31 outubro 2008

Desconsolo


Foi a primeira vez que presenciei o desconsolo inscrito em sua face. Nas vezes anteriores, sempre achou um jeito de tripudiar em cima dos vizinhos, da população excluída, do governo, de quem estivesse mais à mão. Não havia nada de provocador, mas de presumido. De qualquer forma, não era um esforço para eu parar onde fosse e ouvi-lo em seus pruridos.

Desta feita, contrário a tudo que podia imaginar, me surpreendi por sua aproximação sorumbática, pela voz lamuriosa que mal se arvorou, Fui abandonado. Não tinha disposição sequer para comentar o fato, a conversa malsã com a companheira, conseguindo se tanto balbuciar um arremedo de frases que denotavam dor e inconformismo, Nenhum reconhecimento, nenhuma explicação..., ... dois anos de sacrifícios..., ... toda uma dedicação lançada por terra..., e por aí afora.


Eu, que sempre o vira como um animal intrépido pelo movimento brusco dos gestos, pela impostação sempre exagerada da fala, agora o via como um porco-espinho, encafuado nas sombras de sua efetiva pequenez. Busquei confortá-lo, convidando-o para tomar uma bebida em meu apartamento, mas nem aceitou, nem refugou, conseguiu apenas menear a cabeça, ... foi o que ela fez, me abandonar... 


Repetia a frase, alternando-a com pequenas modificações, mas sempre no propósito de se colocar como uma vítima indefesa. Imaginei-o representando ali um papel que jamais representara em suas apresentações mambembes pelas esquinas da cidade. Quando eu começava a ganhar coragem para dizer-lhe isso, ele se cansou de se lamentar, pediu licença e avançou, arrastando os pés. Outra saída patética na vida. Eis o Haroldo, um ator sem recursos, tíbio no convívio com seus semelhantes, isolado pelo arcabouço velhusco de idéias.

Afastei-me o suficiente para que avançasse pelo saguão e tomasse o elevador. Procurei me despedir, Até mais, Haroldo, mas as palavras, se o alcançaram, ficaram sem resposta. Estava diante de um desditoso precipício, levando-me a crer que saltaria em seu interior, sem chegar a conclusão alguma. Sêde assim, infiel em seus desígnios, e caireis nas graças do pior infortúnio, como certa vez esconjurou o marquês de Sade em um de seus devaneios. Nada me pareceu mais adequado para o desconcertado Haroldo.



30 outubro 2008

Il capo Benega



De onde estava, poderia permanecer observando-o por quanto tempo fosse, pois além dele seguir absorto na conversa animada que travava com amigos, eu estava a certa distância, num canto obscuro do balcão. Sim, não havia dúvidas, era ele, um dos meus ídolos anônimos da infância, craque de futebol do bairro, campeão por diversas vezes nos campeonatos que eu presenciava silente, à beira do campo, envolvido por suas artimanhas e por suas arrancadas decisivas. Um artista! Invariavelmente, uma grande platéia tornava-se testemunha de seu senso de colocação, de sua liderança, mas não tenho dúvidas que a escumalha reunia-se para saber qual seria a jogada encantada do dia, que animaria as rodas dos bares ao longo da semana, até o jogo seguinte.

Pois bem, ali estava ele, após tantos anos. Pereira, não, Barena..., o nome não tinha meio de saltar à mente. Decerto por essa razão eu não tenha arriscado a dirigir-lhe a palavra... Na verdade, não creio que ele me reconhecesse, pois a legião de fãs anônimos que Barrag..., Benat... granjeara naqueles tempos fora estupenda. Mantive-me, assim, num conveniente silêncio passivo, sem perder de vista meu antigo ídolo.


Sorvia meu café com goles mais espaçados, para poder desvelar mais dele, agora num outro momento. Havia um pobre resquício da sua aura: era o líder da roda de amigos, movendo-se entre eles com rompantes de seu estilo lépido e insinuante. Se fossem adversários e no meio houvesse uma bola, certamente já teriam sido fintados, pois os caras o ouviam tão desarmados e de modo tão ingênuo, quanto se postavam seus antigos marcadores... Os movimentos das mãos retomavam a agilidade das pernas irreverentes... Mesmo a calvície, a barriga mais proeminente, o sorriso menos aterrador preservavam algo do espírito incisivo do belo craque... Fosse como fosse, insistia em perscrutá-lo, pois vê-lo reavivava uma lembrança vívida, ainda que um pouco embotada pelos longos anos passados. Berra..., Ben..., Benega, sim... isso, Benega!! Um impulso de entusiasmo, seguido de um gesto amplo, quase denunciou minha presença furtiva...


Um quase desejo de ir até ele se formalizou (mas ainda desta vez quis contemporizar, reavivando mais passagens daqueles inocentes domingos matutinos, talvez para ganhar tempo e com isso um pouco mais de confiança, sei lá...) para no momento seguinte se desvanecer de modo definitivo, pois Benega e seus comparsas (eu saberia disso alguns anos mais tarde) saíram do Café, entre baforadas e gargalhadas, para mais um golpe insidioso...



28 outubro 2008

O tempo que escoa...


