31 dezembro 2010

Recortes urbanos (1)


Berlim, 2010


Do meu ponto de vista, tinha uma parte do seu rosto, o nariz afilado, os lábios graciosamente desenhados, a face acetinada, o queixo discreto e mais abaixo, as mãos apostas sobre o colo, os dedos longilíneos, sem anéis, unhas pintadas em grená, as pernas dobradas, as botas, o inevitável tom negro recobrindo-a. Uma mulher em seus quarenta anos, que me seriam ditos ao certo se pudesse apreciar seus olhos, teimosamente encobertos pela recurvada aba do chapéu.

Eu estava em pé, do outro lado do corredor, ela sentada nesses bancos voltados para trás, bem ao lado da porta de saída. Meu ponto se aproximava, talvez mais três ou quatro minutos para desvelar por completo o brilho de seu rosto. Abaixar-me acintosamente, por sob a aba do chapéu?... Na altura da Potsdamerplatz, um fluxo de pessoas que entra e sai, o vento gélido que açodou a todos por um instante.

As portas se fecham, o veículo prossegue. Surge uma vaga no assento diretamente em frente ao dela, e então por fim, a vejo mover a cabeça para o interior da condução, as mãos a esfregar-se umas às outras. Tem os olhos azuis, marcados pela reminiscência de um outro tempo. Logo tornou a olhar através da janela. Os lábios ofereceram um breve sorriso, acaso um espasmo de sua distração, um detalhe da paisagem, uma recordação efêmera?...

Outra parada, a minha. As portas que se abrem, a ruptura, o corpo expelido para o frio inclemente, que absorve o ruído do motor, a distanciar-se em definitivo.



16 dezembro 2010

Memórias de ontem e de sempre


Albergue da juventude, Amsterdã, 2001

Por uma dessas razões insondáveis do ser, tenho me voltado para o silêncio das memórias, tomadas aqui e ali, vivenciadas em um átimo, ao saboroso acaso. Passagens como registros que anunciaram mudanças, expressão de movimentos sensíveis, que se desdobraram em delicadas intervenções... A russa que, sem falar uma língua cognoscível, o impediu de perder-se nas mãos de um farsante, em uma fronteira esquecida no mundo... A linda adolescente, subindo de costas a acentuada ladeira, para não perder o belo desenho do casario e, ao fundo, o mar azul... O publicitário pressionado, que exausto, cochilava no trem, a caminho de casa, e sonhava com uma cidadezinha bucólica chamada Willoughby... A criança com a cabeça apoiada no colo, ouvindo-lhe as histórias do mundo...

Ou o último minuto do avô, ainda jovem, na casa dos pais... sua saída pé ante pé, do quarto com seus seis irmãos em sono profundo. O instante imóvel à porta e voltando-se para apreciar um por um os irmãos, dar uma olhada geral e partir para nunca mais voltar. Um último olhar, o fim de um tempo, o começo de outro, novos ares, incertos e desafiadores...

Momentos de singeleza, suspensos em um tempo que foi e que, naturalmente, ressurgem no presente.

***

Nenhuma despedida é fácil, nem parecida com outra. Cada uma guarda sua dor, seus mistérios. Nenhuma parece durar além do tempo necessário, me refiro à despedida trágica, aquela que parece nos despir um pouco mais para a morte, que desponta como um rasgo na vida, rompendo com uma maneira de ver o mundo, para sobrepor algo mais dramático... A professora de português do ginásio, odiada ao longo do curso por suas exigências de leituras, mas que, naquele último encontro, fez resplandecer seu brilho de educadora à saída da sala de aula, o bondoso sorriso que havia guardado para uma ocasião especial, e logo retirando-se pelo caminho dos deuses...

Ou o olhar da última visita... o difícil foi saber, desde o princípio, que tratava-se da derradeira visita. Ao chegar, os olhos da avó perscrutaram detidamente o ambiente, as pequenas coisas, sem se preocupar com a conversação dos presentes. O sorriso derramava-se por todo o espaço, todo o tempo, apresando-lhe as palavras... Por fim levantou-se, beijou o neto e caminhou até a porta. Avançou mais um pouco e, como é tão comum à espécie humana, voltou-se ainda uma vez, desejando quem sabe apreender o inapreensível, e o fitou como jamais o fizera antes...

***

Abandonar um parêntesis da vida, uma breve ficção da existência. A manhã despontando através dos janelões, a quietude do salão antes do burburinho do café da manhã, o olhar atento perdido na paisagem gelada do lado de fora, os pensamentos fomentados incessantemente, o desejo de ficar, em conflito com a necessidade de reassumir a realidade da vida cotidiana, e assim os minutos contados antes do inevitável regresso...

Ou o oposto, os últimos passos na cidadezinha não amada, mas que o recebera por um longo período. O passeio final, para ver o que até então não tinha visto, as pessoas com suas faces altaneiras, as ruas com sua mansa sonoridade, os recantos não mais odiados, o sol, bendito sol, que sempre estivera ali e que irrompia em sua poderosa energia... Era seu tempo de juventude, e sabia que naquele momento reencontrava a liberdade. A despedida significando o abandono de um imobilismo, mais do que prematuro, opressor...

***

O registro memorial do particular, aqueles notáveis, de significativos desdobramentos, como também os impressos nas esferas do universal, de serena manifestação... O sujeito perdido em um cruzamento, abordado pela velha que lhe expõe a beleza de cada destino... A criança com os pés descalços, sentindo a areia quente e fofa do caminho... O homem velho, que se aconselha com a mãe, há muito não mais presente no mundo... O olhar marejado da mulher, a compartilhar a desventura do amado... O rapaz indeciso na plataforma, que resolve tomar o primeiro trem, redimensionando seu destino... A garota no banco da praça, detida nas minúcias da leitura, deixando-se levar pelo encanto da narrativa e pelo passo do tempo...

Múltiplas e surpreendentes lembranças, cuja simples retomada me renova, neste momento de expectativa...



