05 outubro 2008

A miséria da alma


Ele me falava sobre seus projetos de grandeza, aquele sujeito de olhar escuso alimentando uma expressão inconstante, ali a minha frente não saberia dizer por quanto tempo. Flutuava em seus pontos de vista, amarrando seu discurso com farta habilidade impregnada de canalhice, sempre que possível questionando minha conduta incompatível com os novos tempos. Sobrevinha então o sorriso que se pretendia dócil, mas que não passava de uma complementação de seus sórdidos argumentos. Colocava-se como um empreendedor nato, vencedor, voltado para a próxima conquista, 'e danem-se os que ficam olhando a banda passar'...

Os olhos se fixavam em um ponto abaixo dos meus, enquanto as frases cuidadosamente construídas buscavam me envolver na trama. Reproduzia sua estratégia de convencimento a cada novo assunto, colocando-se como um exemplo acabado de uma época sem passado, cujo presente nada mais é do que o ensaio de realizações futuras. Tempos confusos sim, porém 'abertos às atitudes decisivas, é preciso entender isso, cara!'... e então pontuou sua verborragia com o vazio de uma breve espera. Eu não precisei questionar o que ele entendia por 'atitudes decisivas', pois em seguida, ao retomar o fôlego, indicou a resposta, 'Vou lhe dizer, as concessionárias é que me procuram para eu trocar o carro... entendeu a diferença?!' O gesto melífluo no canto da boca expôs a substância da sua satisfação.

Demoraria uns minutos para retomar minha aula, de modo que optei por sacrificar meu valioso intervalo escutando aquele velhaco à deriva. Ainda me falou de sua editora' ('Já são mais de dez livros no catálogo, he he...'), como a tentar-me em uma estocada final, seduzindo-me ao seu mundo maravilhoso de sucesso. Agradeci polidamente, dizendo que não era ainda o momento de publicar meus textos. 'Então quando?'... rasgou em um impulso incontido. Calei-me, provocando o desfecho indignado, 'Você não quer entender, você não quer entender'... o sorriso transformado em puro desprezo.

Neste mundo em que as relações e os sentimentos humanos se liquefazem, o discurso dos vencedores se estabelece de maneira impositiva, desejando suprimir o discernimento entre o falso e o verdadeiro. O mecenato surge como uma forma de controle mercadológico, confundindo processo criativo com rotina criadora de produtos descartáveis. É dessa dinâmica tão alucinada quanto efêmera que se alimentam os tais vencedores pós-modernos.

Como diz Bauman, se neste momento você se torna um turista, um integrante da elite global, participante de elevados escalões de decisão, no momento seguinte a vertigem dos acontecimentos poderá lançá-lo à condição de vagabundo, aquele que sobrevive à margem dos acontecimentos, sem forças para tomar as mais elementares decisões.


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