Viver a vida é projetar ilusões e acreditar que de alguma forma, em algum momento, as vivenciaremos. Meu avô passou a vida acalentando a esperança de reaver sua rádio; meu pai buscou se aproximar por todos os modos da imagem incerta e fugidia da mãe que não conheceu; meu tio perseguiu o emprego que lhe daria a grana necessária para viver bem e assim por diante. Não podemos viver sem uma expectativa de realização, seja a compra de um carro ou a crença no triunfo do socialismo. Isso nos redime do acúmulo dos pequenos fracassos, que se sucedem de maneira exasperante, ainda mais sob a tensão e cobrança do mundo líquido moderno em que vivemos. A resposta tem de ser dada, se não em atos consolidados, ao menos com um rebotalho de desejos presumidos.

E assim tocamos o encargo da vida, com algumas alegrias e seguidas frustrações. Daí ser importante nos envolvermos com um sonho, com um encanto e persegui-lo de todos os modos, maquiando a obsessão dessa busca com os eventos corriqueiros, que nos dão fôlego para amenizar o sofrimento. Certas buscas se dão numa plataforma imponderável: se me encontro à deriva no mundo, procuro me confortar com o resgate de uma identidade cada vez mais esquiva. Se minha condição humana me oprime, me envolvo a viagem das próximas férias, ou, de maneira mais simples, vou ao shopping para comprar o presente de aniversário do filho de um casal amigo. Como diz Ortega y Gasset, não interessa ao ser humano que suas ideias não sejam verdadeiras, emprega-as como trincheiras para defender-se de sua vida, como espantalhos para afugentar a realidade.


No entremeio entre saborear um projeto e degustar sua irrealização, nos abandonamos, como disse, aos eventos corriqueiros, às realizações banais que nos distraem, como o futebol do domingo à tarde ou a novela de todos os dias, e não raro, nos acostumamos com a distração da vida. Minha avó se entreteve por décadas com o crochê, minha mãe ainda se ocupa com a organização da casa. Eu, durante um longo tempo, optei por não me incomodar com outra coisa senão viver nas minúcias. Sucumbi aos bocados à suave letargia que não cobra nada, apenas as reações práticas pela sobrevivência. Poupava-me dos dissabores e tal como o escrivão Bartleby, preferia não apreender o mundo ao redor. Nada parecia impedir o fruir desinteressado de minha vida, até que um dia a paixão me restabeleceu para os sonhos da vida.


27 outubro 2008

Fim de caso



De suas mãos arrancaram um livro de Alberto Morávia, O homem como fim, e não se teve uma explicação concludente do motivo da escolha. A princípio, seus captores alegaram que o livro fora nada mais do que um furto aleatório, que o meliante agira por impulso, tomando o que lhe estava ao alcance. Posteriormente, de acordo com o boletim de ocorrências lavrado no distrito policial, constatou-se que Romildo José da Silva, negro, 18 anos, desempregado, solteiro, residente à rua F..., número 18 fundos, Vila das Belezas, foi detido após tentativa de furto de um livro na livraria S..., no shopping C... . Segundo o atendente Jonas (...), o elemento tinha sido observado em atitude suspeita no interior da livraria, pelos seus trajes pouco apropriados para o lugar, rondando entre outros consumidores como se fosse um deles, aguardando o melhor momento para subtrair o produto de uma das barcas de exposição (...). Declarou também que o acusado, por seus movimentos calculados fez uma escolha seletiva, sabendo exatamente o que desejava furtar (...).

Assim, seja qual tenha sido a razão de seu impulso incisivo, Romildo sabia o que desejava, um livro cujo título aparentava trazer uma luz para a sua condição social, cada vez menos sustentável. A desventura foi ser traído pelo alarme à saída da loja, desatenção de quem definitivamente não frequenta tais lugares. Na delegacia, Romildo foi interrogado de modo persistente, para não se dizer hostil, e colocado na carceragem local, um cubículo onde doze outros detentos prosseguiam depositados.


Este acontecimento só não se diluiu dentre outros em razão da presença do advogado Rodolfo no local do crime. Ao notar o jovem negro ser imobilizado pelos seguranças com o livro nas mãos, por sua experiência compreendeu imediatamente do que se tratava. Observou os três, na companhia do atendente Jonas, deixarem a loja e por um mísero instante, não mais do que isso, ensaiou apresentar-se na condição de advogado. Não se moveu. Foi como se uma força externa o guardasse incólume, convencendo-o a não se envolver. Espreitou até o limite do possível o semblante infeliz do jovem, Em nenhuma instância eu poderia ser útil a esse pobre diabo, foi a conclusão que consolou o advogado Rodolfo, ansioso por sair dali. 


A bolha de sabão se desfez, o momento da decisão se dissipou e a indolência não fez mais do que condenar a vaga presteza humana.


24 outubro 2008

O sabor da vida



Fui visitar José Monteiro, lá pelas quebradas do Tibagi, numa pequena vila de mil e poucas almas, a maior parte espalhada pelas férteis planícies de terra roxa. Me recebeu com um forte abraço e um sorriso aberto. Sentamo-nos em dois banquinhos e enquanto Vilminha, a filha mais velha, preparava o café de coador, eu me deleitava com as novidades do povoado. Monteiro sempre foi um bom amigo, e estava feliz pelo meu retorno inusitado, ainda que passageiro. Quatro de seus oito filhos me receberam, acompanhando a conversa em silêncio de respeito. 