13 dezembro 2010

Fábulas de hoje e de sempre


Pois foi, então, que o maligno resolveu dar as caras. Estava cansado de apostar a alma dos humanos, de preconizar maravilhas, de seduzir com sua conversinha bem posta, de tal modo que decidiu retornar com uma nova atitude.
Fazia já um tempo que observava, do alto (isso me parece um abuso de sua parte, mas em se tratando do demo...) aquele fazendeiro de incomensuráveis posses, mergulhado em abundante fortuna e ainda assim, insatisfeito. Um homem que vivia uma vida de consumo exacerbado, sempre acompanhado por belas mulheres, grandes empresários, ainda que não passasse de um velho solitário e desgostoso. O detalhe que interessava ao demônio era sua ansiedade por conquistar, por apropriar, por acumular, fazendo desse expediente seu entretenimento preferido.
Foi fácil ao tinhoso se apresentar e, após uma breve demonstração, convencer o fazendeiro de seu poder.
- O que você quer de mim?
- Nada, só estou aqui para lhe oferecer...
- Oferecer o quê?
- Bancar todos seus desejos materiais!
- Todos meus desejos materiais... - um leve sorriso iluminou as faces gordas - e o que você ganha com isso?
- Bom, deixe que eu me preocupe com essa questão...
O fazendeiro não viu problemas com a proposta.
- E o que devo fazer?
- Apenas me diga sim, um simples aceno positivo - comentou um tanto enfastiado com a conversa - e as coisas se arranjarão para você e para mim...
O fazendeiro assentiu, o demo não precisou esperar mais e, pluft, desapareceu no instante seguinte. Tudo muito fácil, rápido, cordato, sem assinaturas, apenas a essência da palavra dita (ou no caso, do gesto assentido). Para o latifundiário ambicioso, nada mais adequado e promissor, para o diabo, nada mais propício uma nova aceitação humana envolta de seus projetos...
Ocorre que para dar por um lado, o demônio achou por bem tirar de outro. Se apareceu para oferecer com uma das mãos, simplesmente decidiu tirar com a outra, sem mais delongas. Uma rápida olhada na região e, mais uma vez do alto, observou, espremida às bordas de um riacho pedregoso, uma pequena propriedade arrumada em um ponto esquecido de uma planície esturricada, que destoava da fertilidade das terras do fazendeiro.
Morava ali um casal de meia idade, que tirava o sustento da terra áspera. A casa era pequena e bem instalada, caiada, de telhado vermelho e janelas acortinadas. Nos fundos, chamava a atenção uma trilha de pedregulhos, que serpenteava um pomar de árvores frutíferas e pequenos cultivos, conduzindo até um banco de madeira, tão rústico quanto acolhedor. Dali podiam vislumbrar as dimensões da planície e a imensidão da noite.
O demo não pensou muito: Se dou para aquele, tiro destes. Sua jogada era de perversa simplicidade, conduzir a todos os envolvidos, o fazendeiro ali e o casal chacareiro aqui, ao desconsolo profundo, aquele pelo excesso, estes pela falta aguda. Nem precisou aparecer em frente ao casal e uma vez desencadeada a ação maligna, pôs-se a acompanhar tranquilamente, de tempos em tempos com um copo de scotch nas mãos esguias, Isso será divertido, e descarregou no éter aquela gargalhada metálica, saída das profundezas de seu ventre indecoroso...
Quanto ao ambicioso latifundiário, ele se abarrotou ainda mais de bens e serviços. Assacou, possuiu, comeu, bebeu, defenestrou, abordou, granjeou, expoliou, apresou, comprou com requinte e mais tarde, perdulariamente... não sendo suficiente, achincalhou, azucrinou, humilhou, apegou-se e depois descartou, consumiu e regurgitou, até perder-se em meio à mais desnecessária fartura. Ao fim e ao cabo, não teve mais como mover-se, em meio ao olhar parvo, devastado pela matéria e acuado pelos pensamentos insones, já impossibilitados em alcançar algum prazer... E desconsolou-se profundamente. O funesto esfregou as mãozinhas avermelhadas, com mais uma daquelas gargalhadas que rasgavam a garganta, impregnadas do mais completo desprezo...
Quanto ao casal, nada foi mais doloroso que o passar dos dias, progressivamente mais longos e difíceis. Trabalharam de sol a sol, replantando as culturas fenecidas, carregando o peso de um esforço laboral cada vez mais hercúleo. Comiam o que podiam colher e o que podiam colher lhes garantia a sobrevida física. Faltou provimento de lenha para as noites mais frias e o descanso dos domingos. O silêncio nas imediações tornou-se abissal, e a aspereza da paisagem, cada vez mais pronunciada. Até para a sádica apreciação do diabo, o cenário de desconsolo se aproximava do limite supremo. As faces covadas, os braços ressequidos, os passos cada vez mais miúdos buscavam durante os dias o sopro da vida. Mas havia as noites, e com elas, os gestos que os impregnavam de esperança.
Quando o breu se tornava mais profundo e sequer se percebia o chão do próximo passo, lentamente se esgueiravam pelo caminho de pedregulhos, até o banco de madeira, e ali sem nada mais a dispor, voltavam-se para os céus. E encontravam o luzir das estrelas, com o qual se punham a imaginar o futuro. Nos dias de lua cheia, havia a oportunidade de espreitarem os rostos, tocar um ao outro, sentir o calor das faces, desvelar o sorriso embargado... Pouco falavam, a tudo intuíam. Sentiam-se, nestes momentos, fortes o suficiente para não se desconsolarem. Se os bens materiais, o dinheiro, a ambição, os prazeres supérfluos, as coisas forjadas pelos homens acabaram-lhes negadas pelo demo, as benesses de Deus permaneciam intocadas e assim, disponíveis para os corações atentos. A beleza fugidia da lua, o canto suave do pássaro noturno, o mar de estrelas a enaltecê-los em seus sutís desejos, o deslizar da lágrima perdida, os carinhos tão solenes, o vento que emaranhava os cabelos, a suavidade das sobrancelhas, o canto dos lábios, o desenho das marcas de expressão, os olhares cúmplices e mais do que tudo, o amor renovado a cada noite.
Contra essas pequenas dádivas, o diabo nada pode fazer e dando-se por vencido, escafedeu-se para outras paragens...


02 dezembro 2010

Carlos Drummond de Andrade (2)


Segredo
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A poesia é incomunicável.
Fique torto no seu canto.
Não ame.
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Ouço dizer que há tiroteio
ao alcance do nosso corpo.
É a revolução? o amor?
Não diga nada.
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Tudo é possível, só eu impossível.
O mar transborda de peixes.
Há homens que andam no mar
como se andassem na rua.
Não conte.
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Suponha que um anjo de fogo
varresse a face da terra
e os homens sacrificados
pedissem perdão.
Não peça.
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(nunca, absolutamente nunca será demais nos alimentarmos de Drummond!)
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Carlos Drummond de Andrade (1)


Poema de Sete Faces
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Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.
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As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.
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O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Pra que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.
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O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.
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Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.
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Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.
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Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.
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30 novembro 2010

Sobre a boçalidade

Há modos variados de se apresentar a notícia, como há modos de se discutir a boa literatura, e como também há modos de se posicionar politicamente. Nos três casos em questão, conta a maneira de se abordar o tema, qual o objeto de análise, qual o discurso utilizado, qual o objetivo a ser alcançado.

