27 janeiro 2012

Dois poemas




Mulher Azul


Mar Manto

branco

pensa

azul, à luz

irresolvível

insolúvel




Fronte


Pele fóssil

Pele míssil

escrita fina

filtra luz em fuga



por
Mônica Rebecca Ferrari Nunes




22 janeiro 2012

Comunidade do Pinheirinho


Há exato um ano, como parte das avaliações para o concurso de docente em sociologia, em uma universidade federal, propus um projeto de pesquisa denominado Polos Culturais, que pretendia, dentre outros objetivos, a prática cultural como estímulo à vivência comunitária, nos territórios da precariedade. Curiosamente, uma das comunidades precárias que tinha em mente era o Pinheirinho, na cidade de São José dos Campos. Para ficar mais claro o que pretendia, transcrevo abaixo parte da justificativa do projeto.

           "Consideremos duas comunidades carentes de São José dos Campos, Pinheirinho, assentamento com cerca de 2000 famílias, ou o Campo dos Alemães. Certamente uma população destituída de lazer e entretenimento, com mínima infraestrutura para uma vida social mais digna. Abandonada pelo poder público, absorve a apatia do esquecimento, revolvendo-se nas garras de opções de vida menos promissoras. Corrompida pela alienação dos meios hegemônicos de comunicação, amaciada em seus anseios mais vitais, as pessoas sobrevivem o dia-a-dia.
         A proposta da implantação do polo cultural tem a aspiração de apoiar o desenvolvimento de práticas culturais que tragam a vida comunitária novamente ao proscênio das preocupações, de despertar para a interação comunitária da maneira mais agradável, atraindo um público em que jovens e idosos possam comungar de uma mesma atividade. A poesia tem o poder de atrair, não de afastar as pessoas, de confraternizar, não de causar intriga, e isso pude acompanhar nos saraus das periferias paulistanas  
            Tanto a Cooperifa como o Binho surgiram em um bar, o espaço público por excelência (além dos templos religiosos) das periferias paulistanas. A escolha do polo cultural no Pinheirinho ou no Campo dos Alemães poderia recair em uma escola pública. Para que a iniciativa dê frutos, é necessário convocar os artistas da quebrada, dar-lhes a visibilidade e a responsabilidade de uma ação social.
            A poesia declamada, assim como o rap, são boas sugestões iniciais, porque demandam apenas o rascunho de um poema e o desejo de proclamá-lo. Os versos não precisam ser inicialmente autorais, há que se considerar a dificuldade inicial em produzi-los. Em uma escola pública é possível fazer crescer a biblioteca já instalada, e provavelmente raquítica porque deixada de lado, ou subaproveitada. A poesia declamada pode encontrar nela o templo natural para a prática de atividades culturais, grupos musicais, de teatro, de dança, encontros gastronômicos, festas tradicionais, todas essas práticas de cidadania podem vir no vácuo dos saraus, ou despontar de modo independente... 
          A escola pública pode, assim, ser valorizada em sua essência, contando com a mão de obra especial que dispõe, seu corpo docente.  É importante praticar esse espaço, tê-lo disponível, torná-lo sagrado, capaz de atrair pessoas, e despertar nelas o desejo de conviverem comunitariamente" (...)
-0-

É com tristeza que leio os acontecimentos dos últimos dias, que culminaram com os atos de violência perpetrados pela ação policial, dois mil homens, caveirão, armamento pesado. Segundo o sítio de notícias Vi o Mundo, a reintegração de posse foi feita sem uma solução negociada. De acordo com o texto, "quem chega ao Pinheirinho está sendo recebido com bombas, que estão sobrando até para a imprensa e parlamentares". 

Triste desfecho. Minha frustração é a de não ter oferecido um mínimo do meu esforço para que o Pinheirinho pudesse incorporar ao menos um pouco de poesia em seu cotidiano.


04 janeiro 2012

A sociedade fragilizada



por Júlio César BIN
(Pós-graduado no Programme for Sustainability Leadership da Universidade de Cambridge)


Recentemente participei de um painel numa escola de propaganda e marketing em São Paulo, onde dois jovens com cerca de 30 anos, tinham a incumbência de falar sobre suas conquistas pessoais e sucessos profissionais. O objetivo era mostrar para uma plateia de universitários, como que a determinação, força de vontade e dedicação a um sonho, são fatores imprescindíveis na vida e na carreira de um individuo. As características da nossa sociedade e as condições socioeconômicas dos três não eram parte da mensagem, mas foi o que me fez sair do evento com este texto na cabeça.

O que me chamou a atenção foi o percurso distinto que os palestrantes percorreram. Um deles, jovem executivo de uma grande agencia de propaganda, contava o caminho que trilhou para chegar ao Olimpo ambicionado por 99% dos presentes naquele auditório: ser um publicitário de sucesso, diretor e sócio da agencia em que trabalhava há muitos anos.  Sua apresentação foi interessante, passando pela importância de seu empenho, sua procura e luta por seus ideais, assim como as dúvidas e preconceitos que vivenciou ao longo de sua juventude. Sabia o que queria e tomou as decisões certas no momento certo.