Olhavam o professor da cidade grande, tomados pela curiosidade que o semblante inocente não conseguia ocultar. Degustavam cada palavra, imaginando como eram diferentes as coisas para além dos horizontes. Vilminha, a mais velha dos irmãos que ficaram, no viço dos dezesseis anos, parecia uma mulher formada. A última vez que a vira, estava no colo de Isaura, a mãe já falecida. E o mais novo, Salviano, nome do avô paterno, já alcançava os oito anos.

Terminamos o café e fomos caminhar um pouco, para ver a horta e o pé de jabuticaba. Acompanhou-nos Cabeção, o cachorro da família, um vira-latas espevitado e brincalhão, que gostava de avançar cortando nossos passos. Senti o ar saudável, o vento revolvendo o cheiro da terra e ao longe, nuvens carregadas prenunciavam uma chuvarada das boas. Abaixei-me para tocar a terra vermelha, tomei um punhado na mão e despejei aos bocados. Monteiro apenas observou, intrigado, em seu silêncio matuto. 

Então brinquei com Cabeção, que me solicitava há tempo e olhei para meu amigo. Nada ali indicava o pânico urbano dos investimentos e da correria frenética. Não havia a mais tênue reverberação da insensatez humana global. Poderia sentar à varanda e silenciar-me em paz, sob o gesto receptivo de meus anfitriões. Tudo conjurava, inclusive o saboroso aroma da jaboticabeira, para que eu permanecesse sem tempo para o retorno.


Descompasso




para Luiz Sérgio Person

Querem te pegar, mas encontras um jeito de escapar. Pensas que estás a salvo em tua casa, mas não é verdade, o telefone toca, o gerente do banco te sorri, a vizinha se acerca, acabam te achando. Tua caixa do correio está repleta de propostas, assim como tua caixa de correio eletrônico. Acercam-se sem peia, querem cada vez mais de ti. Resistes, porém sabes que não é fácil. Então sais para as ruas, para um passeio, um simples café na confeitaria da esquina. Vês nas vestes dos passantes o produto de teu tormento, alcançam-te as cores chamativas dos veículos rodando nas ruas, convidam-te as vitrinas com toda espécie de sugestões, ‘leva-me, sou todo teu’, por trás dos oferecimentos, um preço que mobiliza a tua perseguição. 

Os sabores na confeitaria transcendem o suave aroma de um simples café, precisas de um acompanhamento, algo encharcado de açúcar e gordura, te sentirás melhor garante aquela voz invisível que compactua com os espectros permanentes. Teus amigos te encontrarão e conseguirão te convencer de que precisas disso ou daquilo, ‘por que não aproveitas a liquidação?’, ou se não há liquidação, ‘por que não aproveitas que irás receber teu aumento?’, e se não tens aumento ou salário, ‘precisas disso para entenderes o que se passa contigo...’. Nesse estágio das coisas, já te consideram um fardo, ou um caso perdido, mas o assédio não acaba, ao contrário, és um caso diferente, plano b, sempre encontrarão um plano para ti, enquanto tiveres sangue correndo nas veias. Poderão impedir tua entrada em uma festa suntuosa, ou em um clube sofisticado, mas saberão como te oferecer o prazer proporcional. 

Te oferecem, te cobram, a vida continua ao teu redor. Então caminhas pelo viaduto, ouvindo as vozes, o chefe, a família, o mercado, todos desejando e te cobrando, as imagens mentais dividem a percepção do mundo ao redor, caminhas, as vozes não cessam, te cobram e te incitam, as imagens são vertiginosas, mecanismos de aço que se movimentam em fluxo contínuo, não podes parar, não podes deixar de ter para ser, te incitam e te alucinam, as vozes do chefe se mesclam com as vozes da família reunida, e agora os amigos, os clientes e até quem não te conhece, em um coro impositivo, ‘mais resultados’, ‘mais dinheiro’, ‘mais disposição’, ‘mais descontos’, o mecanismo ganha tentáculos, segues caminhando pelo viaduto, os tentáculos estão nos automóveis que passam, nos ombros dos pedestres, nos edifícios escuros que te rodeiam, procuras avançar com os olhos fechados, não importa, te alcança mais cobrança, mais tentações... há os que querem e os que oferecem, todos estão irmanados contra teu equilíbrio evanescente, por isso caminhas enquanto ouves e vês a tentação unida à perdição, o ruído das engrenagens, o mecanismo que ganha vida, não sabes se o que vislumbras é real ou imaginário... 

Te deténs encostado na mureta, as mãos nos ouvidos, só desejas um pouco de sossego enquanto o mundo gira, sob o ranger dos tentáculos que se acercam e que na verdade não se decidem se te pregam um susto ou se te esmagam de vez, de modo que teu destino é esse sopro inesperado, e te vês alçado no espaço livre, em queda vertiginosa, e tua vertigem agora não é mais do que a libertação da tua condição humana, não importa, tua angústia se desprende de ti, e te inunda por fim o sossego absoluto, marcado pelo aroma da terra distante, até que o tempo se esgota e ao te estatelar no asfalto, nada subsiste além de um mísero registro estatístico.