Nem sempre as respostas nessa metodologia da informação são claras. Começo pelo primeiro caso, explorando um tema que me foi caro porque o vivi em tempo real, com o privilégio de dispor de pontos de vista distintos. Falo do golpe em Honduras. Como já escrevi anteriormente neste blogue, cheguei dois dias antes do seu desfecho em Caracas, e ali acompanhei atentamente a ampla cobertura do que seriam as eleições do dia 28 de junho, sintonizando tanto a CNN quanto a Telesur.
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Com as recentes revelações do Wikileaks, ficou mais do que evidente que a cobertura (e consequentemente a versão da CNN) foi um mero jogo de cena político, que descartou desde o princípio a ideia de golpe de estado. No caminho oposto, a Telesur procurou tratar o caso como uma ruptura constitucional, investigando os passos do golpe e o exílio truculento do presidente Zelaya em San José, na Costa Rica.

Sem esforço, o jogo de cena foi assumido pelos veículos midiáticos hegemônicos (destaquemos a rede Globo, grupo Clarín, Globovisión), que insistiram em apresentar o evento como uma transição forçada de poder. Recordo-me de ouvir pelo menos um caso fatídico de justificativa do golpe, proferido por Raúl Jungman em uma entrevista, sugerindo que o gesto brutal encontrava amparo na constituição hondurenha...

Vemos agora, nos transbordos trazidos a lume do Wikileaks, mensagens diplomáticas do governo estadunidense admitindo o golpe. "Sejam quais sejam os méritos de um caso contra Zelaya, sua remoção forçada pelos militares foi claramente ilegal e a elevação ao poder de Micheletti como 'presidente interino' foi totalmente ilegítima", declarou o então embaixador estadunidense em Honduras, Hugo Llorens. Ou então: "Não há dúvidas de que os militares, a corte suprema e o congresso conspiraram em 28 de junho no que se constituiu em um golpe inconstitucional e ilegal"...

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Passemos para o segundo caso, e aqui desejo me referir de modo especial a um comentarista histrião que persiste em fazer suas análises ricas em charlatanice nos jornais globais, com reprodução na CBN. Em essência, os comentários tornam-se achincalhes ao governo Lula, apresentados em um discurso que pretende ser engraçado, e que não mais são do que leituras farsescas de uma realidade complexa...

Pois esse poço de sabedoria e arrogância, em recente entrevista à revista da Cultura, dentre uma série de comentários mal humorados, sai-se com essa pérola sobre Fernando Pessoa: "Sempre li muita poesia, como a do João Cabral de Mello Neto, um cara genial que ensina a gente a escrever. Mas tem uns poetas que odeio... e vão me esculhambar por causa disso. Fernando Pessoa. Acho chato, insuportável, uma bicha lamentosa reclamando o tempo todo da inexplicabilidade da vida (...).

O mais patético disso é que esse bobo da corte (pelo esforço de ser engraçado em suas análises políticas) a serviço de uma aristocracia perdida, tem tempo e completa abertura para externar comentários como esse, eivado de rancor e preconceito contra um dos maiores poetas da língua portuguesa. Lembra-me um lamentável analista da Veja, da mesma estirpe e que se escafedeu para a Itália, um Mainardi que certa vez resolveu arengar contra Carlos Drummond de Andrade ("Chega de Drummond. Pelos próximos dez ou quinze anos, é melhor ficar longe dele"...)...

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Por fim, chego à xenofobia que, por um momento, expandiu-se pelas redes sociais, logo após o resultado das eleições. Um processo que imagino ter se alimentado com a desinformação dos meios hegemônicos, todas as interpretações do discurso dominante eram induzidas para a demonização de uma candidatura. Em outras palavras, abriu-se a possibilidade da crítica descontextualizada, cujo objetivo único era alcançar um fim, a vitória do candidato sem brilho, sem discurso. A alucinação do processo alcançou os comentaristas histriônicos, avançando pelas mídias sociais.
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Ao fim e ao cabo, com a proclamação da vitória retumbante de Dilma, abriu-se um vazio nos canais da intolerância, logo ocupados pelo mais vil preconceito. Foi necessário achar um bode expiatório para a derrota, como se ela não estivesse explícita deste o início, e daí à multiplicação das ideias vulgares, atacando os nordestinos, foi um passo, simbolizado nas palavras da estudante de direito Mayara Petruso, "Nordestisto não é gente, faça um favor a SP, mate um nordestino afogado"...


28 novembro 2010

Sobre a dignidade




Foi duro, muito duro... considerando as circunstâncias, o brutal embate de cada dia, a esperança de vencermos uma eleição acompanhando a má vontade do discurso hegemônico, desejoso em investir no candidato sem projeto e sem ideias... E assim, passamos - todos os que enfrentaram o bom combate - à espreita das surpresas de cada dia, as manchetes de primeira página, as capas de revistas, as distorções editadas nos jornais globais, para então reagirmos em nossos atos solitários e solidários... Processo de profundo desgaste essa expectativa infinda, de contestar a farsa, o cinismo, a dissimulação, procurando sempre responder trazendo a discussão ao contexto dos acontecimentos.

Foi, como disse, um processo de profundo desgaste, ao qual, confesso, me recupero aos bocados. A felicidade não foi devidamente comemorada com os bons amigos, ainda porque estamos enfronhados na labuta das jornadas diárias. Mas logo me reunirei com uns poucos abnegados, companheiros de todos os dias, para festejarmos a vitória que certamente dará continuidade ao elenco de transformações sociais neste país.

Não posso esquecer o papel fundamental das redes sociais, dos amigos devotados, do jornalismo independente que na figura de destemidos cidadãos, utilizaram da melhor maneira o suporte digital para levar a informação necessária, aquela que nos alimentou para difundir o esforço boca a boca dos argumentos decisivos. Esses bravos lutadores que não se renderam, e que de maneira digna sobrepujaram as dificuldades das circunstâncias, souberam prover com coragem e determinação uma ampla conectividade na rede virtual, decidida a propagar a verdade dos fatos.

De modo que foi com indisfarçável satisfação que acompanhei o encontro dos blogueiros com o presidente Lula, um significativo desfecho para todo o episódio eleitoral. Um encontro que celebrou a sagração, dentre outras coisas, do respeito ao próximo.

