olhos na penumbra, tão atentos quando nas ocasiões em que se põe alerta. Digo-lhe que contarei mais histórias e pergunto se gostaria de ouvir, ‘é’... a resposta que assente de modo positivo, mais simples de dizer do que ‘sim, quero continuar a ouvir’... Ficamos conectados mais um tempo pelas mãos, retorna o balbucio de palavras indecifráveis, e logo pronuncia um ‘eu te amo’ límpido e fulminante. Precisei aguardar toda uma vida para testemunhar tamanha emoção.

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Segue o massacre em Gaza, agora o objetivo final da destruição, Rafah, mais um nome palestino a ser riscado do mapa, A autorização por parte da comunidade internacional para essa violência inaudita me estranha: em nenhuma circunstância se verificou o direito continuado por um grupo eliminar outro de maneira tão aberta, excessivamente acintosa! Os foguetes caem dos céus e explodem quarteirões. Os hospitais são invadidos e pacientes sofrem com as consequências. O deslocamento contínuo traz o rastro da fome, a incerteza no futuro, o perigo de existir. A faixa de Gaza tornou-se no inferno terrestre. Como se não bastasse, os drones que flutuam sobre as cabeças emitem um ruído contínuo, uniforme, sem fim, enlouquecendo as pessoas. Não há escolas, não há trabalho, não há vida comunitária, tudo se transforma em um contínuo fluxo migratório, sem destino, cujo limite final parece ser Rafah, onde um milhão e meio de pessoas estarão concentradas, esperando pela condenação final.

Não me parece oportuno ficar comparando o que foi a maldição do holocausto com o genocídio que acompanhamos ao vivo e em cores sinistras. Por mais que sejam horrores historicamente distintos, e são, o que interessa aqui é condenar um e outro, com a mesma repulsa de humanidade que nos resta. Se não é justo comparar os dois acontecimentos, nada justifica a continuidade do massacre em Gaza, sob qualquer pretexto. Se é exagero colocá-lo no mesmo patamar do flagelo judeu, é igualmente inadmissível que se mate aos borbotões, sem distinção entre inimigo armado e população civil, a homens, mulheres e crianças. Os números se aproximam a 30.000 mortos, e sabe-se lá quantos feridos e desalojados. Uma região toda foi pelos ares, e uma vez mais fico a meditar, seria preciso implodir a comunidade da Maré, para destruir o Comando Vermelho? Afirmar positivamente não passa de uma retórica para a validação da limpeza social.



11 fevereiro 2024

Lançamento Terra Arrasada



 

É no próximo sábado, 17 de fevereiro, das 18 às 21 horas, no Al Janiah, um local bastante agradável e muito propício para esse evento. 

Será uma grande alegria receber os meus amigos e todos que tenham interesse por uma narrativa dramatúrgica do martírio palestino, cujo arco narrativo vai do episódio de Sabra e Chatila (1982) até a Operação Margem Protetora, o ataque a Gaza (2014).

Abaixo, o trecho da peça que ilustra a quarta capa:


CORO DOS MORTOS

O discurso da resistência alimenta nossa causa!... mas por mais que os erros se acumulem, prevalece a brutalidade insana que aflige o nosso povo, os vivos e os mortos!... Qual a lógica de tudo isso?

CORO DOS VIVOS

Qual a lógica de tanto infortúnio se não tivermos a esperança nos dias vindouros? Se o que nos resta é o amor pela vida e a preservação de nossa cultura, que sejamos fortes nestes momentos de dor... O doutor Hassan é este bravo que luta pela vida!



08 fevereiro 2024

A infinitude do finito


A luminosidade noturna de Zagreb, 1989

 

Penso que a consciência da finitude, com o fim escancarado diante de nós, expõe toda a instabilidade do ser, e arregimenta os demais seres ao redor; é um mistério esse fracasso que sobrevém e se revela para o indivíduo, para cada qual em etapas distintas da vida, convencendo-nos, afinal, sobre a efemeridade. Há duas maneiras de encararmos os fatos: pode ser uma descida calma aos confins do nada, ou pode ser um espernear vulgar e dramático até o nada nos abraçar. Vejo o pobre senhor Blixten resistindo bravamente, enquanto perde suas forças vitais, cedendo vez aos braços ao redor que querem ajudá-lo, amenizando a irreversibilidade do fim. Há vida, ainda que o fim sobrevoe delicadamente, e chegará um momento que a vida se fundirá com o nada, tal como anuncia Neruda em seu verso sobre a magnólia desatada na espuma, que eternamente volta a ser e a não ser nada. De pouca valia será persistir no desatino ou nas fragrâncias da magnólia desatada. Será a vez do vale misterioso, a vez da finitude atravessada pelo infinito, o esboço que não mais se manifesta, a síntese do grão e do espaço absoluto.