19 outubro 2008

Sobre o fim e o princípio




A esperança é quando a dor presente tenta novamente
Chico Science

Os anos se passaram e por uma conjunção de fatores, o embate das ideias se dispersou, suplantada pela sucessão de seduções que nos reduzem à insegura individualidade. Dentro em pouco, ele adentrará o recinto e comentará, para uma plateia bem fornida, sobre a importância do processo histórico. Alguns o olharão com desconfiança, dispersos na liquefação do tempo presente. Surgirão as inevitáveis confluências à confortável brutalidade do mercado, ainda que os argumentos, articulados sob vários matizes, revelem um morno envolvimento.

Ele, no fundo, espera que desponte um brilho, um olhar tardio que impeça o consenso e que descreva no ar um segredo bem guardado, propiciando a sugestão de um inefável prazer.



17 outubro 2008

Zygmunt Bauman

Zygmund Bauman

"(...) Você pergunta sobre o papel dos meios de comunicação na produção das identidades atuais. Eu preferiria dizer que a mídia fornece a matéria bruta que seus leitores/espectadores usam para enfrentar a ambivalência de sua posição social. A maioria do público de TV está penosamente consciente de que teve recusado o ingresso nas festividades mundiais policulturais. Não vive, e não pode sonhar viver, no espaço global extraterritorial em que habita a elite cultural cosmopolita. À multidão de pessoas que teve negado o acesso à versão real, a mídia fornece uma extraterritorialidade virtual, substituta ou imaginada.

O efeito de extraterritorialidade virtual é obtido sincronizando-se a mudança de atenção e seus objetos para as vastas extensões do planeta. Milhões e centenas de milhões assistem às mesmas estrelas de cinema ou celebridades pop e as admiram, mudam simultaneamente do heavy metal para o rap, das calças boca-de-sino para a última moda em tênis atléticos, fulminam o mesmo inimigo público (global), temem o mesmo vilão (global) ou aplaudem o mesmo salvador (global). Por algum tempo, isso os eleva espiritualmente acima do chão em que não lhes é permitido mover-se fisicamente (...)".
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(Identidade, Cia. das Letras, 2004).




Magnetismo




para Sam Sheppard


Saiu para a noite, em meio a sibilos ondulantes e enigmáticos do vento fresco vindo das montanhas, e que lhe dava o respiro necessário para decidir-se. Dirigiu-se ao carro, largou a mochila no banco de trás e antes de dar a partida, olhou-se ainda uma vez pelo espelho retrovisor. Sem dúvida algo se rompia com suas reflexões intempestivas, talvez a motivação interior necessária para lançar-se ao objetivo que se delineava, sem se deixar tolher pelas incertezas que o prendiam a um leito tíbio.

O carro em movimento trouxe-lhe uma corrente de ar que se metia pelos vidros escancarados, a estrada cada vez mais deserta e convidativa, enquanto seus pensamentos avançavam e recuavam, do presente ao futuro, das mãos sutis ao sorriso e às palavras que o perscrutavam e o atraíam em seus passos decididos. Escolheu uma das mesas do Happy Chef e sentou-se, deixando-se embalar pelas ternas expectativas. Àquela hora havia pouca gente, dois sujeitos no balcão, um casal conversando em uma mesa afastada e a iluminação intensa convidava os viajantes a experimentar as refeições rápidas do Charlie. 

Mesmo sem comer desde a noite anterior não sentia fome. Passou a mão no rosto, como se lhe agradasse apalpar a pele lisa. Voltou-se para a janela, observando o silêncio e sentindo o vazio da ausência. Charlie já estava ao seu lado para anotar o pedido, porém o que lhe ocorreu foi a imagem feminina, uma vez mais o sorriso expresso por lábios persuasivos, o contorno da boca sonolenta com seus belos dentes, a língua soprando-lhe palavras de ternura e os olhos, de um brilho arrebatador.




Ossos para o Natal



Terminou de recolher os ossos, ao tempo em que um novo dia se espraiava. Viu os dois colegas pularem do caminhão carregado e da plataforma de carga, teve mais uma vez a ideia do quanto haviam dado duro para que o veículo pudesse sair na hora certa, a fedentina coberta de moscas se afastando progressivamente, sem que seus olfatos se dessem conta. Deixou os dois colegas e no caminho do banheiro, pôde confirmar intuitivamente que não haveria mais abates. O espaço reservado às reses estava vazio e o pessoal da matança se divertia num canto. Era uma situação muito rara essa de terminar o trabalho ainda de manhã. Ele, como todos no matadouro, trabalhou pesado, desde a noite anterior, mais de sessenta reses abatidas e carneadas, os ossos avermelhados escorrendo pela calha, até estalarem na plataforma de carga, no lugar que todos conheciam como o cu do frigorífico e onde os caminhões encostavam, numa sucessão frenética, para serem carregados pelos três do setor de ossos.

Abriu o chuveiro, as gotas frias caindo, esparsas, por poucos minutos. Pelo caco que lhe servia de espelho, enquanto enxugava-se, viu seus dois companheiros entrando para o banho. Mirou-se uma vez mais, vendo a imagem esgarçada, cujos traços se definhavam com o passar dos dias e dos meses. Percebeu o quanto o olhar, que um dia fora de perseverança, estava nebuloso. Penteou os cabelos ainda úmidos enquanto pensava na proximidade de mais um final de ano que o pegava desprevenido. Lembrou-se que a noite seguinte seria de Natal, eram desejos de consumo que afloravam e presentes que se furtavam. Não saberia como encarar seus filhos, para quem as promessas de melhores dias se acumulavam. Maldito emprego, esbravejou para si, chamando a atenção dos amigos. Saiu às pressas, ganhou as ruas banhadas pelo sol inclemente, não conseguiu sentir-se livre.