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Em conversa com meu pai (e para mim é sempre muito bom ouvi-lo), soube de um episódio que conhecia vagamente, e que ocorreu há muitos anos. Foi quando a sua vida ainda não estava consolidada, os filhos ainda pequenos, as prestações pesadas, um desses infindáveis dedos acusadores resolveu difamá-lo, junto às pessoas próximas.

Discretamente então, dirigiu-se à diretoria da empresa e pediu demissão. Não criou nenhum alarde, e posso imaginar que se expressou com o surpreso diretor no mesmo tom sereno com que elucidou os fatos para mim. Um mísero dedo acusador, do qual nada mais se soube...

Meu pai preservou a altivez, pediu demissão. A sua explicação: não tinha como prosseguir em uma empresa onde existisse um mínimo de desconfiança sobre meu caráter.



20 novembro 2010

Encontros



Recordo que em minha infância era comum passarmos um tempo em Congonhas, vendo os aviões decolando e aterrisando. Era um programa natural, familiar, nos finais de tarde dos domingos após a missa. As pessoas se acomodavam em uma longa sacada e contemplavam o movimento das aeronaves, os Constelations com quatro hélices, os passageiros embarcando ou desembarcando na pista, o cheiro de querosene, o ronco quádruplo ampliando ou se afastando, de acordo com as manobras, enfim, aquilo parecia um mundo distante do nosso alcance, por isso talvez gostássemos de apreciar. Depois, descíamos a imponente escadaria rumo ao saguão central e encontrávamos um movimento mais denso, que misturava visitantes com viajantes.

Em uma dessas ocasiões, lembro-me de um fuzuê mais acentuado que de costume. Diante do elevador, o time que encantava o mundo, a delegação do Santos Futebol Clube, que chegava ou partia para uma de suas infindáveis excursões. Também me lembro que, sem grande esforço, avançamos por entre as pessoas até alcançarmos o jogador mais procurado, Pelé. Frente a frente, aquele instante que costuma congelar a passagem do tempo. Com um belo sorriso, ele me estendeu a mão e pude cumprimentá-lo, sem ter noção exata da dimensão do acontecimento.

Sempre que rememoro esse momento, deixo-me levar por uma satisfação muito pessoal, que se renova desde aquela longinqua perspectiva juvenil...

Muitos anos mais tarde, subo a rua Augusta, sob uma leve brisa primaveril envolvendo o início da noite. Vislumbro lá no alto, mais acima do espigão da Paulista, o brilho sedoso da lua cheia, como a saudar uma jornada rica em adoráveis momentos, a aula animada e a energia contagiante dos alunos, pela manhã; a conversa doce com a mulher dos sonhos, à tarde; a leitura e o café, seguidos pelo caminhar imerso em suaves impressões, no começo da noite. Um senhor passa e me pede as horas, jovens que sorriem, avançando pelo cruzamento, outra lufada fresca de vento, uma sensação de pleno bem-estar...

O cinema, a poucos passos, indica algum evento especial, há um adensamento de pessoas que transborda pela calçada. Logo me aproximo e identifico Ricardo Darín, rodeado por três ou quatro fãs, fotos, sorrisos, tudo marcado por gestos generosos e pela completa informalidade, basta se aproximar para abordá-lo. Acompanho o movimento por uns instantes, a tempo de lembrar de suas belas atuações, impulsionadas pela força da narrativa cinematográfica argentina. Despontaram Nueve Reinas, uma aula de como contar uma boa história... o comovente El hijo de la novia, o apaixonante El secreto de tus ojos... Mas lembrei-me de maneira especial do sublime Kamchatka, tão pouco conhecido. Ali, Ricardo Darín teve, em minha opinião, sua mais destacada atuação.

Aproximei-me um pouco mais, estendi a mão, disse-lhe de minha admiração por seu trabalho, simples assim. Ele permaneceu com seu sorriso tão natural, agradecido por minhas palavras, Gracias, muy amable... muy amable...

Completei a jornada com um saboroso café, na cafeteria de costume. Lá, reencontrei os prestativos e carinhosos atendentes de todos os dias...


03 novembro 2010

Impressões de uma jornada feliz




Recebi um email da querida MR, que manifestou, em poucas linhas, o extravasamento de uma grande alegria, que gostaria de compartilhar com todos:

---- Que lindo dia hoje, Marco! (Quando saí fui até o começo (fim) da Paulista, não entrei porque estava bem cheio e tinham crianças no carro que estavam sem cinto... houve uma festinha de Dia das Bruxas por aqui e assim comemoramos, espantando as bruxas que já foram...)
---- estou lendo A Vida Privada, juntei com o Robert Darnton - lembra-se, a Marialva Barbosa falou dele - e vou trocar a informação dos saraus (porque não consigo encontrar referências tão confiáveis) pela questão da leitura - descobri coisas bacanas, entre as classes populares havia um momento do dia, ao fim da tarde, la veillé - em que se reuniam para ouvir-ler - as mulheres costuravam, os homens mexiam em ferramentas...
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vamos ver se não me perco neste embrenhado de coisas bonitas!
beijos
MR
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O que me estimulou a lhe descrever minhas impressões, vivenciadas no mesmo final de jornada:

