24 outubro 2008

Descompasso




para Luiz Sérgio Person

Querem te pegar, mas encontras um jeito de escapar. Pensas que estás a salvo em tua casa, mas não é verdade, o telefone toca, o gerente do banco te sorri, a vizinha se acerca, acabam te achando. Tua caixa do correio está repleta de propostas, assim como tua caixa de correio eletrônico. Acercam-se sem peia, querem cada vez mais de ti. Resistes, porém sabes que não é fácil. Então sais para as ruas, para um passeio, um simples café na confeitaria da esquina. Vês nas vestes dos passantes o produto de teu tormento, alcançam-te as cores chamativas dos veículos rodando nas ruas, convidam-te as vitrinas com toda espécie de sugestões, ‘leva-me, sou todo teu’, por trás dos oferecimentos, um preço que mobiliza a tua perseguição. 

Os sabores na confeitaria transcendem o suave aroma de um simples café, precisas de um acompanhamento, algo encharcado de açúcar e gordura, te sentirás melhor garante aquela voz invisível que compactua com os espectros permanentes. Teus amigos te encontrarão e conseguirão te convencer de que precisas disso ou daquilo, ‘por que não aproveitas a liquidação?’, ou se não há liquidação, ‘por que não aproveitas que irás receber teu aumento?’, e se não tens aumento ou salário, ‘precisas disso para entenderes o que se passa contigo...’. Nesse estágio das coisas, já te consideram um fardo, ou um caso perdido, mas o assédio não acaba, ao contrário, és um caso diferente, plano b, sempre encontrarão um plano para ti, enquanto tiveres sangue correndo nas veias. Poderão impedir tua entrada em uma festa suntuosa, ou em um clube sofisticado, mas saberão como te oferecer o prazer proporcional. 

Te oferecem, te cobram, a vida continua ao teu redor. Então caminhas pelo viaduto, ouvindo as vozes, o chefe, a família, o mercado, todos desejando e te cobrando, as imagens mentais dividem a percepção do mundo ao redor, caminhas, as vozes não cessam, te cobram e te incitam, as imagens são vertiginosas, mecanismos de aço que se movimentam em fluxo contínuo, não podes parar, não podes deixar de ter para ser, te incitam e te alucinam, as vozes do chefe se mesclam com as vozes da família reunida, e agora os amigos, os clientes e até quem não te conhece, em um coro impositivo, ‘mais resultados’, ‘mais dinheiro’, ‘mais disposição’, ‘mais descontos’, o mecanismo ganha tentáculos, segues caminhando pelo viaduto, os tentáculos estão nos automóveis que passam, nos ombros dos pedestres, nos edifícios escuros que te rodeiam, procuras avançar com os olhos fechados, não importa, te alcança mais cobrança, mais tentações... há os que querem e os que oferecem, todos estão irmanados contra teu equilíbrio evanescente, por isso caminhas enquanto ouves e vês a tentação unida à perdição, o ruído das engrenagens, o mecanismo que ganha vida, não sabes se o que vislumbras é real ou imaginário... 

Te deténs encostado na mureta, as mãos nos ouvidos, só desejas um pouco de sossego enquanto o mundo gira, sob o ranger dos tentáculos que se acercam e que na verdade não se decidem se te pregam um susto ou se te esmagam de vez, de modo que teu destino é esse sopro inesperado, e te vês alçado no espaço livre, em queda vertiginosa, e tua vertigem agora não é mais do que a libertação da tua condição humana, não importa, tua angústia se desprende de ti, e te inunda por fim o sossego absoluto, marcado pelo aroma da terra distante, até que o tempo se esgota e ao te estatelar no asfalto, nada subsiste além de um mísero registro estatístico.



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