Pensou em beber um trago no boteco, diante do ponto de ônibus, afinal ainda era cedo. Os amigos o convidaram para o bilhar. Bateu a mão no bolso, parte do dinheiro do vale estava ali, bem, por que não um joguinho? Tentou desabafar antes das tacadas, reclamando dos seus fracassos, que por serem também dos demais, caíram no vazio. Ninguém estava a fins de lembrar da vida, mas aproveitar o jogo e beber. Vieram à baila os prognósticos do campeonato do bairro, comentários da prisão do Bola Sete, as mulheres do imaginário e da vida real... e o tempo passou. No final da tarde, já bem grogue, resolveu ir para casa, mais pela falta de dinheiro do que por vontade própria.

A noite pronunciava-se em sua languidez habitual, quando despontou no alto da quelha de terra. Ainda brincando em frente do barraco, o filho menor viu o pai se aproximar. Os demais filhos e a mulher o receberam, num silêncio ainda mais grave que de costume. O mesmo homem, bêbado, sem forças, ruminando desgosto. Ele tirou da mochila dois belos ossos com alguma carne em seus interstícios, colocou-os na mesa junto com a roupa suja e foi para o quarto, desabando na cama até o dia seguinte.


16 outubro 2008

Georg Simmel


"O indivíduo se tornou um mero elo em uma enorme organização de coisas e poderes que arrancam de suas mãos todo o progresso, espiritualidade e valores, para transformá-los de sua forma subjetiva na forma de uma vida puramente objetiva. (...) Aqui, nos edifícios e instituições educacionais, nas maravilhas e confortos da tecnologia da era da conquista do espaço, nas formações da vida comunitária e nas instituições visíveis do Estado, oferece-se uma tão esmagadora inteireza de espírito cristalizado e despersonalizado que a personalidade, por assim dizer, não se pode manter sob o seu impacto".
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in A metrópole e a vida mental


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15 outubro 2008

E o pânico...


... insuflado pelos bookmakers do capitalismo contemporâneo chegou a bom termo. Como em toda correria desenfreada - vulgarmente denominada de movimento de manada - ficaram as marcas da sandice financeira que varreu o mundo. Nada como um final de semana para estancar o delírio gerado no ventre do capitalismo pós-moderno. O liberalismo sem limites tornou-se o cassino desenfreado que vimos nestes últimos vinte anos espoliar as riquezas das nações, enriquecer uns poucos e empobrecer a grande maioria que sequer sabia como jogar. As práticas empresariais atiraram ao lixo a conduta ética e a desregulamentação dos procedimentos foi a tônica dos negócios. Tudo funcionou virtualmente até que o crash despontou no horizonte, e naturalmente foi ignorado. No mundo corporativo, você é reconhecido não pelo bom-senso, mas pela ousadia irresponsável. Para iludir o fracasso, surgem as grandes palestras e conferências de vencedores, que te incutem o espírito pitbull, e vamos que vamos.

Mas retorno aos agentes representantes do capitalismo contemporâneo, os quais encontro nos logradouros da região da Paulista. Como é bom vê-los mais aliviados, esboçando um sorriso menos enigmático por cima da gravatas laceadas. Melhor ouvi-los, pois voltam a dar vazão às boçalidades corriqueiras, seja numa piadinha ou num comentário de futebol, e isso é um bom sinal. Avançam em grupos, três, quatro, às vezes cinco naquele caminhar de lagartos ao sol, após a refeição. O mundo de todos nós (e não só o financeiro) parece brilhar mais intensamente com essa imagem informal, leve, solta, quase inofensiva.

Esses agentes, sempre vestidos a caráter (como os profissionais dos bons cassinos) irradiam a felicidade de mais uma jornada de apostas. Na semana passada, a sequência foi ruim, mas seus patrões sobreviveram, e por consequência, eles também. A refrega foi dura, eles se mostram como bons sobreviventes e ei-los sorridentes, prontos a assumir seus postos e lutar com mais afinco do que nunca, pelo bem da miséria humana.



12 outubro 2008

Priene



Não penso em assistir a essa programação dominical, esvaziada de propósitos, onde prolifera o desfazer humano. Aquieto-me no escritório, onde retomo minhas fotos de viagem. Detenho-me, então, numa imagem singela, de magnífica construção. Os acontecimentos foram se sucedendo desde Kusadasi, em uma van cheia de viajantes. A bela costa turca do mar Egeu, com seu passado helênico majestoso, desbravado dia após dia de primavera. Quinze ou vinte minutos e a van atingiu as ruínas de Priene. Não tive pressa, apenas antecipei-me aos demais passageiros e saí. Subi o pequeno promontório, a transpiração agora abundante gotejando da testa, escorrendo pelas sobrancelhas, segui meu roteiro pelas ruínas. Fiz meus rascunhos em grafite da Ágora, dos restos da igreja bizantina, do Buleterion, circulei por passagens estreitas, firmando os passos em pedras talhadas há mais de 2.000 anos. Completei meus desenhos e anotações com a Stoa sagrada e por fim, com o teatro, a jóia da coroa. Ao longe, estendia-se a planície outrora ocupada pelo mar. Alcancei o topo das arquibancadas bem conservadas e do alto, lancei um longo olhar para o seu entorno, apreciando a estrutura bem conservada, envolvida pelo silêncio dos escombros milenares. Vejo ainda uma vez a imagem da arena e em seu centro, a mulher enigmática, que despontava solitária pelo proscênio, e que volta a alimentar o desejo de uma aproximação...