MR querida, o dia seguinte tem sido de profundo relaxamento... como se todos os temores e fantasmas acumulados deixassem de vez o convívio, permitindo uma brisa suave e generosa... como ontem, a noite fresca, as pessoas felizes, com o sentimento do dever cumprido... porque não tenho dúvidas, MR, que todos que buscamos as ruas, buscamos nossos cúmplices nesta dura luta muitas vezes silenciosa, mas honesta e decidida, feita nos espaços e nos tempos possíveis de nossa vida cotidiana, junto aos outros, esses outros que estão aí, que compõem a sofisticada razão de nossa existência...
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Foi belo, em certo momento, deparar com a avó e seus dois netos, talvez de sete e quatro anos, cada um com a bandeira da Dilma, acompanhando o discurso do carro de som... Cenas discretas, inúmeras como essa, que se diluíram no frescor da noite para demarcarem um novo espaço de luta, esse que se define na satisfação de uma vitória e no comprometimento com um mundo mais feliz e encantado...
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As muitas crianças que encontrei me permitem acreditar nesse encantamento, nesse senso de justiça e desejo de um reencontro com a mais genuina narrativa humana, sensível, rica em suas nuanças, e não a mera reverência ao sucesso a qualquer preço, definido pelos relatos contábeis das corporações e a brutalidade atroz de um ritmo que não é de ninguém, senão do lucro...
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Reencontrei com especial simpatia os olhares detrás do balcão... Para um deles, que reverberou um brilho de incontida felicidade, expus um pouco dos momentos da festa na avenida e minhas expectativas do novo governo...
É tempo de Monteiro Lobato, não de La Fontaine, MR querida, ao menos no que diz respeito à fábula da cigarra e da formiga... esse final que aproxima, que respeita, que acalenta, e que passo a lhe relatar:
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"(...) Aparece uma formiga friorenta, embrulhada num xalinho de paina.
- Que quer? – perguntou, examinando a triste mendiga suja de lama e a tossir.
- Venho em busca de agasalho. O mau tempo não cessa e eu... - A formiga olhou-a de alto a baixo.
- E que fez durante o bom tempo que não construí a sua casa? A pobre cigarra, toda tremendo, respondeu depois dum acesso de tosse.
- Eu cantava, bem sabe...
- Ah!... - exclamou a formiga recordando-se - Era você então que cantava nessa árvore enquanto nós labutávamos para encher as tulhas?
- Isso mesmo, era eu...
- Pois entre, amiguinha! Nunca poderemos esquecer as boas horas que sua cantoria nos proporcionou. Aquele chiado nos distraía e aliviava o trabalho. Dizíamos sempre: que felicidade ter como vizinha tão gentil cantora! Entre, amiga, que aqui terá cama e mesa durante todo o mau tempo. A cigarra entrou, sarou da tosse e voltou a ser a alegre cantora dos dias de sol".
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Não é lindo!...
Beijos...
Marco.

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31 outubro 2010

Sobre rupturas e continuidades


Chegou o dia em que a nação brasileira tem a oportunidade de confirmar o prosseguimento de um projeto exitoso. Um projeto que consegue romper, no contexto político interno, com as amarras da desigualdade, e no externo, com a síndrome da submissão permanente. Podemos, então, erguer a cabeça e olhar para o horizonte, e compreender que é possível alcançar uma vida mais digna, mais feliz. Uma vida em que é possível compartilhar a riqueza da terra e do espírito, sua graça e generosidade, sem a lamúria burguesa que não cansa de nos comparar com o estrangeiro e vilipendiar a nossa maneira de ser...
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Somos o que somos, superando nossos infortúnios e construindo um futuro mais generoso, propenso a reverberar nossas características mais saudáveis, de modo indiscriminado. Rompemos com os impasses que nos acovardavam, com os tabus que nos descreviam como folclore, com os arautos que nos acorrentavam à miserabilidade... Deixamos de ser apenas a beleza que ginga, seduz e que se limita a gerar desigualdade, para firmarmos uma beleza cada vez mais dona de si, que se redescobre e se delicia em manifestar sua voz...
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Tornamo-nos uma nação que não anda a reboque, nem tampouco aceita os desígnios impostos. Nossa criatividade passa a ser cada vez mais uma qualidade a serviço da democracia conquistada. Podemos falar de distribuição de renda, de inclusão digital, de participação no consumo, de qualificação profissional... Os outrora discriminados agentes sociais são protagonistas, por fim, da escritura de nossa narrativa, inscrevendo-se como destacados representantes da nação. Mais do que alçarem a visibilidade, edificam suas vozes, tão lúcidas e sofisticadas...
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Quanto ao rancor, pobre efeito recalcado dos renitentes senhores de engenho, ele se esgarça em seu último brado, patético, envelhecido, enraivecido... Ignoram que o Brasil não é mais uma nação dividida entre a casa grande e a senzala, mas que se desenha à luz de um projeto mais justo, mais avançado, mais democrático, conduzido por uma sociedade organizada em torno de seus autênticos propósitos.
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22 outubro 2010

O vazio, miserável vazio

Confiteria El Molino, BsAs.


Ficamos, então, nessa indispensável discussão sobre se foi uma bolinha de papel ou de chumbo o que atingiu o candidato pastel de vento! Prosseguimos nesse combate insosso de refutar cada linha do discurso vazio bancado pela mídia hegemônica. Mais uma demonstração cabal de que nada de construtivo podemos esperar desse jornalismo, que se perde em seu desespero!
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Aqui da Argentina, fico acabrunhado em ter de explicar o que se sucede com a cobertura jornalística das eleições presidenciais de meu país. Não se entende por que tanta bobagem recorrente! Não se entende como um jornalista se sujeita a ser um mero capataz de seus patrões! Não se entende por que tanto ódio e desprezo a Lula, se todos aqui o admiram! Ainda hoje, vi declarações do ex-presidente e oposicionista Duhalde, afirmando que Lula seria a referência a ser seguida!...
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No congresso de mídias alternativas que estive presente nestes dias, na Universidade Nacional de La Plata, não tive como me furtar em abrir um parênteses em minha ponência e comentar sobre os descaminhos da mídia hegemônica, e a impossibilidade de nós, brasileiros, nos informarmos adequadamente sobre as eleições a partir de sua cobertura. Obviamente fiz a devida referência à mídia alternativa, ao jornalismo independente, aos blogs sujos e às mídias digitais como um todo, porque é graças a esse esforço concentrado e dedicado que nós, brasileiros esperançosos em um Brasil cada vez mais justo e independente, rompemos com as farsas midiáticas e ajudamos a rebater a infâmia.

Triste, muito triste por acompanhar a degringolada de uma oposição que perde o rumo e a decência. Ao que vejo, o candidato sem projeto prossegue em seu vão esforço de criar factóides, juntamente com seu staff publicitário, para a partir deles e somente deles, conseguir alguma sobrevida... Pois não a terá, e quanto a isso estou cada vez mais confiante de que o os brasileiros saberão dar uma resposta à altura, nas urnas, dia 31.

Em tempo: precisamos reconhecer que temos, nessa Argentina tão intrincada e fascinante, um importante aliado que espera nossa aproximação e nosso reconhecimento. Já é tempo de superararmos as diatribes baratas, costumeiramente exaradas pelos meios hegemônicos, e vê-la com olhos de ver, e senti-la com o coração de quem sabe apreciar virtudes.



