20 outubro 2020

A Bolívia ressurge

 

Luis Arce, presidente eleito

As eleições presidenciais de domingo, 18 de outubro, reconduziram o MAS, Movimiento al Socialismo ao poder. É o que indicam os números ainda extraoficiais, porém reconhecidos pela própria oposição. Sente-se que a vitória, por mais de 20%, calou de maneira profunda nas hostes da direita golpista, que desde novembro do ano passado governa de facto a Bolívia.

A violência policial desses onze meses, as perseguições políticas, a censura das informações, a corrupção descarada, encontram seu final com a recondução de um político referendado pelo voto. Ouvi as palavras de Luis Arce em uma suave entrevista à rádio AM750 de Buenos Aires, ainda em campanha política, quando pesadas nuvens cinzentas pairavam sobre o pleito de domingo. Trata-se de político e economista de grande envergadura, que estará amparado pelos pilares populares de uma nação plurinacional, a cumprir o caminho de desenvolvimento social. 

Foi uma vitória bonita, colorida, que exulta e traz esperanças de dias melhores para a América Latina. Uma vitória que rompeu, a meu ver de modo contundente, com a hipocrisia das classes dominantes e com a truculência dos grupos paramilitares ligados a uma extrema-direita restrita à órbita de Luis Camacho. O golpe caiu como uma fruta podre, de modo ruidoso, e aparentemente ninguém mais o pranteia. Mas as entrelinhas dessa grande vitória nos escapam, visto que pouco soubemos ou acompanhamos da resistência popular na Bolívia, construída dia a dia.

Por isso quando vejo as imagens da agora eleita senadora Patricia Arce, me orgulho com a persistente resistência dos povos originários e tradicionais de nosso continente, principalmente nesses momentos de conquista. É lindo de se ver. Uma mulher vilipendiada pelos gorilas encapuzados da direita, que a humilharam e a perseguiram, "Habrán podido cortarme el pelo, tal vez golpearme, pero mis ideas siguen intactas", comentou na ocasião, ao recuperar seu cargo de prefeita de Vinto. 

Agora, Patricia dá a volta por cima e, com altivez, assume o cargo de senadora após estrondosa votação, certamente não para buscar vingança pessoal e reagir como seus inimigos, de maneira tempestiva e inconsequente, mas para levar avante um projeto que permitirá a recuperação social, econômica e democrática da Bolívia.

No próximo domingo, haveremos de comemorar o resultado do plebiscito no Chile.



13 outubro 2020

O fragor silencioso de cada dia


Apreensões que se mesclam com a inquietude do jazz


A ausência forçada das salas de aula nos últimos dois anos me propiciou, quase como uma tarefa compulsória, retomar meus escritos e aprofundar minhas leituras literárias. Escrever para mim sempre foi um ato de libertação e de comprometimento, em um primeiro momento dentro de um ponto de vista pessoal, e com o passar dos anos, em uma amplitude social. Essa proposta de engagement sartreano me lançou para um embate sobretudo contra o conformismo burguês, que em nossa realidade desigual e segregada, é condição para a permanência da miserabilidade em que vivemos. 

Os contos do meu primeiro livro, A Paixão Inútil, escrito ao longo de quinze anos e lançado precariamente em 1997, apontava para as mazelas de uma classe média acomodada nos vícios burocráticos e assim, incapaz de uma escolha autêntica. A paralisia em torno dos efêmeros objetivos de vida. Os personagens, isolados em suas angústias frívolas, não escapam para uma vida efetivamente responsável, que ofereça um verdadeiro propósito de liberdade. 

Com O fragor silencioso de cada dia, dou sequência cronológica a minha escritura, apresentando relatos mais curtos, abrangendo circunstâncias muito diversas do cotidiano, talvez esse incômodo renovado, que se esgarça em suas nuanças ao revelar situações que conformam o sentido de nossa existência. Não há aqui qualquer intenção moral, os 57 textos são 57 momentos os mais diversos de averiguações que pactuam com a inquietude do jazz, e não por acaso, divididos em partes que se referem ao álbum Meditations, de John Coltrane, CompaixãoConsequênciasSerenidade

Meditações que, antes de uma aceitação metafísica, com o que certamente nem Coltrane estaria de acordo, formula algumas das tensões dialéticas que nos inquietam, e pelas múltiplas facetas de cada narrativa, propõe sondar os abismos profundos, como também apreciar  as auroras tranquilas de nossa condição humana.