(atualizado, 08.02.2024, 9h)



29 janeiro 2024

Por que cantamos - Benedetti


Gilberto Gil cantando


Por que cantamos


Se cada hora vem com sua morte

se o tempo é uma cova de ladrões

os aires já não são os buenos aires

a vida é nada mais que um alvo móvel


você perguntará, por que cantamos


se nossos bravos ficam sem abraço

a pátria morre de tristeza para nós

e o coração do homem se faz pedacinhos

antes ainda que exploda a vergonha


você perguntará, por que cantamos


se estamos longe como um horizonte

se por lá ficaram árvores e céu

se cada noite é sempre alguma ausência

e cada despertar um desencontro


você perguntará, por que cantamos


cantamos porque o rio está vibrando

e quando vibra o rio/vibra o rio

cantamos porque o cruel não tem nome

e em vez disso seu destino tem um nome


cantamos porque a criança e porque tudo

e porque algum futuro e porque o povo

cantamos porque os sobreviventes

e nossos mortos querem que cantemos


cantamos porque o grito não é bastante

e não é bastante o choro nem a bronca

cantamos porque cremos nas pessoas

e porque venceremos a derrota


cantamos porque o sol nos reconhece

e porque o campo cheira a primavera

e porque neste tronco e naquele fruto

cada pergunta tem sua resposta


cantamos porque chove sobre o sulco

e somos militantes da vida

e porque não podemos nem queremos

deixar que a canção se torne cinzas.


Traduzido do original em espanhol Por qué cantamos, de Mario Benedetti. 

Antología Poética, Alianza Editorial, 2008.



19 janeiro 2024

Gaza, Argentina (ou a culminância do fracasso humano)

 


O governo Milei divulgou nesses dias a inflação anual na Argentina, que chegou a 211%, a maior do continente, superando a da Venezuela, que ficou em 193%. Não pude reprimir um sorriso de ironia, menos de satisfação - pois sigo admirando a Argentina de Alfonsina e Maradona. Como são estapafúrdias as soluções mágicas desse neoliberalismo tão assanhado quanto infeliz, que despreza o bem-estar social e vem sempre animado por infindáveis analistas políticos e econômicos que se atropelam e nunca conseguem justificar uma linha dos planos econômicos que anunciam o flagelo. Uma caravana de insensatos.

Tanto mais terrível ao ver os esforços de Milei para coibir a grande manifestação política marcada para 24 de janeiro, prometendo punições aos funcionários públicos que faltarem ao trabalho. As centrais sindicais também foram avisadas das multas milionárias por organizarem a greve geral. Fico pensando das consequências internacionais se fosse Maduro quem tivesse condenado uma mobilização da direita, nos termos de Milei! Ataque aos direitos trabalhistas - salários congelados nesse momento de hiper-inflação; restrição aos direitos cívicos; privatizações das empresas nacionais, superavitárias ou não; majoração dos preços do transporte público, dos produtos da cesta básica, da energia elétrica, do gás de cozinha, da gasolina; fim completo dos subsídios para com as empresas prestadoras de serviços... 

Antes disso, nesta semana Milei esteve no convescote empresarial-financeiro das montanhas da Suiça, Davos, e pelo teor de seu discurso de 23 minutos, foi tentar prestar contas aos seus senhores. Nenhuma análise do quadro econômico de seu país, tampouco nenhuma referência ao drama de seu povo, que tem mais de 40% abaixo da linha de pobreza. Sua fala foi um ramerrão repetitivo sobre as virtudes do capitalismo empresarial, que alternava com os temores de uma hipotética penetração socialista nas instituições. Condenou ainda uma vez a existência do Estado como entidade reguladora do bem-estar social, condenou o coletivismo ao tempo que enaltecia o individualismo produtivo e a ambição. No fundo, um discurso de uma tristeza profunda, que mesmo com aquele público seleto e bem-fornido, não deve ter despertado profundas simpatias. Milei não é carismático, é antes um sujeito perdido em sua solidão libertariana, procurando ser um bom discípulo do laissez-faire de Chicago (Milton, o nome de um dos seus cães) e de economistas como Rothbard (cujo prenome, Murray, nomeia outro dos seus cães). 

Sua vitória em dezembro significa um ataque frontal e sem escrúpulos das corporações transnacionais: as reformas que ficaram para trás no governo Macri, serão retomadas com toda a força neste governo Milei. A respeito da hegemonia econômica e política, conforme Eduardo Basaldo em seu livro Endeudar y Fugar: 'en última instancia, la intención es poner en marcha una modificación de la naturaleza del Estado que permita aplicar una nueva política económica (...) con el propósito de consolidar la dominación del capital sobre el trabajo (...)'. A chamada Ley Ómnibus, que segue sendo analisada nas comissões de deputados, tem prazo para ser votada, dia 25 de janeiro. Significa dizer, ação impositiva, veloz e avassaladora tanto quanto possível, não oferecendo possibilidades de discussão do pacotaço, que atinge todas as áreas da vida do cidadão argentino. Não há mais limites para a desfaçatez, apoiada de modo insofismável por outras instâncias do poder real, a mídia, as corporações financeiras, a justiça, os próprios representantes do poder legislativo...