11 outubro 2010

Por que Dilma


Ao acompanhar ontem o debate entre os candidatos à presidência, reforcei as duas impressões que tenho de cada um: do candidato oposicionista, que me aparece como um pastel de vento, insosso em seus propósitos, sempre preocupado em prometer e mostrar que sabe o que não sabe; e da candidata Dilma Rousseff, que mostra um consistente conhecimento do projeto a que se propõe dar continuidade. Simples assim.
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Ao ouvir Serra, não ouço nada de estimulante, não me convenço com seu trololó, repisado e vago demais para quem almeja oferecer algo de inovador. Ao ouvir Dilma, sinto em sua contundência o espírito de um trabalho que aprofundará as importantes mudanças em curso em nosso país. Compreendo seus argumentos, admiro seu entusiasmo e respeito a coerência de sua história, aspectos que não contemplo no candidato opositor.
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Além do que, esse projeto de nação se liga a um projeto mais amplo, o da integração regional, reforçando as relações políticas e econômicas com os países sul-americanos. Dilma dará continuidade a uma política externa até aqui bem sucedida, marcada pela autonomia de princípios e pelo aprofundamento das relações multilaterais. Ou seja, não permitirá que voltemos a nos sujeitar aos ditames do consenso de Washington, nem tampouco à volúpia desmedida dos capitais especulativos.
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Prosseguiremos com uma política de incentivo à presença de empresas nacionais em setores estratégicos para o país, ao desenvolvimento tecnológico que melhore as condições de vida do povo brasileiro, às políticas de microcrédito, à preservação e aperfeiçoamento dos projetos sociais. E não tenho dúvidas que, com Dilma, as reformas necessárias, dentre elas a política, bem como a regulamentação das leis dos meios de comunicação, serão implementadas.
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E por que não acrescentar, será importante como um novo gesto de ousadia democrática de nosso povo, que após a governança bem sucedida de um torneiro mecânico, seja proclamada a força e a sensibilidade da governança conduzida pela mulher brasileira.

Uma oportunidade de grande significação, e bem ao nosso alcance.



04 outubro 2010

Frustração




A manhã de um cinza frio e distante, o caminhar pelas ruas, por entre as pessoas que passam e projetam expectativa... O ônibus grave, imerso em silêncio, olhares que desviam-se, inapreensíveis, que aguardam o destino, que voltam-se para si, como se pudessem antever o amargo desfecho do dia...

... enfileiram-se como em todos os dias, os vidros embaçados, embora seja domingo de eleição, a chance de purificar as blasfêmias disseminadas... a chance do protagonismo sem cabresto, sem família com deus pela liberdade... e lembro de Alberto Caeiro, Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora/E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse/Que nunca é o que se vê quando se abre a janela...

... o bairro burguês, em silêncio desenxabido, agora úmido... a escola, o vai-e-vem para as salas de votação, a conversa desgastada de três sujeitos bem vestidos, em frente, na fila, a presença do ódio misturado com desprezo, o voto para qualquer oposição... e logo as piadas sem graça... a presença desse ódio que abstrai a alma, o ruído da máquina indicando o voto, nada de fiscais, nada a registrar a cidadania, senão lábios que se calam... gestos suspensos...

... o nada que antecipa... o nada que promove todo e qualquer juízo negativo... novamente as ruas desencorpadas, a casa da família, amigos também reunidos e o desafio lançado em forma de provocação, mais uma, que saco!... apresento a resistência dos fatos para combater os preconceitos realimentados, para minimizar a presunção política... Nas palavras de Manoel Bomfim, Não compreendem que um povo não faz revoluções senão quando uma causa profunda, orgânica, o impele a isto... míopes, reduzidos de vista, eles não conseguem ver os fenômenos, os efeitos todos, por junto, e menos ainda determinar as relações fatais entre uns e outros...

... o almoço tormentoso, a sobremesa indigesta, frases que não se contemplam... mais tarde o ônibus de volta, a centralidade congestionada pelos automóveis que mal se movem... o metrô, mais rápido, as pessoas que acolhem o cinza da tarde, o frio da garôa... a padaria para um café, o velho que se interpõe, buliçoso, com um sorriso enfadonho e frases comedidas, que não desgruda, que fala dos primeiros resultados, e se diverte com a intriga gratuita... só pode, a inesperada encarnação do tinhoso... os fiapos de cabelo branco eriçados, saltitando de uma perninha para outra, sabe-se lá o quanto se diverte... Rumpelstiltskin... só me falta pedir que adivinhe seu nome em três dias, Hoje eu frito, amanhã eu cozinho! Depois de amanhã será meu o resultado da eleição! Coisa boa é ninguém saber Que meu nome é Rumpelstiltskin!...

... mas é diante da tevê que sinto o baque, que acompanho o desenrolar do anticlímax... que sinto o luto me cingir em dolorosa impotência... a tevê em sua torrente de imagens, mostrando o avanço dos números... e reflito no belo texto de Mônica Nunes, ... Estranho modo de a promessa de velocidade tornar-se imobilidade e extensão dos corpos, marcadores biográficos, estendidos no silencioso fragor dos destroços...

... sensação de sonho mal resolvido, a percepção desnecessária de sucessivos Mervais Pereiras, que, como o Rumpelstiltskin da padaria, se expressam com satisfação incontida sobre o aturdimento alheio...

... qual alternativa senão encarar os fatos, levantar e sacudir não a poeira, mas a bandeira, e dar a volta por cima...? Agora, mais do que nunca, incorporar a luta e desafiar as adversidades, que, espera-se, se origine do real desafio político...

... em vez de surgir da propagação da farsa e da intolerância... desse rumor falso que, nas palavras de Amin Maalouf, alguém promove com más intenções... desencadeia as hostilidades, e quando nos inteiramos da verdade, já é demasiado tarde, com as ruas cobertas de cadáveres...



27 setembro 2010

Cinismo e dissimulação




Não me deixo mais levar pelas oscilações tempestivas da mídia dominante, que neste mês, como em nenhum outro, uniu suas forças para dinamitar a candidatura Dilma, danem-se as consequências. Essa tipo de atitude desgasta e aborrece o espírito, além de nada acrescentar para a construção da análise crítica.

A preocupação da velha mídia passa longe de organizar uma contestação sustentável e propositiva, além de incorrer no erro de cumprir o papel de oposição ao governo, fiscalizando apenas um lado e praticamente poupando de qualquer exposição as forças com as quais compõe o jogo político.

Me faz lembrar que há muito não se vê uma crítica estrutural sobre o governo municipal e estadual, aqui em São Paulo; seus governantes passam incólumes, e quando é inevitável a postura mais acerbada como foco da matéria jornalística, ela é trabalhada como uma disfunção pontual da administração. Para exemplificar, veja como foi abordado o desabamento do metrô, ocorrido na gestão Serra. Muita ponderação e cuidado na maneira asséptica de relatar o fato, poupando os grandes responsáveis pela tragédia de uma investigação mais incisiva e duradoura.

