Terminou
de recolher os ossos, ao tempo em que um novo dia se espraiava. Viu os dois
colegas pularem do caminhão carregado e da plataforma de carga, teve mais uma
vez a ideia do quanto haviam dado duro para que o veículo pudesse sair na hora
certa, a fedentina coberta de moscas se afastando progressivamente, sem que
seus olfatos se dessem conta. Deixou os dois colegas e no caminho do banheiro,
pôde confirmar intuitivamente que não haveria mais abates. O espaço reservado
às reses estava vazio e o pessoal da matança se divertia num canto. Era uma
situação muito rara essa de terminar o trabalho ainda de manhã. Ele, como todos
no matadouro, trabalhou pesado, desde a noite anterior, mais de sessenta reses
abatidas e carneadas, os ossos avermelhados escorrendo pela calha, até
estalarem na plataforma de carga, no lugar que todos conheciam como o cu
do frigorífico e onde os caminhões encostavam, numa sucessão
frenética, para serem carregados pelos três do setor de ossos.
Abriu
o chuveiro, as gotas frias caindo, esparsas, por poucos minutos. Pelo caco que
lhe servia de espelho, enquanto enxugava-se, viu seus dois companheiros
entrando para o banho. Mirou-se uma vez mais, vendo a imagem esgarçada, cujos
traços se definhavam com o passar dos dias e dos meses. Percebeu o quanto o
olhar, que um dia fora de perseverança, estava nebuloso. Penteou os cabelos
ainda úmidos enquanto pensava na proximidade de mais um final de ano que o pegava
desprevenido. Lembrou-se que a noite seguinte seria de Natal, eram desejos de
consumo que afloravam e presentes que se furtavam. Não saberia como encarar
seus filhos, para quem as promessas de melhores dias se acumulavam. Maldito
emprego, esbravejou para si, chamando a atenção dos amigos. Saiu às pressas,
ganhou as ruas banhadas pelo sol inclemente, não conseguiu sentir-se livre.
Pensou
em beber um trago no boteco, diante do ponto de ônibus, afinal ainda era cedo.
Os amigos o convidaram para o bilhar. Bateu a mão no bolso, parte do dinheiro
do vale estava ali, bem, por que não um joguinho? Tentou desabafar antes das
tacadas, reclamando dos seus fracassos, que por serem também dos demais, caíram
no vazio. Ninguém estava a fins de lembrar da vida, mas aproveitar o jogo e
beber. Vieram à baila os prognósticos do campeonato do bairro, comentários da
prisão do Bola Sete, as mulheres do imaginário e da vida real... e o tempo
passou. No final da tarde, já bem grogue, resolveu ir para casa, mais pela
falta de dinheiro do que por vontade própria.
A
noite pronunciava-se em sua languidez habitual, quando despontou no alto da
quelha de terra. Ainda brincando em frente do barraco, o filho menor viu o pai
se aproximar. Os demais filhos e a mulher o receberam, num silêncio ainda mais
grave que de costume. O mesmo homem, bêbado, sem forças, ruminando desgosto.
Ele tirou da mochila dois belos ossos com alguma carne em seus interstícios,
colocou-os na mesa junto com a roupa suja e foi para o quarto, desabando na
cama até o dia seguinte.
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