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11 outubro 2008

Sobre o mal-estar





Ao falar do ritmo de nossa vida contemporânea, Milton Santos disse:

"O que conduz a esse ritmo hegemônico é a idéia da competitividade, que é diferente da competição capitalista (...) A competitividade impõe o reino do fugaz, cria uma tensão permanente, que leva a esse atordoamento geral em que vivemos".



De 1968...


... para cá, os acontecimentos nos distanciaram dos caminhos abertos e saborosamente experimentados, proporcionando-nos um mundo orientado pela economia e pelo medo. Nunca a idéia de identidade foi tão anacrônica. Nas palavras de Bauman, “a idéia de ter uma identidade não vai ocorrer às pessoas enquanto o pertencimento continuar sendo o seu destino – uma condição sem alternativa”. Ou seja, no mundo “das oportunidades fugazes e das seguranças frágeis, as identidades tal como a conhecemos um dia simplesmente não funcionam”. Edgar Morin disse que “todas as pequenas doenças, as crises de fígado, as dores nas costas, desapareceram em maio de 68”, mas com o retorno do estado, os consultórios se encheram de novo. Hoje, o Estado desaparece e em seu lugar, a competitividade mortal do mundo corporativo. Somos cerceados pelo estresse, pelo individualismo, pela velocidade rumo ao futuro. Abandonamos a contestação, por mais efêmera que seja, sob o risco de atrapalharmos o trânsito. Fico a pensar o que significaria um indivíduo hoje colocar-se diante de uma coluna de automóveis, em plena avenida Paulista, parodiando o chinês que deteve uma coluna de tanques diante da praça Celestial... Simplesmente a paródia não seria considerada, a policia trataria de deter o “maluco”, sob as editorias sensacionalistas da mídia. Não há espaço – ou tempo – para o vislumbre de uma luz que ilumine a inquietude da alma.


10 outubro 2008

Sobre a compreensão dos fatos


Tudo parece um grande desperdício de tempo, carregado de inutilidade. Seria, pois, uma impressão provisória e intencionalmente trabalhada para que assim nos parecesse. A realidade cotidiana jamais deveria se mostrar desta maneira a nossa reflexão, ora patética, ora violenta, ora desanimadora, porém sempre imersa em espetaculosidade. Nossos olhos permanecem atentos às imagens, que não fluem em sua continuidade natural. Por uma questão de sintaxe audiovisual, elas são necessariamente fabricadas, ou, mais tecnicamente, editadas. São essas imagens editadas que nos absorvem a todos na maior parte de nossa jornada diária, que nos desmontam por sua eficácia semântica e nos seduz a abraçar a causa ideológica que desponta tão evidente, tão bem colocada. Eventualmente a imagem editada pode ser ilustrada por uma locução, seja ela indignada, debochada, séria, não importa, o que conta é que ela não é neutra. A locução pode ser over, ou seja, sobrepondo as imagens editadas que vemos - como ocorre nos noticiários - ou posterior a elas, e neste caso sob a rubrica de um comentário. Por exemplo, logo após a apresentação de um fato político, as imagens televisivas dão lugar a um comentarista que, no intuito de explorar o fato, apresenta a nós, receptores da mensagem, uma interpretação contundente, seja ela jocosa ou solene. Essa inferência aprofunda o caráter ideológico do emissor da mensagem, retirando a sensatez do direito de reflexão do telespectador/receptor. Fica no ar a necessidade de adesão ao discurso ideológico, por mais que discordemos dele. O argumento - substrato do sistema de idéias que sustenta a informação veiculada - será repetido diversas vezes ao longo dos dias, sendo apresentado como fruto da opinião pública, quando na verdade sequer saiu das mesas de edição.

De nossa parte, caberia ativar o senso crítico e – como receptores dessa massa de informações que absorvemos diariamente, em grande parte proveniente de um grande conglomerado – questionar a veracidade da edição. Desgraçadamente, porém, acabamos nos submetendo à notícia pronta, ao fato redondo, transmitido sob os auspícios de um alto padrão de qualidade, que afasta qualquer iniciativa em questionar seja lá o que for. Tudo está dado, dentro de um sistema tido como democrático, por que duvidar? Na verdade, o golpe é sutil: um pacote de impressões que nos impõe uma leitura, um entendimento, adestrando o senso crítico social de modo contínuo, desgastando nossa força de discernimento, nossa vontade criativa, nossa consciência da realidade. Daí porque nos transformamos em reprodutores de idéias veiculadas (nossa mísera participação na dita opinião pública), sempre em nome de uma suposta preservação do bem-estar social.

Historicamente deixamos de avaliar, de criticar e por fim, de compreender o que se passa em nosso cotidiano. A ação política passa a ser negada e hoje menosprezada nos entrechos do discurso midiático. Como resultante dessa distorção na comunicação, os anseios sociais passaram de reprimidos a ignorados ao longo dos anos. Afastados do direito de exercermos nossa crítica junto aos meios de comunicação, nos abandonamos à margem, sem direito à alegoria, constrangidos por um grande método que satisfaz algo tão abstrato como isso que nomeiam de mercado.