A verdade, nesse caso, funcionou em nome da preservação de um governo simpático aos desígnios midiáticos. Nenhum órgão de imprensa interrogou o governo estadual (ou o municipal), cobrando-os em suas responsabilidades, nem tampouco houve um transbordamento para temas correlatos, com denúncias renovadas sobre pontos suspeitos no ocorrido. E não que fosse necessário, mas não se descambou para a desmoralização dos agentes envolvidos, como também o tom dos comentaristas não alcançou aquele tom jocoso e típico dos bobos da corte, que divertem sem nada acrescentar.

Quando o caso envolve o governo federal, o que temos à exaustão é uma atuação naturalmente agressiva, formulando-se suspeitas para posterior averiguação. Normalmente desvela-se um indício, que se desdobra em um conjunto sistemático de denúncias não-comprovadas (factóides) ou turbinadas fora de seu contexto, sustentada por um pool de veículos midiáticos, que se revezam nos golpes. Sobrepõem-se o tom calhorda e a insinuação supérflua, condenando logo de saída. Se houver algum crime, todos saberemos bem depois; caso contrário, a reparação, se ocorrer, será breve e discreta.

A sucessão de invectivas montadas para expor e condenar o governo federal, delimita um componente cínico (porque se assume como parte do jogo democrático...) e dissimulado (porque mascara seus perversos objetivos...) que tem caracterizado o discurso midiático. Para o cidadão comum, acompanhar essas incongruências revela-se um fardo extenuante, que o desestimula em relação ao debate político. O cidadão urbano moderno, com todas as disponibilidades tecnológicas para o acesso à informação, não tem o menor interesse em se contaminar com tanto rancor e ódio...

Esse tem sido o modelo de desinformação praticado não só por meios hegemônicos de comunicação brasileiros, mas também argentinos e venezuelanos, para ficar nos exemplos mais notáveis na América do Sul. O que aí se reproduz é o que há de mais sórdido nessa função: a cizânia social. Tais veículos midiáticos talvez se preocupem em informar, mas cultivando o sensacionalismo político e, sempre que possível, demarcando diferenças, no lugar de despertar, relevar, preservar os valores comuns. Longe de contribuir para o debate nacional, produzem o discurso do oportunismo individual, além de assentar ideologias que assegurem o privilégio de seus interesses.


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Agora, cá pra nós, terrível mesmo é essa tensão criada pela tal bala de prata, o golpe decisivo a ser desfechado pela mídia contra Dilma. Espera-se qualquer coisa, seja da lengalenga das pequenas acusações, fogo brando e constante, ao ataque brutal e inesperado, às vésperas das eleições...
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Não é a imaginação do convívio democrático e tolerante que estimula esse clima deletério, mas a insolência de quem usa e abusa do direito de editar, deturpando os fatos e tripudiando sobre a verdade...

Durma-se com um barulho desse!...



22 setembro 2010

Certezas ineludíveis



Interessante a parte final do depoimento do senhor B., essa coisa de apreciar de maneira recorrente o canto dos pássaros (será em decorrência da fartura proporcionada pela nova estação, que surge sempre florida e aromatizada?!...), não só à noite, sob a luz tremeluzente da praça esquecida, mas no outro dia, na cancha de tênis, ou no crepúsculo, no quintal da sua casa... Deixei-o experimentar a deriva a que se entregava, Tudo isso me parece tão significativo... e suspirou... mas não interrompeu a fala e com seu olhar brilhoso, completou, Agora encontro sentido para o canto laborioso, sempre próximo... Sim, agora ouço-os muito claramente, com o coração...

O senhor B. suspendeu o depoimento... dei-me conta de que falava de pássaros, enquanto avaliava suas conclusões mais íntimas... Do longo silêncio, sobreveio o suspiro insofismável, desses que escancaram a alma de par em par e nos revelam os sentimentos de uma decisão bem tomada...


20 setembro 2010

Tempo de mudanças




A mídia hegemônica sucumbe em função de um jornalismo que não diferencia alhos de bugalhos. Ao contrário, para manter-se dominante no mercado, transforma o mundo em uma farsa espetaculosa, maçaroca que, ao contrário de poder, oferece perda de credibilidade.
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Quando falo em farsa espetaculosa, o objeto da notícia pode ser o terremoto do Haiti ou as eleições brasileiras de outubro. O terremoto do Haiti presta-se como notícia enquanto se sustenta como um drama vendável, onde as matérias perduram até arrancar uma derradeira dor de desconsolo. As eleições preservam-se como notícia enquanto puder se desdobrar de um fato, para um escândalo artificioso. A semelhança entre os dois temas é que eles desaparecem quando novos assuntos potencialmente explosivos tornam-se sedutoramente exploráveis.
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Assim, a mídia hegemônica distancia-se do verdadeiro jornalismo. E estruturada nas bases presentes, condena-se, pois não tem como resistir à inovação proporcionada pelas mídias sociais. Inovação cunhada em princípios que valorizam o conhecimento e a informação, que transforma o leitor de mero sujeito passivo, receptor tolerante das interpretações fechadas, em um agente participante, que propõe suas ideias e interage nos debates.
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O estilo neocom, bruto e autoritário, que desponta com o robustecimento do neoliberalismo, nos anos 1990, sucumbe, pois, diante da fascinante abertura democrática proposta pelas mídias eletrônicas. Rompe-se a hierarquia da produção de informação e conhecimento, assentando as trocas na horizontalidade dos direitos universais. A mentira não mais se sustenta!
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Para não perder espaço, a decadente mídia hegemônica não abre mão do espetáculo, que surgindo da dor ou da farsa, é explorado da mesma maneira. Sua base de sustentação se restringe cada vez mais a uma burguesia aristocrática, que também não consegue ver as transformações ao redor. Para ela, a derrota de Serra é uma catástrofe, com a qual não sabe lidar, nem tampouco explicar. Essa catástrofe expressa apenas o sentimento de que nada vai mudar ou as coisas só vão piorar, quietismos ou catastrofismos que evidenciam o desconsolo pelos desígnios da classe, completamente descolados do sentimento da nação...

A voz que manifestará esses sentimentos será a mídia hegemônica. Ela pautará os anseios e dissabores (aliás, como sempre o fez) da classe dominante, editando as pautas políticas a partir dos seus interesses em questão.
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É essa força e esse poder que a envelhecida mídia resiste em constatar que perdeu. Persistirá em sua luta obstinada (desvinculada da luta pelos interesses da nação) em dar voz aos eternos desígnios da burguesia aristocrática, sem que ambas consigam compreender as transformações sociais dos novos tempos. E juntas - a outrora mídia dominante mais a burguesia de monóculo - dadas as circunstâncias dos acontecimentos, aprofundarão o processo de fratura social.