Sua estória tinha um tom meloso de rebeldia, repleta de momentos de espertezas e malandragens necessárias para driblar o sistema e, claro, sempre com o apoio da família para completar sua renda durante os vários anos que precisou investir tempo e dinheiro, não só com educação e viagens, mas também para trabalhar de graça como estagiário em agencias de propaganda. Logo depois o outro jovem narrou a sua historia de vida. Na verdade ele desconstruiu a fala do palestrante anterior.

Ele contou como nasceu e cresceu num ambiente hostil, “do outro lado da ponte”, onde o estado deixou de agir há muito tempo, onde serviços básicos como educação e saúde não existem e onde a sociedade sabe, mas prefere não ver o que acontece. Ele começou dizendo que todos ali provavelmente já tinham ouvido falar de como é viver nessa situação por meio dos noticiários da TV ou filmes, normalmente sobre o trafego de drogas, violência, criminalidade e, claro, sobre os bons projetos sociais que fazem o papel esquecido pelo estado.

Do outro lado da ponte é uma excelente metáfora para demonstrar as periferias pobres das cidades brasileiras. Em alguns casos, é do outro lado do rio, do outro lado da estrada, mas sempre existe algo que separa a pujança econômica da miséria e o descaso.

O jovem da favela, ex-drogado, ex-ladrão, ex-traficante, excluído socialmente, contou como foi sua ascensão ao crime e como havia sobrevivido (literalmente) à “aventura cinematográfica”. Ele contou como que seu sonho maior era simplesmente fazer parte, ser reconhecido como individuo, vencer socialmente, enfim, ter condições financeiras para possuir e consumir os produtos e serviços que habitam os desejos de qualquer pessoa, independente da classe social.

Com a determinação de um nobre guerreiro e com a sorte e a oportunidade de ter caído nas mãos de pessoas bem, anjos vestidos de voluntários, decidiu parar e foi guiado e recuperado para então tornar-se um mensageiro de como essa transformação é difícil, mas possível.  

Minha leitura foi que vivemos dentro de um sistema que alimenta e motiva jovens em nossa sociedade, ricos ou pobres, a buscar o sucesso financeiro e social por meio do ter a qualquer custo. Ter mais objetos de marca, ter um carro novo, ter bugigangas que não precisamos ter. Vivemos num sistema que educa seus jovens para uma guerra social onde o perdedor é excluído, desqualificado, desempregado e desamparado.

Ao final do evento, fiquei com a percepção que estamos educando e motivando os jovens para que possam manter esse sistema funcionando e, nesse caso em particular, para se especializarem na comunicação e venda de coisas que, quase sempre, não precisamos.  Estes jovens, ricos e pobres, fazem parte da mesma sociedade, são cidadãos do mesmo país e ao mesmo tempo são partes de dois mundos completamente diferentes mesmo que frequentem as mesmas mídias sociais. A única coisa que eles têm em comum são as mensagens e propagandas. Na linguagem marqueteira, pertencem a diferentes segmentos, diferentes “targets”, mas acabam sendo alvo das mesmas campanhas publicitarias e programas de TV.

Saí do evento ainda com muitas perguntas na cabeça.

O que precisamos fazer para mudar esse modelo econômico que lucra convencendo as pessoas a ter o que não precisam para ser felizes? Porque enxergamos os problemas sociais, sofremos com agressões diárias nos grandes centros urbanos, reclamamos da falta de educação e saúde, da corrupção, das drogas e da morte de nossos jovens pela violência urbana e não conseguimos acreditar que contribuímos diariamente para que estes problemas permaneçam? O sistema está doente e com ele estamos todos nós.
 
Mas a principal pergunta que tenho depois desse evento é: nesse sistema doente, quem está efetivamente vendendo droga para quem?


01 janeiro 2012

Passagem do Ano




O último dia do ano
não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
e novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida.
Beijarás bocas, rasgarás papéis,
farás viagens e tantas celebrações
de aniversário, formatura, promoção, glória,
doce morte com sinfonia e coral,
que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor,
os irreparáveis uivos
do lobo, na solidão.

O último dia do tempo
não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,
uma mulher e seu pé,
um corpo e sua memória,
um olho e seu brilho,
uma voz e seu eco,
e quem sabe até se Deus...

Recebe com simplicidade este presente do acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras
espreitam a morte,
mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
e de copo na mão 
esperas amanhecer.

O recurso de se embriagar. 
O recurso da dança e do grito,
o recurso da bola colorida,
o recurso de Kant e da poesia,
todos eles... e nenhum resolve.

Surge a manhã de um novo ano.

As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.


Carlos Drummond de Andrade