28 abril 2023

Héctor Oesterheld


Estela, Elsa com Beatriz no colo, Oesterheld, Diana e Marina

O roteirista e escritor Héctor Oesterheld foi sequestrado por uma patota militar em um dia como hoje, 27 de abril, para nunca mais retornar. Foi visto no Centro de Detenção Clandestino de El Vesubio, em Buenos Aires, onde foi brutalmente torturado e morto em princípios de 1978.

Seu grande crime foi ter criado El Eternauta, um herói coletivo que organiza a resistência contra os invasores extraterrestres. Toda vez que me deparo com essa personagem, imagino o quão difícil é resistir a extraterrestres do próprio país, forjados na canalhice, cujo negacionismo persiste até os dias de hoje.

Esses extraterrestres cívico-militares fizeram desaparecer todos da foto acima, com exceção de Elsa Sánchez, a esposa e mãe da família. Beatriz, a filha mais jovem, foi a primeira a desaparecer, pouco depois do golpe de estado. Seguiram Diana, grávida de quatro meses, Marina e Estela.




12 abril 2023

Sobre as sensíveis apreensões

 

Chuva em Lima, em um dia de janeiro de 1970

Em meio a uma entrevista recente sobre meu romance a ser lançado, Um longo dia na vida de Ângelo Domani, houve uma pergunta simples, cujo sentido me ajudou a conceituar amplamente os detalhes da narrativa: Buganvília fora criada como palco para o meu personagem principal, ou se tratava de uma experiência pessoal em algum lugar no mundo? Pensei um pouco antes de dizer que a cidade de fato existia, que podia ser qualquer uma do interior de nosso Brasil, dadas as características em comum que apresentam, ou seja, pequena, pouco movimento, trabalhadores simples, rodoviária, uma igreja da matriz, praças, barbearias, confeitarias, paralelepípedos. 

Sobre as descrições, algumas mais precisas, outras mais ligeiras, elas expressam o palimpsesto de impressões retidas ao longo da vida, não apenas na Buganvília que de fato conheci, mas em relação às muitas outras cidadezinhas que vivenciei, sobretudo em minha juventude. Cada equipamento urbano, cada sorriso ou gesto popular, sinalizam alguma experiência pessoal com esses lugares tão parecidos, é como se ao longo da escrita, eles se revelassem em suas minúcias, para que eu pudesse desenhar com mais apuro esse espaço romanceado. O que ocorre, e acrescentei isso com certa dor na alma, é que serão cada vez menos as percepções sensíveis descritas com base na memória, inspirados no silêncio e na lentidão. 

A vida solicita movimentos mais urgentes, e no espaço urbano parece menos comum apreciar os detalhes, conviver com as circunstâncias, registrar o fenômeno sem diferenciá-lo da cadeia de fenômenos que compõem um percurso. O olhar inquieto não mais retém, mas dissolve as apreensões momentâneas em um feixe de gestos desperdiçados e desnecessários. Consequentemente, os gestos ambicionam resultados mais acabados, e nesse movimento fica implícito o descarte dos instantes, do real significado em se vivenciar uma experiência boa ou ruim. A pressa contemporânea está em todos os rincões, como objeto de todas as ações, e sem reafirmar que bordejamos o desconforto, tornamo-nos seres menos suscetíveis e tolerantes.

E finalizei minha resposta ao dizer que não tenho certeza de que meu romance será lido com prazer, porque ele se define, muito simplesmente, pela ausência de muitas coisas e pela presença de poucas. O personagem não se encontra consigo mesmo porque não consegue apreender o mundo ao redor, e isso, por si só, traz desassossego. O que ele dispõe ao alcance é seu percurso, seu caminhar infindável por lugares que o fazem compreender coisas de seu passado ou especular sobre seu futuro. O leitor travará um árido contato com uma apreensão de mundo tensa, inquieta, por vezes impiedosa, sem contar com cálidos sentimentos para redimí-lo. À busca incessante, sobrepõe-se a falta. E para se chegar a esse estado de coisas, foram necessários mais de vinte anos de escritura, de recortes, reflexões, comparações, dúvidas, turbulências, angústia, a proeminência do outro. Em outras palavras, coabitar com um humanismo sem recompensas. 