Há que resistir, embora não se resista; há que sonhar, embora no horizonte, só tristes pesadelos.


09 outubro 2008

A síndrome de Grouchy


Três e meia da manhã, não tenho como escapar das nossas tribulações. Não resistirei por muito mais, logo deitarei, esgotado, nesta noite calorenta, calada para além da conta. A cidade está irreconhecível neste princípio de feriado, as pessoas parecem ter desaparecido, em busca de outros rincões menos abafados. Verão quente, cujas noites não poupam os corpos, entorpecendo o espírito. 

O tempo na cama foi suficiente para a transpiração grudar-me nos lençóis malcheirosos, aumentando o desconforto da insônia. No lugar de remoer os impasses, passei a acalentar tua imagem dócil, dormitando à espera do alvorecer. Esqueci por um momento o embate com o clima sufocante ao recordar, ainda que de modo vago, teus laivos de carinho que sempre gostaram de me surpreender. Não que tenha sublimado a lembrança de tuas zangas, mas me engalfinhei em desejos fagueiros, vagando por gratas memórias de convivência intensa, experiências já um tanto distantes, mas... o certo é que por alguma razão deixei os registros do passado para me fixar em um futuro fugidio, em ti, soturna e imóvel na cadeira de balanço, abraçando-me com teus olhos de súplica silente, expressando tudo o que não falaste ao longo dos anos, mas que, através dessa aproximação memorial, me permitiu vislumbrar. 

Desse futuro improvável chegou-me a sensação cristalina de tuas chagas não cicatrizadas, deste seu olhar expectante. Pesou-me a dor íntima de teu olhar, essa quietude envelhecida, desassistida nos estertores da vida, olhando-me não em desafio, mas em alquebrada serenidade. Indaguei o porque dessa antevisão plena de sensações ambíguas, em um cenário onde qualquer manifestação nada mais acrescentaria. Mergulhei em abstrações e não tive como deixar de pensar na síndrome de Grouchy, o general que sucumbiu vencendo: sua destreza nos golpes táticos não anulou o estupor do fracasso estratégico... Nossas vidas clamavam por uma chance, enquanto nos desperdiçávamos com movimentos esvaziados, cingindo-nos de dor. 

Na janela aberta da sala, minhas ideias se embaralham com a percepção indulgente da paisagem. Em meio a uma noite de calor e insônia desponta a lua cheia, enquadrada na única fenda disponível entre os edifícios. Deixo-me enlevar por um anseio brumoso que escorre em meio a sensações múltiplas, sem dispor de nada a não ser da singela paisagem.



08 outubro 2008

Alucinante mundo novo

Barraco, Porto Alegre, circa 1900



E a escalada rumo à insensatez se completa. Depois do desvario das apostas promovidas pelas grandes corporações financeiras, o drama ganha dimensão na alucinação produzida pelos meios de comunicação. Ao capitalismo contemporâneo, manipulado por agentes cada vez mais ensandecidos em busca do limite de rendimentos, a um tempo progressivamente mais curto, nada mais adequado que as vozes e as imagens que não explicam, porém aprofundam a emoção. O objetivo é inserir você, cidadão incauto, na roda da fortuna e em seus desdobramentos. Nada funciona sem que você seja envolvido nesse sistema de reações intensas, que o levarão a sentir o enjoo da tensão, para ao fim e ao cabo, quando algum resultado aparecer, você participar da ressaca, não com o espírito crítico enriquecido, mas com um estranho sentimento de haver participado da festa sem ter sido convidado.

Essa é a ideia: ninguém sai incólume. Após o fim das utopias, determinado pela implantação do ‘maravilhoso mundo das oportunidades’, não restou alternativa senão sermos engajados à força na realização dessa grandiosa contabilidade de perspectivas fascinantes. Passamos a sonhar juntos um mundo novo, pleno de consumo, subsidiado por todo o crédito possível, estimulado pelas vozes e imagens produzidas pelas corporações midiáticas. A ideia da ilusão estava implantada desde o princípio, agora sem as resistências incômodas de movimentos culturais ou sociais. Como tolos, embarcamos na empreitada, acreditando sempre na existência de um pote de ouro ao final do arco-íris. Enquanto a frustração estivesse restrita ao âmbito individual, o sistema se sustentaria sem inconvenientes. Mas quando, por fim, a frustração – e mais do que isso, a consequência do desvario – atingisse o centro da engrenagem, algo precisaria ser feito – e não explicado.


Afinal o capitalismo sempre se pautou na ideia do sucesso, da realização bem-sucedida do empreendimento e a contabilização dos lucros. O que ninguém imaginava era essa experiência levada ao extremo, aos limites do possível. Para os seus agentes – políticos, financeiros e midiáticos – seria uma forma de implantar a felicidade do capital, o mundo dos desejos ilimitados. Resultou que não se previa o desarranjo dessa ordem perversa, de modo que na reação improvisada que temos acompanhado nestes dias vemos a grande engrenagem política e financeira emperradas, enquanto resta à engrenagem midiática nos levar ao desespero, à insegurança, como forma de proteção de todo o sistema fracassado (eu disse fracassado, e não falido).