Sofremos algo similar em 2016, com a ascensão de Temer e sua trupe de salteadores, e que culminou no absurdo chamado Bolsonaro. Porém, a pujança da economia e uma certa resistência em setores da inteligentsia brasileira, mesmo nesse período de decisões esdrúxulas, conseguiu impedir a destruição programada. Não sei se os argentinos estarão aptos a rechaçar essa poderosa ameaça, não de Milei, a marionete de plantão, mas dos que comandam os fios, e que parece, estão decididos a levar adiante o espetáculo da miserabilidade capitalista. 

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Tenho visto alguns vídeos realizados na precariedade de Gaza, como os de Motaz Azaiza, que descrevem a desolação do território palestino. Sua energia é algo exemplar, sempre circulando ao lado de ruínas, áreas demolidas, ruas congestionadas, crianças esfomeadas que engrossam o número de pessoas desassistidas, que se deslocam de um lado para o outro em busca de segurança e alimentação. Enquanto isso, a União Europeia e os Estados Unidos fazem de conta que não existe morte e destruição em Gaza. Aqui e ali, a manifestação isolada de um deputado, ou um intelectual de esquerda, ou manifestações com boa participação, mas que não têm qualquer peso na balança das decisões. Netanyahu tem as mãos livres, e cheias de sangue, para prosseguir quanto quiser, à maneira que desejar. Mais de 24 mil palestinos foram mortos, e a contagem não para.

O pior de tudo é que não há esperança para a causa palestina. Quando essa ofensiva israelense terminar, e isso levará meses, não existe qualquer chance da formação de um Estado palestino, e isso Netanyahu reiterou nestes dias. O que será de Gaza destruída? Seguirá isolada e bloqueada, sem qualquer autonomia, sem qualquer plano de desenvolvimento social, sem qualquer investimento externo? O que foi feito com a infraestrutura, hospitais, escolas, creches, comércio, locais de trabalho, de entretenimento? Quem estenderá a mão aos palestinos? Ou Gaza será permanentemente ocupada, com direito a novos assentamentos judeus? Tudo é muito triste, e vejo uma certa continuidade ostensiva e determinante de uma nova ordem de violência do neoliberalismo, uma violência de intensões, que elimina o oponente, que não se constrange em transgredir, que não deseja respeitar a não ser seus próprios e grosseiros interesses, de algum modo descartando gente, e nesse sentido, representando a culminância do fracasso humano. 

É provável que desde o 11 de setembro essa nova ordem vem sendo gestada, cada vez mais histérica, acintosa, mesquinha em sua essência, mas quem está aí para isso? 

(atualizado em 08.02.2024)



09 janeiro 2024

Terra Devastada, a peça (3)


Tal Alzatar não se rendeu, Ismail Shimmout

Já está em edição meu texto dramatúrgico, Terra Devastada, que sai até o final deste mês, pela editora Caravana. Os duros enfrentamentos que persistem em Gaza há mais de três meses, com a morte de mais de 20.000 palestinos, faz de minha peça um inesperado libelo contra a violência desatada pelas FDI. Cerca de 9.000 crianças, uma a cada dez minutos, segundo a ONU, foram assassinadas até aqui, mais crianças nestes 90 dias em Gaza, território de 365 quilômetros quadrados, do que em 700 dias na Ucrânia, sob a mais completa indiferença dos líderes da União Europeia e dos EUA. 

Os sionistas se movem com toda a liberdade de ação, e cometem toda espécie de brutalidade no território palestino. Minha peça é anterior a todo esse despautério do governo israelense. Começou a ser escrita há 40 anos e aborda os eventos de Sabra e Chatila, e mais tarde as ofensivas aéreas da Operação Margem Protetora. A ação dramática de Terra Devastada é um passeio no parque diante das atrocidades verificadas nestes dias. Minha intenção foi considerar com leveza e seriedade o ponto de vista palestino, e me parece que o resultado final da peça é bastante satisfatório. 

As informações midiáticas sobre as operações israelenses, na maioria dos casos, é patética, parcial e muito distante do que de fato ocorre. Em outras palavras, discute-se o alcance das operações militares e seus possíveis objetivos, como se fosse um jogo de diplomacia da Grow, sem se considerar a tragédia humanitária que afeta mais de dois milhões de pessoas. Um horror tão completo, que mais parece um entretenimento virtual de destruição e morte. Um game em tempo real, com alvos reais. Nada detém a máquina de destruição de Netanyahu, simples assim. 

A imagem acima, de Ismail Shimmout, ilustra a capa de meu livro. Não consegui o prefácio que desejava, ainda que consultas tenham sido feitas com mais de um autor. As negativas não surgiram por receio ou divergências políticas, mas pelos inúmeros compromissos profissionais nessa época do ano, que impossibilitaram um texto de apresentação mais criteriosa sobre a minha peça. O volume termina com uma nota do autor, uma rápida análise da conjuntura política atual. Talvez tenha sido melhor desse jeito. Um sentimento de satisfação e dever cumprido me envolve calidamente ao ver este trabalho finalmente concluído.