Donde podemos compreender que a divisão social não é estimulada pelas políticas sociais de um governo popular, mas pela resistência de uma elite arcaica, que deseja ser o que não é mais possível e acreditar em um mundo que não mais existe.



14 setembro 2010

Alfredo




Há que se recordar o momento em que Victória adentrou o Café, em meio à sonoridade eflúvia que se desprendia nos mínimos detalhes do ambiente, as cadeiras arrastadas, os tilintares das taças, o murmúrio das conversações fugidias, entremeadas por olhares confessos, como este que absorveu a Alfredo. As notas do bandoneón sobrepunham-se, em sua cadência melancólica, como um fundo necessário para distinguir o ritual do encontro. O fog se elevava mais denso, bruma etérea que conduzia a uma dimensão de luzes fugidiças, das luminárias que configuravam uma aura embaciada... por um lado, e por mais outro, os garçons singravam elegantes, prestimosos, com as gravatas borboleta e uma seriedade conveniente, equilibrando suas bandejas cheias... Pois Alfredo só teve tempo de erguer-se, ao se dar conta que a mulher, a Victória que sequer conhecia, se aproximou envolta por seu olhar fulgente, que a penetrar as guardas de seu então distanciamento, indo atingir-lhe o coração! Não houve palavras, já próxima ela lhe estendeu a mão enluvada, e um sorriso adornou-lhe as faces rosadas. Mas os olhos, duas turquesas densas e cintilantes, esses refletiam mais do que mero brilho, formulavam a intensidade da alma, emoldurados por um outro tempo, que transbordavam o próprio querer... Não foi mais que um momento o transe, calados pela mútua expectativa. A verdade foi que, dissipado o transe revolto que os tomaram por um tempo indizível, se deixaram levar, como se o tango rememorasse seus corpos como parceiros de sempre, entregues aos caprichos da vida...

... e por sobre a mesa, o livro de Paul Valéry que tomava as atenções de Alfredo... É possível ler no parágrafo seguinte de onde parou a leitura,
(...) Quanto a mim, sinto estar seguro, de uma segurança de sonho, de que tu estás atrás de mim, com tudo o que está por vir, como num passado, como se uma coisa toda concluída e que não existe ainda... É por isso que meu coração é arrebatado... O livro que está diante de meus olhos é ilegível, e minha alma, sobre essas linhas às quais meus olhos se apegam sem esperança, aguarda o choque...



11 setembro 2010

Sobre a corrosão do caráter



Há um século, Georg Simmel escrevia sobre a presença do dinheiro na vida da metrópole, seu efeito desagregador na vida subjetiva do indivíduo, transformando-a em vida puramente objetiva. Em outras palavras, a vida cotidiana voltada para o crescimento do intelecto, produzindo um distanciamento espiritual, essa dolorosa ausência do equilíbrio corpo e mente, que nos abandona em permanente déficit emocional. Para Simmel, o dinheiro torna-se o denominador comum de todos os valores, e compreender essa racionalidade voltada para a realização dos desejos materiais seria suficiente para desvelarmos o descompasso do mundo pós-moderno.

Gosto de Simmel porque sua análise é premonitória: fala da economia monetária, do turbilhão da metrópole, das demandas crescentes, da prevalência do tempo do relógio, da fragilidade humana exposta pelo comportamento blasé, e sua conclusão sutil, a perda da vida subjetiva em nome da vida objetiva. Tudo muito didático, exposto como disse, há mais de cem anos (1903). Não é à toa que Bauman se utilizará de seus conceitos para erigir sua visão líquido-moderna, baseada nos temores pelas diferenças sociais insuperáveis (a segregação urbana desenhada em nome da segurança - ou da ausência dela).

Na última semana, dediquei-me a ampliar esse mal-estar social, discutindo um outro autor, Richard Sennett, menos influente que os dois anteriores, mas com interessante perspicácia em suas análises do comportamento. Em A corrosão do caráter, ele faz uma abordagem do nosso tempo, tomando como ponto de partida as nossas carências, geradas e aprofundadas pelo capitalismo de curto prazo. Dirá que a velocidade das mudanças eliminará o longo prazo na planificação das corporações, estimulando a força dos laços fracos, nada mais do que as formas passageiras de associação e, acrescento, frágeis e indiferentes (a terceirização dos serviços seria um bom exemplo, essa impessoalidade simmeliana que privilegia a produção), afetando diretamente a vida do indivíduo.

Pois nas palavras de Sennett, o capitalismo de curto prazo corrói o caráter... as qualidades que ligam os seres humanos uns aos outros... Não há como ser diferente nessa selva metropolitana, regida pelo relógio e pelas demandas crescentes. A vida objetiva desse ritmo sufocante nos aponta para sucessivas contradições, como a sustentabilidade em oposição à ganância; o sonho do lazer em oposição ao esgarçamento do horário de trabalho; a ética em oposição ao sucesso a qualquer preço... 

Mas a contradição mais contundente seria o contraponto entre os modos de ser que regem nossas vidas. Para Sennett, o comportamento que indica o sucesso no trabalho está em completa contradição com o modelo da vida familiar. Ou, em outras palavras, não é possível produzir uma educação consistente, utilizando-se das normas apregoadas pelo mercado; um filho demandará todas os cuidados (a longo prazo) que não estão contemplados na dinâmica acelerada de resultados do capitalismo.

A resultante disso: os valores da vida familiar (eu estenderia para a comunal) organizam-se em regras fixas, enquanto o mercado gira em torno de decisões alimentadas nas incertezas das circunstâncias. Dessa maneira, o comportamento ético está definitivamente excluído, acarretando a corrosão do caráter e, como consequência, a deriva do indivíduo, adernado, fragmentado, sem qualquer compaixão.

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E é certo que iríamos para além da corrosão do caráter, ao falarmos sobre a banalidade discursiva do oligopólio midiático deste país, que perdeu completamente a credibilidade para informar. Estou convencido (em grande parte, graças ao exemplar trabalho de informação das redes sociais) de que estas eleições sepultarão a maneira arrogante e oportunista desse jornalismo descomprometido com a verdade.

Nada mais vil e degradante, tudo em nome da candidatura Serra, que só faz naufragar, vertiginosamente. Candidatura que, já há um bom tempo, não se preocupa em expressar as propostas de sua plataforma política para a sociedade civil.