08 outubro 2020

Poesia 09

 



RÉQUIEM SOTURNO

  

a velha

insensivelmente

balbuciou algo incompreensível

esforçou-se por levantar

                   de seu catre imundo,

                   (oh, mundo perdido!)

                   e tropegamente caminhou

                                      a carne enrugada

                                      as ancas em dor

                                      o reumatismo arcaico

 

e chegou a uma mobília

                   e apoiou-se

                                      esgotada

 

E lembrou, e lembrou

como era feliz aos vinte anos

                   e ainda mais

                                      aos quarenta.

 

  

                                                                  (fev/1982)



05 outubro 2020

Chá nas Montanhas, 12 anos!

Um bolo português para comemorar!


E o blog Chá nas Montanhas chega hoje, dia 5 de outubro, aos seus 12 anos! Um adolescente, que não deixa de expressar os questionamentos sobre a realidade cotidiana. Sinto-me feliz em chegar a esse ponto, como um pai que vê e sente o resultado de uma dedicação contínua, sempre com muito amor. Ao longo desse tempo por quatro presidentes, dois exercendo a plena democracia, um golpista e um adulador de torturadores. O mundo se transformou dramaticamente, com o capitalismo mostrando suas garras ferozes e sua sede de sangue, destroçando muitas conquistas trabalhistas que surgiram no pós-segunda guerra. 

Uma nova ordem se estabelece, pautada na inteligência tecnológica, que cerceia nossas liberdades pelo controle e pela mentira. O prazer da vida encontra-se em refúgios cada vez mais raros, mais distantes e exclusivos, para o desfrute de uma casta progressivamente privilegiada e moralmente mais canalha. 

Bem, hoje é dia de comemoração. O blog me permite cumprir parte de minha função social, pelo engajamento nas questões sócio-político-econômicas, e isso o faço de modo contínuo nestes mais de 4.400 dias e 647 textos publicados. Foram mais de 1.370 páginas escritas, em média cerca de 4,5 postagens por mês, o que dá uma publicação a cada 6,8 dias, ou, uma a cada semana. Nem sempre esse prazo foi devidamente cumprido, no começo as postagens proliferavam mais ansiosas e foram diminuindo até encontrar uma média sustentável, que hoje gira entre duas a quatro por mês. 

De todo modo, ao longo desses doze anos, nunca ultrapassei o prazo de três semanas sem publicar um texto. Houve meses em que os compromissos com aulas, congressos, escritura de textos acadêmicos, além das demandas da vida cotidiana, fizeram com que escrevesse bem menos. Mas agora, às portas da aposentadoria e apaixonado por uma mulher maravilhosa que me entusiasma a escrever, tenho feito o que sempre imaginei para este blog, publicar crônicas mescladas em minhas experiências pessoais e em temas ou autores que mereciam uma reflexão mais apurada.  

A política segue prevalecendo nas análises, porém me vejo mais atento às sutilidades humanas, o que significa dizer, com mais tempo para o remanso da vida. A literatura tem ganho muito espaço, como as memórias pessoais. Mas não consigo deixar de me insurgir contra a hipocrisia conservadora, contra a arrogância protofascista. E quero prosseguir, pois escrever e refletir a partir da escritura de fato me completa como ator social.  

Sem dúvida é o sinal da passagem dos anos que me distancia com o desvario das conquistas incertas e me aproxima do encanto que está na passagem, ao alcance das mãos ou de nossos olhares, e que revelam amor, determinação, compaixão, serenidade.      

Vida longa para o Chá nas Montanhas!!

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Campanha pelo NO, Chile, 1988

Também em um 5 de outubro, mas de 1988, recordo a vitória do NO chileno, que impôs o fim à ditadura de Pinochet, restabelecendo, ao menos na temperatura política, o direito a manifestar-se. Muitas outras conquistas do período Allende ou da outrora democracia chilena foram deixadas de lado, como o direito universal à educação e à previdência social mais digna. 

Aquele plebiscito teve a virtude de afastar da presidência a besta fascista, ainda que ela permanecesse como senador vitalício. Dez anos mais tarde, esse golpista permaneceria  detido em Londres por quase dois anos, lutando para não ser extraditado à Espanha, onde responderia pelos seus atos criminosos. 

De qualquer forma, a vitória de 5 de outubro, por 56% a 44%, foi um alento, uma explosão de gozo reprimido por longos 15 anos, que lamentavelmente não se completou em conquistas substanciosas para a cidadania chilena.

(atualizado em 06.01.2020)