Percebam nos semblantes endurecidos desses porta-vozes globais o frio distanciamento. Notem em seus discursos a pouca preocupação pela informação, mas o cuidado em descrever a vertigem que devemos sentir. Constatem que as análises impõem uma saída que nos salve a todos, e não que se investigue os crimes cometidos. No final das contas não há culpados, ou, em outras palavras, isso não é importante, contanto que o mundo das delícias e dos desejos ilimitados seja resgatado. As vozes e as imagens midiáticas nos incutem o desconsolo de nossa fragilidade, e que dependemos – como o viciado da droga mais poderosa – desse nefasto mundo das oportunidades desvairadas.




06 outubro 2008

Notícias sobre o estouro da boiada


As notícias giram em torno do naufrágio de Wall Street. Nossa imprensa colonizada, de um momento para o outro sem norte, divaga sobre as razões para o colapso, ironiza as afirmações do governo de que estamos preparados e embute em seu discurso mais uma proposta de crise a ser superada. O país tem sido submetido frequentemente a uma sucessão de crises. Foi a crise aérea, foi a crise parlamentar (caso Renan), foi a crise da saúde (dengue), foi a crise dos grampos (escutas não autorizadas) e assim vai. Mera exploração das circunstâncias. E elas não se esgotam, vão se sucedendo na pauta umas às outras. Patético. Menos pelo fato da mídia atacar quem não suporta (Lula), mas pelo fato de não cumprir sua função, ou seja, contribuir para o espírito crítico de maneira isenta. Criam as interpretações e promovem sua manutenção. Também não se tolera Chavez ou Morales, sempre trazendo um jeito de cobrar o governo brasileiro pela irresponsabilidade de possuir boas relações com esses governantes do mal. Mas Bush segue intocável. Destrói o sistema que o engendrou com toques de perversidade e os analistas o poupam, deslocando a crise à conjuntura dos fatos. Mais cinco ou seis anos e surgirão as biografias, que o enaltecerão (tal como se fez com Nixon e Reagan) como o grande estadista de seu tempo... E assim a engrenagem se move.


05 outubro 2008

A miséria da alma


Ele me falava sobre seus projetos de grandeza, aquele sujeito de olhar escuso alimentando uma expressão inconstante, ali a minha frente não saberia dizer por quanto tempo. Flutuava em seus pontos de vista, amarrando seu discurso com farta habilidade impregnada de canalhice, sempre que possível questionando minha conduta incompatível com os novos tempos. Sobrevinha então o sorriso que se pretendia dócil, mas que não passava de uma complementação de seus sórdidos argumentos. Colocava-se como um empreendedor nato, vencedor, voltado para a próxima conquista, 'e danem-se os que ficam olhando a banda passar'...

Os olhos se fixavam em um ponto abaixo dos meus, enquanto as frases cuidadosamente construídas buscavam me envolver na trama. Reproduzia sua estratégia de convencimento a cada novo assunto, colocando-se como um exemplo acabado de uma época sem passado, cujo presente nada mais é do que o ensaio de realizações futuras. Tempos confusos sim, porém 'abertos às atitudes decisivas, é preciso entender isso, cara!'... e então pontuou sua verborragia com o vazio de uma breve espera. Eu não precisei questionar o que ele entendia por 'atitudes decisivas', pois em seguida, ao retomar o fôlego, indicou a resposta, 'Vou lhe dizer, as concessionárias é que me procuram para eu trocar o carro... entendeu a diferença?!' O gesto melífluo no canto da boca expôs a substância da sua satisfação.

Demoraria uns minutos para retomar minha aula, de modo que optei por sacrificar meu valioso intervalo escutando aquele velhaco à deriva. Ainda me falou de sua editora' ('Já são mais de dez livros no catálogo, he he...'), como a tentar-me em uma estocada final, seduzindo-me ao seu mundo maravilhoso de sucesso. Agradeci polidamente, dizendo que não era ainda o momento de publicar meus textos. 'Então quando?'... rasgou em um impulso incontido. Calei-me, provocando o desfecho indignado, 'Você não quer entender, você não quer entender'... o sorriso transformado em puro desprezo.

Neste mundo em que as relações e os sentimentos humanos se liquefazem, o discurso dos vencedores se estabelece de maneira impositiva, desejando suprimir o discernimento entre o falso e o verdadeiro. O mecenato surge como uma forma de controle mercadológico, confundindo processo criativo com rotina criadora de produtos descartáveis. É dessa dinâmica tão alucinada quanto efêmera que se alimentam os tais vencedores pós-modernos.

Como diz Bauman, se neste momento você se torna um turista, um integrante da elite global, participante de elevados escalões de decisão, no momento seguinte a vertigem dos acontecimentos poderá lançá-lo à condição de vagabundo, aquele que sobrevive à margem dos acontecimentos, sem forças para tomar as mais elementares decisões.


Sobre crises



Essa tal crise mundial será alimentada pela mídia até não poder mais, como tem sido com as crises caseiras que ela tem identificado no Brasil. É uma forma de engambelar o leitor ad nauseam e manter alguma tensão política, criando insegurança, ansiedade, estimulando o efeito manada social. Ou seja, nada de construção de um espírito critico, mas um espírito assustado até a medula, subserviente ao próximo recado. Em rápidas palavras, o poder da informação a serviço do faturamento.