Tudo me parece tão desconforme à existência de nossos dias, a começar pelas apreensões atentas e sensíveis do mundo, que não vejo o porquê desse livro receber alguma consideração.


 

04 abril 2023

Tamiki Hara



 

Eis a descoberta de um escritor belíssimo, que aborda uma temática tão pavorosa, e que a partir de sua escrita, é possível entendê-la para além do que, para nós ocidentais, é tratada de uma tragédia sem sujeitos, sem responsabilidade de um governo, mas proporcionada pelo efeito da bomba atômica. Enola Gay é o nome da mãe do piloto que nomeia o avião que despejou Little Boy, metáforas desatinadas que causaram o infortúnio mortal no inimigo. Não conhecia Tamiki Hara nem seu sensível opúsculo, meras 129 páginas, dividido em quatro partes, quatro textos autônomos e que descrevem em sucessão cronológica o visto e o sentido a partir de 6 de agosto de 1945 em Hiroshima. 

O romance, se é que podemos enquadrar a narrativa nesse gênero, descreve a vida antes, no dia e nos momentos posteriores da hecatombe. Hara não se perde em moralismos acusatórios contra o governo estadunidense, o grande responsável pela hecatombe. A intenção no relato é descrever a experiência vivida daquele cenário impensável, em que a população japonesa, a reboque das decisões suicidas de seus governantes, procurava cada qual a sua maneira sobreviver dia após dia. Os desdobramentos em Iwo Jima anunciam as dificuldades crescentes, em que cada um intui o destino do país. Os alarmes regulares fazem com que as pessoas busquem abrigo em locais fora da cidade, as casas já não são mais seguras diante dos brutais bombardeamentos sem oposição. Vivia-se ao sabor amargo das incertezas, em circunstâncias cada vez mais semelhantes à idade da pedra. Ouvia-se os informes do andamento da guerra pelo rádio e todos perscrutavam os céus, na dolorosa expectativa de um ataque massivo das B29.

O segundo texto, Flores de verão, que dá nome ao livro, mostra de modo descontínuo, os efeitos do dia do ataque. Aqui em primeira pessoa, o autor movimenta-se pela cidade, participa do cotidiano relatando os efeitos da explosão, seja no espaço urbano, seja com as pessoas, sem a preocupação em fixar referenciais, muito provavelmente porque todos eles desapareceram. Seus familiares de um modo geral conseguem escapar e tentam retomar a vida. O final da guerra se anuncia no horizonte, mas as duras cicatrizes fincaram suas marcas em Hiroshima. 

O que difere a narrativa de Hara dos registros ocidentais está na colocação dos sentimentos nas palavras escolhidas, que de algum modo, procuram dar sentido ao que aconteceu. Não há rancor, mas uma inquietude sobre o que tudo aquilo significa. Há o olhar realista de uma destruição vista por dentro. O que é possível fazer diante de uma situação dada, em que há sofrimento, perdas e nenhum futuro previsível? O último texto, O país do meu mais sincero desejo, expõe as impressões do autor anos mais tarde, próximo do seu suicídio. Há uma serenidade incômoda, cuja tensão remete sua reflexão para o passado, no desejo de compreender o futuro. É o capítulo mais poético, talvez pela necessidade de encontrar novas maneiras de sobreviver. "De novo, sinto calor e frio se alternarem sem parar, e os sinais da aproximação da Primavera me deixam entorpecido. Estou prestes a sucumbir facilmente às seduções saltitantes, leves, gentis e habilidosas dos anjos. Os raios de sol transbordam de prenúncios de um festival deslumbrante, quando as flores vão desabrochar todas a um só tempo e os pássaros vão começar a cantar. (...) A Primavera aclamada em poemas, pinturas e músicas sussurra para mim e me deia maravilhado. Contudo, estou com frio e meio triste".

Penso que Tamiki Hara não deixou de ouvir outros sussurros, vindos das gentes que sofriam a queimação do corpo, a agonia lancinante, o brilho ofuscante da explosão mortal, tão relatado e não visto por ele. Sussurros que o estremeceram a cada lembrança, e tudo quanto pôde ver e ouvir foi de um peso insondável, que o impediu de viver uma longa e saudável vida.