17 outubro 2008

Ossos para o Natal



Terminou de recolher os ossos, ao tempo em que um novo dia se espraiava. Viu os dois colegas pularem do caminhão carregado e da plataforma de carga, teve mais uma vez a ideia do quanto haviam dado duro para que o veículo pudesse sair na hora certa, a fedentina coberta de moscas se afastando progressivamente, sem que seus olfatos se dessem conta. Deixou os dois colegas e no caminho do banheiro, pôde confirmar intuitivamente que não haveria mais abates. O espaço reservado às reses estava vazio e o pessoal da matança se divertia num canto. Era uma situação muito rara essa de terminar o trabalho ainda de manhã. Ele, como todos no matadouro, trabalhou pesado, desde a noite anterior, mais de sessenta reses abatidas e carneadas, os ossos avermelhados escorrendo pela calha, até estalarem na plataforma de carga, no lugar que todos conheciam como o cu do frigorífico e onde os caminhões encostavam, numa sucessão frenética, para serem carregados pelos três do setor de ossos.

Abriu o chuveiro, as gotas frias caindo, esparsas, por poucos minutos. Pelo caco que lhe servia de espelho, enquanto enxugava-se, viu seus dois companheiros entrando para o banho. Mirou-se uma vez mais, vendo a imagem esgarçada, cujos traços se definhavam com o passar dos dias e dos meses. Percebeu o quanto o olhar, que um dia fora de perseverança, estava nebuloso. Penteou os cabelos ainda úmidos enquanto pensava na proximidade de mais um final de ano que o pegava desprevenido. Lembrou-se que a noite seguinte seria de Natal, eram desejos de consumo que afloravam e presentes que se furtavam. Não saberia como encarar seus filhos, para quem as promessas de melhores dias se acumulavam. Maldito emprego, esbravejou para si, chamando a atenção dos amigos. Saiu às pressas, ganhou as ruas banhadas pelo sol inclemente, não conseguiu sentir-se livre.

Pensou em beber um trago no boteco, diante do ponto de ônibus, afinal ainda era cedo. Os amigos o convidaram para o bilhar. Bateu a mão no bolso, parte do dinheiro do vale estava ali, bem, por que não um joguinho? Tentou desabafar antes das tacadas, reclamando dos seus fracassos, que por serem também dos demais, caíram no vazio. Ninguém estava a fins de lembrar da vida, mas aproveitar o jogo e beber. Vieram à baila os prognósticos do campeonato do bairro, comentários da prisão do Bola Sete, as mulheres do imaginário e da vida real... e o tempo passou. No final da tarde, já bem grogue, resolveu ir para casa, mais pela falta de dinheiro do que por vontade própria.

A noite pronunciava-se em sua languidez habitual, quando despontou no alto da quelha de terra. Ainda brincando em frente do barraco, o filho menor viu o pai se aproximar. Os demais filhos e a mulher o receberam, num silêncio ainda mais grave que de costume. O mesmo homem, bêbado, sem forças, ruminando desgosto. Ele tirou da mochila dois belos ossos com alguma carne em seus interstícios, colocou-os na mesa junto com a roupa suja e foi para o quarto, desabando na cama até o dia seguinte.


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